quarta-feira, 12 de julho de 2023

Americanah


 Americanah

de

Chimamanda Ngozi Adichie


Temas de reflexão


1. Casamento por amor, uma ideia americana?

2. "...só me tornei negra quando vim para a América" (pág 440)

3. Obama, uma luz de esperança

4. A mulher negra e a questão do cabelo

5. O clube Nigerpolitano

6. Obinze e Blaine, o que fazer?



Obama, uma luz de esperança

por 

Alexandra Azevedo

 

“…admitam lá- só dizem «Eu não sou negro» porque sabem que «negro» está no fundo da escala racial da América”

Impossível desligar a eleição de Obama da questão racial.

Obama, branco para os negros, negro para os brancos, era visto como diferente dos outros negros, entre outras coisas, por não ter uma mulher de pele clara como ele. Michèle era negra, sem complexos, e isso infringia a regra dos negros americanos de sucesso que ou casavam com mulheres brancas ou de pele muito clara.

Para a população negra americana do final da primeira década do século XXI, imaginar Obama a ganhar as eleições presidenciais, configurava um sonho impossível, o milagre de desfazer o racismo estrutural da América.


E, no entanto, a questão racial, não  é, passe a graça, uma questão a preto e branco. A questão racial não pode ser encarada com o simplismo de afirmar que de um lado estão os brancos racistas e do outro, as vítimas negras.

A verdade é que “a pele clara é valorizada na comunidade dos negros americanos. Mas toda a gente finge que já não é assim.” (328) Isto explica o facto de muitos negros americanos dizerem orgulhosamente que têm «sangue índio», o que significa “Graças a Deus, Não Somos Pretos Retintos” (327)

O  inacreditável teste  do saco de papel de embrulho, por exemplo,  que consistia em comparar o tom de pele com o a cor do papel de embrulho era uma forma de discriminação racial praticada no seio da comunidade afro-americana e os que passavam no teste, isto é, os que tinham a mesma cor ou cor  mais clara do que o papel, tinham mais privilégios, como  poder pertencer a clubes exclusivos de negros de pele clara, formados depois da abolição da escravatura ou  entrar em igrejas e casas nocturnas depois de, à entrada, o seu rosto ser comparado com o saco de papel.

A eleição de Obama aparecia aos negros americanos, no tempo da campanha eleitoral, como o toque de varinha mágica que varreria para sempre tudo isto, que faria desaparecer o factor simbólico negativo colado ao facto de não ser branco. Era esta a esperança.

E, no entanto, as coisas nunca são simples. Como diz Grace, se Obama ganhar deixa de ser negro tal como “a Oprah já não é negra, é a Oprah que pode ir sem problemas a sítios onde os negros são detestados.  E o próprio Obama tem mãe branca e foi criado por avós brancos, não é só um “ tipo negro sem mais” (537) Nas palavras de Blaine, “ A América terá feito reais progressos quando um tipo negro vulgar da Geórgia se tornar presidente, um tipo negro que tenha tido uma nota vulgar na universidade.” (537)

Infelizmente, a história mostrou que toda a esperança que nasceu com a chegada de Obama não seria o amanhecer de uma mudança estrutural na América do século XXI. Em Agosto de 2020, no prefácio ao seu livro “Uma Terra Prometida”, Obama confessa-se emocionalmente esgotado por os americanos terem escolhido Trump para lhe suceder.

Mas Obama foi presidente durante oito anos consecutivos e esse terá sido o primeiro passo para alcançar o tempo em que “ um tipo negro vulgar se possa tornar presidente da América”

Esta continua a ser a esperança. 

Ndi na-abia n'iru (os que virão a seguir)

 

Alexandra Azevedo

 Junho 2023


Nigéria

por 

Ana Teixeira



I -Enquadramento Actual

 A Nigéria é um país africano localizado na região da África Ocidental. É a nação mais populosa do continente, contando com mais de 206 milhões de habitantes, colocando o país na posição de sétimo mais populoso do mundo.

A população nigeriana é formada atualmente por mais de 250 grupos étnicos. Os que concentram o maior número de pessoas são: Hausa, Iorubá e Igbo. O país possui, enorme diversidade linguística, com mais de 500 de línguas faladas além do inglês, o idioma oficial. A Nigéria possui elevada taxa de crescimento populacional (2,6%), o que se deve à sua alta taxa de natalidade. A expectativa de vida no país é baixa, de 54,2 anos.

