segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Memórias IX

- Clube de Leitura – 3 Fevereiro -



“Pensando nelas (dificuldades), precisamente, ou procurando o rasto da felicidade e da profundidade da vida, vemos pelo vidro do carro, da janela de casa ou do barco em que se atravessa o Bósforo, imagens que acompanham o nosso pensamento. Isto é muito importante porque, com o tempo, a vida, uma melodia, um quadro ou um conto conhecerá altos e baixos, ao passo que as imagens da cidade que passam diante dos nossos olhos, mesmo anos mais tarde, conservarão para sempre a frescura e ficarão em nós como a lembrança de um sonho.”
Orham Pamuk – Istambul,


(- falo dos altos e baixos da vida, olhando pela janela: umas cidades são os altos, outras os baixos – quase uma montanha russa!)


Quando olhei pela primeira vez por uma janela, dum carro ou dum barco, vi uma aldeia, que nem recordações me deixou: fez o favor de me ver nascer e de fazer os meus pais, que também olharam para fora, viver o que ainda hoje chamam os piores anos das suas vidas! Era essa terra uma aldeia, Lorvão, de que nada trago, não pelo que tinha de “fim do Mundo”, perto das margens do Mondego, mas apenas porque de lá sai sem saber sequer gatinhar, ou o meu nome (não que sabê-lo me valha alguma coisa…).
Logo a seguir era Lisboa que se via. E daí sim, trago recordações, porque me viu crescer (o pouco que consegui) e me viu apanhar, nos cantos das primeiras memórias, o que lá se gravou para sempre e de que trago para aqui algumas:
As minhas idas à baixa, ao sábado, nos eléctricos amarelos com assentos de palhinha. Passeávamos, eu e o meu irmão, às corridas e aos saltos (que espaço livre e aberto onde se corresse e saltasse era coisa rara para nós), enquanto os nossos pais iam atrás, de olho bem aberto, mas de braço dado e descontraído.
Não sei exactamente por onde passeávamos, mas guardei a rua Barros Queirós, a única que não tinha trânsito e onde estava uma mágica e magnífica loja de brinquedos, onde o Pai Natal fazia as suas compras; guardo a pastelaria Nacional (Pç. da Figueira), onde nos derretíamos junto dos Garibaldi, cheiinhos de chocolate e, finalmente, guardo o sumo de uva, feito na hora e bebido já junto da paragem do amarelo com bancos de palhinha, no Martim Moniz. Só muito mais tarde, evidentemente, quando estudei no Chiado antes de ele arder, é que conheci Lisboa na sua alma, enquanto subi e desci a Rua do Carmo e me cruzei pelo caminho com todos os livros, pessoas e histórias, que consolidaram a minha vida.
Mais tarde, já em Angra, vi todos estes meus anos arderem em horas! A escola escapou, mas ardeu tudo por ali acima: Grandela, Chiado, a perfumaria da Tatão, roupa, livros, bolos, chão, paredes, tudo, enfim, tinha acabado numa semente de onde nasceria o novo Chiado, reconstruído, pensado, estudado, magnífico, mas outro!
Da cidade de Angra do Heroísmo, a milhas de distncia, guardo a maior e melhor vida. Da janela, o mar e uma cidade linda que me recebeu. Foi lá que me reconheci e encontrei e onde fiquei a descansar definitivamente. É assim que, sempre que preciso de fechar, basta que olhe pela janela, que logo vejo Angra branca e cheia de cor, contra o azul limpo do céu e da água que a embalam constantemente.
Da ilha disse Nemésio:

“Olha a terra da Terceira,
Numa salva, já se vê…
- Obrigado ao meu amor.
- Foi o mar. Não tem de quê.”

São as imagens desta cidade vistas pela janela, que, “mesmo anos mais tarde conservarão para sempre a frescura e ficarão em nós como a lembrança de um sonho”.
Depois quando voltei a olhar, as imagens eram de Tomar, de que vão ficar arquitecturas, lojas antigas e intactas, ruas sozinhas e flores, muitas flores, que são a última imagem de Tomar. Nas noites de Inverno fica, da rua, o aconchego dado pelo cheiro da lenha a queimar, como se a lareira estivesse mesmo ali à frente.
Finalmente o Porto, onde ainda tenho os olhos a passar e a guardar imagens não da infância, nem tão pouco do passado. São as que vejo agora, quando olho para fora: o cinzento, a austeridade da pedra, a dureza da chuva e da vida em espera, o cinzento e o cinzento.
E assim passou mais de meio século. Foram muitas cidades. Foi demasiado tempo.


luísa brandão moniz

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