 Lagos, cidade que já foi capital, é a mais populosa, com mais de 13 milhões de habitantes. A atual capital, Abuja, possui cerca de 3,1 milhões de habitantes.  As concentrações urbanas também são elevadas em Ibadan e Kano.

 


 

A Nigéria possui uma parcela de 40% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza. Dados de 2019 indicam que só 62% da população do país possuíam acesso à eletricidade, estando a maioria nas áreas urbanas.  O acesso à água potável, por sua vez, é muito mais baixo, sobretudo quando se compara as populações urbana e rural: 24,6% versus 15,7%. As redes de saneamento também chegam a menos de um terço da população urbana (29,5%) e a 23,9% da população rural do país, segundo dados da ONU.

Na Nigéria coexistem várias religiões, contribuindo para acentuar diferenças regionais e étnicas. A Nigéria possui uma das maiores populações de muçulmanos da África Ocidental. O Cristianismo ( essencialmente Protestantismo,  Anglicanismo e Catolicismo ) é a segunda maior religião na Nigéria, de acordo com o levantamento mais recente, os cristãos constituem 40,5% da população, enquanto que os muçulmanos são 51,2% e adeptos de religiões indígenas 2,4%. Um país de maioria muçulmana ao norte e predominantemente cristão ao sul.

 

A Nigéria é uma república federativa (composta por 36 estados e o Território da Capital Federal) presidencialista, sendo o presidente eleito por voto direto. O presidente é simultaneamente chefe de estado e chefe de governo. O Poder Legislativo da Nigéria é exercido pela Assembleia Nacional, composta pela Câmara dos Representantes e pelo Senado. É, pois, um sistema democrático. A Câmara de Representantes tem 360 membros, eleitos para um mandato de quatro anos. O Senado é presidido pelo Presidente do Senado e tem 109 membros, eleitos para um mandato de quatro anos.  

O país adota o sistema político pluripartidário, embora atualmente na Quarta República, apenas 2 partidos podem ser classificados como maioritários por contarem com bases eleitorais bem estruturadas em todos os estados do país, de modo a tornarem-se os únicos partidos capazes de vencer eleições: trata-se do Congresso de Todos os Progressistas (APC) e do Partido Democrático do Povo (PDP).

O actual presidente da Nigéria, após uma eleição muito disputada em 25 fevereiro de2023, é Bola Ahmed Tinubu de 70 anos, do partido do Congresso de Todos os Progressistas (APC). É de uma família muçulmana do grupo étnico Yoruba, maioria do sudoeste da Nigéria. Foi eleito para um mandato de 4 anos.

Dos 200 milhões de habitantes apenas 93 milhões estão registados para votar. O país enfrenta actualmente uma grave instabilidade económica e alta inflação, graves problemas de insegurança e de corrupção, aumento do preço dos combustíveis e alimentos e ainda o impacto dos choques climáticos, como as inundações de 2022. A estes problemas acrescem os ataques de grupos terroristas e banditismo armado e sequestros

O nordeste da Nigéria sofre a violência do BoKo Haram[1] desde 2009 e agravou-se a partir de 2016 com o aparecimento da sua ramificação, o ISWAP ( Estado Islâmico na Província da Africa Ocidental).

As duas organizações extremistas procuram, separadamente, impor um Estado islâmico na Nigéria. Já mataram mais de 35 000 pessoas e causaram cerca de 2,7 milhões de deslocados internos, mas também em países vizinhos como camarões, Chade e Níger.

Em maio de 2023 as nações Unidas alertaram para o facto de mais de meio milhão de pessoas na Nigéria estarem a sofrer de níveis de emergência de insegurança alimentar com taxas extremamente altas de desnutrição aguda e mortalidade. Calcula, ainda que cerca de dois milhões de crianças com menos de 5 anos podem vir a sofrer de emagrecimento extremo nos estados nigerianos que fazem parte da região devastada pela violência dos ataques de Boko Haram e ISWAP.

Também em janeiro de 2023, a UNICEF alertou que a insegurança alimentar na Nigéria que afecta actualmente cerca de 17 milhões de pessoas continuará a subir de forma alarmante.

 

Membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a Nigéria é o 11º maior produtor mundial de petróleo[2]. Essa matéria-prima responde pela maior parcela das exportações do país, e o setor de petróleo e gás natural representa uma parcela de 10% do seu PIB, de acordo com a Opep. Além do óleo e gás natural, a Nigéria é detentora de outros recursos naturais, como minério de ferro, estanho, carvão, zinco, nióbio, calcário e chumbo.

Apesar disso, a agropecuária, que corresponde a 21,1% do PIB, é o setor da economia que concentra a maior parte da mão de obra. Os produtos oriundos da agricultura são milho, dendê, mandioca, batata-doce, inhame, arroz, sorgo, além de frutas. A indústria concentra-se no setor extrativo[3] (que inclui também madeira e borracha), e na produção de alimentos, calçados, tecidos, couros, peles e produtos químicos .

 

 O clima Tropical é predominante nas áreas centrais da Nigéria, caracterizado por elevadas temperaturas durante o ano e uma longa estação chuvosa. O sul é marcado pelo clima Equatorial, com alta humidade relativa do ar, temperaturas que variam entre os 20º C e 33º C e os maiores índices de pluviosidades do país, sobretudo na região sudeste. No norte e nordeste da Nigéria, há ocorrência de clima Semiárido e Árido, em que a estação chuvosa é curta, de cerca de quatro meses.

 O relevo é composto por planícies nas áreas costeiras e também na borda nordeste da Nigéria. Os planaltos e colinas são predominantes no centro do território, onde o relevo é relativamente mais acidentado. As montanhas estão concentradas na região sudeste do país, na fronteira com Camarões. Fica nessa região o pico mais elevado da Nigéria, o monte Chappal Waddi, que se eleva a 2419 metros. No restante do país, a altitude média é de 380 metros[4].

  

II- Breve história da Nigéria

 No período que antecede a chegada dos europeus, diversos impérios se formaram na Nigéria, entre os quais está o Império de Benim, onde os portugueses aportaram no século XV. Além dos interesses comerciais, estabeleceu-se o tráfico de pessoas para serem escravizadas nas colônias portuguesas. A Nigéria tornou-se colônia britânica no século XIX, quando foram criados os protetorados britânicos. O país conquistou a sua independência definitiva em outubro de 1960.

A Nigéria tem a sua origem no ano 800 a.C., quando se funda a primeira sociedade organizada na região.  Pelo ano 1000, o Império de Canem era o principal Estado que se enriquecia com o comércio transaariano.

Antes de 1500, muito do que seria a "Moderna Nigéria" era dividida em Estados que caracterizam os grupos étnicos existentes até hoje.  Desses antigos Estados é possível aferir histórias em comum e independentes dos Reinos de Iorubás, de IbosBenim, de Hauçás, de Nupés e Império de Canem e Bornu que deram base ao que no século XX seria a Nigéria.

O período pré-colonial decorreu até 1800.  A influência britânica começou com a proibição de comércio de escravos em 1807. O colapso resultante do tráfico de escravos africanos levou ao declínio e eventual colapso do principal reino da então Nigéria, o Império Edo.

Reino Unido anexa Lagos em 1861 e estabelece o Protetorado[5] de Oil River em 1884. A influência britânica na área aumentou gradualmente ao longo do século XIX, sendo que o Reino Unido só ocupou efetivamente a região a partir 1885 quando outras potências europeias reconheceram o poder da Grã-Bretanha sobre a área na Conferência de Berlim[6] nesse ano.

De 1886 a 1899, grande parte do país foi governado pela Royal Niger Company e por um governador dos protetorados . Em 1900, os protetorados Sul e Norte da Nigéria passaram da empresa às mãos da Coroa Britânica, mantendo como Colónia uma considerável autonomia regional entre as três grandes regiões da Nigéria.

 Após a Segunda Guerra Mundial foram aprovadas Constituições progressistas para aumentar a representação e governo eleitoral pelos nigerianos. O período colonial  na Nigéria durou até 1960, ano em que ganha a sua independência.  

Quando a Nigéria se tornou uma república federal independente dentro da Commonwealth em 1960 organizou-se segundo o sistema parlamentarista herdado dos britânicos. O então presidente do Senado da Nigéria, tornou-se presidente da República, posto visto como meramente formal diante da limitação de poderes ao chefe de Estado preconizada por este sistema de governo. Era o primeiro-ministro quem detinha o poder de facto por ser o chefe de governo do novo país independente.

Entretanto, com a eclosão do golpe de Estado de 1966, o período denominado Primeira República chegou ao fim, sendo substituído por um regime ditatorial comandado por militares das Forças Armadas da Nigéria. Este golpe de estado resultante de uma desavença entre os povos Hauçás e Ibos deu origem à Guerra Civil da Nigéria, também conhecida como Guerra Civil Nigeriana[7], Guerra Nigéria-Biafra ou ainda Guerra do Biafra que durou de 6 de julho de 1967 a 13 de janeiro de 1970. Foi um conflito político causado pela tentativa de separação das províncias ao Sudeste da Nigéria, como a República autoproclamada do Biafra[8].

Somente 13 anos depois, com a realização da eleição presidencial de 1979 é que os civis retornaram ao poder, tendo início a Segunda República.

Sob a nova Constituição, modelada à semelhança da Constituição dos Estados Unidos e promulgada em 1979, o sistema parlamentarista de governo foi substituído pelo presidencialista, fortalecendo-se a figura do presidente da República, que passou a ser simultaneamente chefe de Estado e chefe de governo, mediante a eliminação da figura do primeiro-ministro.

Entretanto, a Segunda República foi efêmera, pois logo em 1983 os militares mais uma vez deram um golpe de Estado e retornaram ao poder. Uma tentativa de transição política para a democracia foi tentada com a realização de uma nova eleição presidencial em 1993, porém o governo militar,  de então, não reconheceu o resultado eleitoral e anulou a eleição com base em supostas irregularidades eleitorais que nunca foram provadas.

Enfrentando protestos em todo o país, o poder militar nomeia um civil para liderar um governo de unidade nacional que fosse capaz de organizar uma nova eleição presidencial. No entanto, um novo golpe militar liderado apodera-se do poder e os militares governam o país de forma ditatorial até 1998, data em que um militar politicamente mais moderado que os seus pares se comprometeu, ao assumir o poder, de que realizaria novas eleições diretas para os governos e assembleias estaduais, para as câmaras legislativas federais (Senado da Nigéria e Câmara dos Representantes) e para a presidência da República. Esta última foi realizada em 1999 e ganha por um ex-militar filiado no Partido Democrático do Povo (PDP) procedendo-se à transferência pacífica de poder de um militar para um civil e marcando o início da atual Quarta República.

 [1] Este grupo foi fundado em 2002 e inicialmente as suas acções foram não- violentas. O seu principal objectivo era purificar o islão no norte da Nigéria. As suas ações ganharam destaque na mídia internacional em 2014, com o sequestro de 276 mulheres. Em 2015 foi considerado o grupo terrorista mais mortífero do mundo. O grupo reivindicou, ainda, o sequestro de 300 estudantes nigerianos em dezembro de 2020.

 [2] Só em 1992 foi iniciada a produção de petróleo.

[3] No entanto a Nigéria possui uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo, conhecida como Nollywood. A sua produção fica atrás apenas dos Estados Unidos (Hollywood) e da Índia (Bollywood).

[4] Duas localidades da Nigéria foram consideradas Patrimônio Mundial pela Unesco: a Paisagem Cultural de Sukur, no noroeste do país, e o Bosque Sagrado de Oxum-Oxobô (Ọṣun-Oṣogbo, no iorubá), conhecido como Templo de Oxum, no estado de mesmo nome que fica na região sudoeste da Nigéria.

 [5] O termo protetorado refere-se a um território autônomo que é protegido diplomática ou militarmente contra terceiros por um Estado. Em troca, o protetorado geralmente aceita obrigações específicas, que podem variar muito, dependendo da verdadeira natureza de seu relacionamento. No entanto, mantém a soberania formal, e continua a ser um Estado.  

[6] A Conferência de Berlim, também conhecida como conferência da África Ocidental  ou Conferência do Congo, realizou-se em Berlim, de 15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885, marcando a colaboração europeia na partição e divisão territorial da África. Organizado pelo Chanceler do Império AlemãoOtto von Bismarck, o evento contou com a participação de países europeus (AlemanhaÁustria,HungriaBélgicaDinamarcaEspanhaFrançaGrã-BretanhaItáliaNoruegaPaíses BaixosPortugalRússia e Suécia), mas também do Império Otomano e dos Estados Unidos. O objetivo declarado era o de "regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger, assim como novas ocupações de territórios sobre a costa ocidental da África".  É de realçar a participação de estados que não possuíam colónias ou territórios em África na conferência, como os países escandinavos ou os Estados Unidos.

 Durante a conferência, Portugal apresentou um projeto, o famoso "mapa cor-de-rosa", que consistia em ligar Angola a Moçambique, criando uma comunicação entre as duas colônias, de modo a facilitar o comércio e o transporte de mercadorias. Sucedeu que, apesar de todos concordarem com o projeto mais tarde a Inglaterra, à margem do Tratado de Windsor, surpreendentemente recusou o projeto, dando um ultimato a Portugal, ameaçando declarar-lhe guerra se a proposta não fosse retirada. Portugal, com receio de colocar em causa o tratado de amizade e cooperação militar mais antigo do mundo, cedeu às pretensões inglesas, retirando o projeto do mapa cor-de-rosa.

[7] Embora as tensões culturais, étnicas e religiosas tenham sido alguns dos principais instigadores do conflito, a questão econômica acabou sendo um dos fatores mais importantes, com o controle do Delta do Níger (região rica em recursos naturais, como petróleo) tendo um enorme significado estratégico.

[8] Com apenas um ano de guerra, tropas do governo federal nigeriano tinham Biafra completamente sob cerco, capturando as instalações de petróleo da costa e ocupando a principal cidade. O bloqueio imposto pelo governo nigeriano levou a uma fome em massa.  Durante a guerra, mais de 100 mil baixas foram reportadas entre forças militares devido a inanição, com entre 500 000 e 2 milhões de civis da região de Biafra morrendo devido a falta de comida.



                                



                         A mulher negra e a questão do cabelo

por 

Margarida Mouta

 

         Nega do cabelo duro

Ondulado e permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta que não sai da mente
Qual é o pente que te penteia                          

Quando tu entra na roda
O teu corpo bamboleia
Minha nega, meu amor
Qual é o pente que te penteia         

Teu cabelo a couve flor
Tem um quê que me tonteia
Minha nega, meu amor
Qual é o pente que te penteia

Mise en plis a ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Toma banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia

Nega do cabelo duro (Oh minha nega)
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia (Oh nega)

Nega do cabelo duro (Oh minha nega)
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia (Oh nega)

Compositores: Rubens Soares / David Nassar


 

 

Em muitos blogs disponíveis na Internet ou mesmo em textos “sérios” que discutem questões raciais e processos de produção da identidade, encontramos muitas narrativas de mulheres negras sobre o seu cabelo, os cuidados que exigem, o orgulho que inspiram ou os constrangimentos que provocam em diferentes momentos da sua vida profissional e social. Essas narrativas refletem as experiências destas mulheres e dão-nos uma ideia do modo como os seus cabelos crespos formaram ou transformaram as suas identidades. De muitas delas, emergem experiências atravessadas por episódios explícita ou implicitamente associados a racismo. A pergunta fica no ar: Pode o cabelo de uma mulher (negra) ser um instrumento de discriminação?

Chimamanda Ngozi Adichi diz-nos que sim.

A propósito de Americanah, diz-nos: Não é um romance autobiográfico, mas é verdade que a minha experiência pessoal pode guiar a minha história. Estou a referir-me em especial a um assunto que me é particularmente caro, o do cabelo das mulheres negras. A nossa sociedade, através das imagens veiculadas por revistas e publicidade, exclui os cabelos crespos dos padrões de beleza. Isso leva-nos a querer endireitá-los constantemente, negando a sua forma natural. Eu recuso-me a impor esse sofrimento à minha filha porque o cabelo dela faz parte da sua identidade. A luta contra os estereótipos relacionados com a beleza da mulher negra é, portanto, também uma das minhas principais preocupações.

E no romance, tudo começa num salão de cabeleireiro para negras em Trenton, Nova Jersey. Ifemelu escuta com alguma consternação as conversas das clientes. Falam de desfrisagens, de cremes branqueadores para a pele, de casamentos com homens americanos, de preferência, ou pelo menos com homens com os papéis em dia… Já vão longe os anos difíceis de Ifemelu na América. Anos em que conheceu a humilhação, a violência e a miséria dos primeiros anos como clandestina. Com o passar do tempo, as coisas mudaram. Tornou-se bloguista de sucesso, dá conferências e é considerada uma referência em matéria de racismo. Nos seus posts, o seu humor cortante escalpeliza os preconceitos dos brancos e dos negros, mesmo daqueles que se dizem não racistas.


Neste primeiro momento da obra, Ifemelu está invadida por uma imensa nostalgia do seu país, o único lugar do mundo onde ela imagina poder sentir-se à vontade na sua pele, onde ela pensa poder reencontrar o seu lugar de pertença. E enquanto lhe fazem as tranças no cabelo, à moda das mulheres africanas – facto que suscita a desaprovação das outras clientes do salão – ela vai evocando a sua infância feliz, o seu primeiro amor e os anos de aprendizagem na América.

Quando a tia Uju telefonou a dizer que tinham chegado cartas a aceitá-la e uma oferta de bolsa de estudo, dá-lhe como conselho fazer tranças pequenas que durem muito tempo, pois é muito caro arranjar o cabelo na América. (p. 157)

Muito mais tarde, quando falou a Ruth sobre a entrevista em Baltimore, ela diz-lhe: O meu único conselho? Desfaça as tranças e alise o cabelo. Ninguém diz este tipo de coisas, mas conta. Nós queremos que consiga esse emprego. (p.310). No seguimento desta conversa, Ifemelu aceita uma nova “aventura”: fazer um tratamento de relaxamento ao cabelo.

Só queima um bocadinho – disse a cabeleireira. – Mas olhe que bonito que está! Ena, menina, tem o movimento do cabelo de uma branca. (311) A aventura custa-lhe uma queimadura provocada pelo produto para desfrisar de que resulta uma progressiva e desoladora queda.

A sua amiga Wambui, para quem “relaxar o cabelo é como estar na prisão” (p.319), acusa os químicos e oferece-se para lho cortar.

Curt reage ao corte:  

Porque é que tens de fazer isto? O teu cabelo era lindo com a as tranças. E quando tiraste as tranças da última vez e o deixaste, tipo, natural? Era ainda mais lindo, tão volumoso, mesmo fixe. A estas palavras de Curt, Ifemelu reage, fazendo-o ver que o seu cabelo volumoso e fixe resultaria se fosse a uma entrevista para o coro de uma banda de jazz, mas não para uma em que precisa de parecer profissional. Por outras palavras, cabelo para uma entrevista profissional significa cabelo liso, ou encaracolado à branca ou caracóis soltos ou aos cachos, mas nunca em caso nenhum, cabelo encarapinhado. (p.313)

Quando, ao fim de três dias aparece no trabalho com um penteado afro, muito curto, sentindo-se horrorosa com apenas dois centímetros de cabelo na cabeça, os colegas acham-na diferente. Miss Margaret, a funcionária afro-americana da cafetaria pergunta-lhe se ela é lésbica. No fim, quando Ifemelu se demite, pergunta-lhe se o cabelo não terá sido parte do problema.

Vale-lhe a descoberta da HappilyKimkyNappy.com, um mundo onde os produtos para desfrisar eram designados por crack em creme, onde as mulheres trocavam receitas e, mais importante ainda, um mundo onde as mulheres negras “esculpiam para si próprias um mundo virtual em que o seu cabelo encarapinhado, cheio de quebras, crespo e lanudo era normal”.  Reconciliada consigo própria e com a sua cabeleira de negra, Ifemelu aterrou nesse mundo com gratidão.

Ansiogénicas e muitas vezes inatingíveis, as normas da beleza atual são motivo de sofrimento para um grande número de mulheres, mas parece que são ainda mais tóxicas para as mulheres negras, excluídas do universo liso dos cabelos das brancas.

Para Ifemelu, libertar-se deste ideal formatado é quase uma operação de magia:” Num dia como noutro qualquer no princípio da primavera (…) ela olhou-se ao espelho, enfiou os dedos no cabelo espesso, esponjoso e maravilhoso e não conseguiu imaginá-lo de nenhuma outra maneira. Simplesmente apaixonou-se pelo seu cabelo.  (327)

 

Este romance pode ser encarado como o elencar de muitas renúncias. Não basta engolir a sua identidade para se fazer aceitar. É preciso ir mais longe. A necessidade de alisar o cabelo está, na obra, ao mesmo nível que a necessidade de branquear a pele, de polir o sotaque, de dissimular os traços culturais… Contornar ou ignorar estas formas de “retocar a fotografia” é motivo suficiente para não se ter entrada franca no mundo do trabalho ou mesmo no mundo académico. O cabelo afro desvirtua os padrões, aceites inclusivamente pelos negros mais velhos que olham com desconfiança para os que assumem a sua negritude na cabeça. Ao lado da autoestima, o cabelo pode ser um aliado quando se trata de valorização racial e identitária. Em Americanah, publicado em 2013, Chimamanda faz do cabelo um tema político.

E a politização do cabelo viria a ter repercussões na cena política.

Na Califórnia, em Nova York e Nova Jersey foi aprovada em 2019 a lei Crown (de Criate a Respectful and Open Workplace for Natural Hair - “crie um lugar de trabalho respeitoso e aberto ao cabelo natural”) que proíbe, também nas instituições de ensino, a discriminação pelo tipo de penteado. Em vários outros Estados, já foram elaborados projetos-lei para punir a discriminação contra o cabelo afro.

O filme “Hair Love”, que retrata a história de um pai negro a pentear a filha pela primeira vez, ganhou um Oscar de Melhor Curta de Animação em 2020, sendo considerado uma celebração dos cabelos naturais. No discurso da cerimónia dos Oscars, o realizador Matthew A. Cherry disse que um dos objectivos do filme era “normalizar o cabelo negro”.

 




 

      Como Ifemelu decidiu ‘realmente voltar para a Nigéria’ 31  

                                           ou  

            ‘E, claro, havia também Obinze’ 17

por 

Manuela Pereira

                                                                                                                                                                                                          

                                                                                                                                           

                           “A prince is a servant in foreign land.

              Genesis, Deus disse a Abraão: ‘Thy seed shall be a stranger in land that is not theirs, and shall serve them.”                                                                   

 

“Rugas de perplexidade apareciam na testa das pessoas quando dizia que ia voltar.” 28 “Ahn – Ahn! Normal, kwa? Não é nada normal!” 220 Só Dike lhe tinha dito “Prima, tu devias ir embora.” 570

Ifemelu já tinha enviado o email a Obinze, dizendo “…Decidi recentemente voltar para a Nigéria. (…) Adorava manter o contacto….” 35 

Nesse dia, tinha apanhado um táxi para ir pela primeira vez ao Mariama African Hair Braiding. Rodeada por mulheres negras imigrantes como ela__ Mariama e Halima, do Mali e Aisha, do Senegal 23 ___ soube que “nenhuma delas sorriria a uma americana da mesma maneira” que Halima lhe tinha sorrido. 23

Enquanto Aisha lhe entrançava o cabelo e lhe fazia perguntas insistentes sobre o casamento e os dois namorados igbos, deixou o seu pensamento deambular. Não gostava de Aisha, as suas perguntas incomodavam-na, e sentiu um “prazer perverso” 32 quando lhe disse que vivia em Princeton, o tipo de lugar que Aisha só podia imaginar.32 Mentiu-lhe sobre o seu tempo de permanência na América. E mentiu-lhe de novo dizendo que ia voltar para a Nigéria, “para ir ter com o seu homem.”, “O meu homem.” 34 E surpreendeu-se a si própria. “Que fácil era mentir a estranhos, criar (…) as versões da nossa vida que imaginámos.”34

Para evitar a conversa tinha pegado no telefone e tentado falar com Dike que não respondeu. Sentindo-se audaz 31 enviara um email a Obinze dizendo que decidira recentemente voltar para a Nigéria.

“Não havia nenhuma causa específica” 18 para voltar.

 “O seu blogue estava a correr bem e andava a ganhar bons honorários por falar em público.” 16 Estava a acabar a bolsa de investigação na Universidade de Princeton. Tinha sido Boubacar, um professor catedrático senegalês de pele castanha, quem lhe falara “sobre a nova bolsa de investigação em Humanidades.” 512/514 “Ele tinha uma inteligência fenomenal e uma autoestima igualmente fenomenal.”512

Há três anos que vivia com Blaine “o seu homem bom”, um afro-americano professor em Yale. “Anos livres de rugas 18 passados num apartamento em New Haven, “com uma sala de estar inundada em jazz suave e luz do dia.”18  “Mas camada após camada de descontentamento (…) instalara-se nela.” 18 Havia cimento na sua alma 16 “Já lá estava há algum tempo, uma doença de fadiga matinal (…) de falta de fronteiras pessoais (…) Tinha vislumbres imaginários de outras vidas que poderia estar a viver. 16 Com Blaine, “Verdadeiramente, sempre se sentira sentada à janela a olhar para fora.”18

Blaine não tinha gostado de Boubacar, mas ela aproximara dele “como de uma pessoa que falasse a mesma linguagem silenciosa que ela”.(…) “Tinha um riso de família”. 513 Mentira a Blaine porque preferira ficar num almoço de despedida com Boubacar, “em vez de se ir pôr em frente à biblioteca da universidade a segurar um cartaz de protesto”.520 Mais tarde, reconheceu no tom de Blaine “uma acusação subtil, não meramente à sua preguiça, à sua falta de zelo e convicção, mas também à sua africanidade; não estava suficientemente furiosa, porque era africana, não afro-americana.” 521

E ao voltar para Princeton, para fazer a bolsa de investigação 32 “pensou num novo início para si, sem Blaine.” 535 Começou a sonhar e a concorrer a empregos em Lagos.

“Tenho de ir”18 foi como Ifemelu dissera a Blaine que tinha chegado ao fim. 18

Mais tarde as dúvidas assaltavam-na, “E se ela chegasse a Lagos e se desse conta do erro que tinha sido regressar?” 288 Felizmente podia voltar quando quisesse. “Um passaporte azul americano (…) protegia-a da falta de escolha.” 583 “Mas só quando o seu automóvel estava num navio a caminho de Lagos, lhe pareceu verdade.” 31

Lembrou-se da admiração que sentira por uma mulher gorda com uma saia muito curta, que vira na estação de Trenton. Pensara que “a atitude da mulher tinha a ver com a convicção calma que uma pessoa partilhava apenas consigo própria, uma sensação do que estava certo e os outros não conseguiam ver.” (…) “A sua decisão de voltar para a Nigéria era semelhante: sempre que se sentia assaltada por dúvidas, pensava em si própria como alguém corajosamente só, quase heróica, para esmagar a sua incerteza.”19


Tinham passado treze anos desde que Ifemelu deixara a sua família, os seus amigos e o seu namorado da faculdade, para estudar nos Estados Unidos. Chegou à América, perseguindo a obsessão de Obinze pelo “American Dream”, “ansiosa por compreender tudo (…) por usar imediatamente uma pele adaptada.210 Passava as suas horas livres na biblioteca e “escrevia a Obinze sobre os livros que ia lendo” 211 sobre o que via e aprendia. Ganhou novos hábitos e “saíam-lhe novas palavras da boca” 211

A faculdade,a sua amiga Wambui e,mais tarde, o blogue iriam desembaraça-la dos seus véus de neblina.

Quando começou a trabalhar para Kimberly como babysitter, foi a primeira vez que contactou com uma família branca privilegiada e compreendeu a diferença entre a forma como se via a si própria e a forma como era vista pelos outros. Aprendeu que para Kimberly “os pobres não tinham culpa” 232, descobriu que “havia luxo na caridade” e “desejou súbita e inesperadamente ser do país das pessoas que davam” 262

Com Curt, o seu namorado branco e rico, “tornou-se na sua cabeça uma mulher livre de nós e preocupações” 301/306 Curt ajudou-a a arranjar emprego, visto de trabalho, passaporte. Conseguiu um carro e um apartamento seu em Baltimore. Viajou pela Europa, teve acesso a um luxo e a uma riqueza que transformaram a sua situação de imigrante. “Gostava acima de tudo, de neste lugar de facilidade desafogada, poder fazer de conta que era outra pessoa”11/12

Mas foi também com Curt, ao vê-lo conversar com os amigos, que se apercebeu que “a um certo nível, nunca poderiam ser compreendidos por ela.” 317 e que ele nunca a compreenderia. Quando acabou com ele__traíra-o com Rob, porque sentira curiosidade 436__sentia que “Havia algo de errado nela (…) um conhecimento incompleto de si própria.”439 “já não sabia quem tinha sido, do que tinha gostado, o que tinha querido.” 439/456

Ainda com Curt tinha deixado de alisar o cabelo e começara a usar um penteado afro. Wambui  indicara-lhe  uma comunidade de cabelo natural  HappilyKinkyNappy.com  321, quando se sentira verdadeiramente infeliz com o seu cabelo.__” Wambui era tão segura, tão convincente!” 319 No dia em que conheceu Blaine, numa viagem de comboio a Willow 502, para ver Dike e a tia Uju, tinha decidido “deixar de fingir que tinha sotaque americano” 267 Depois de acabar com Curt cansou-se do trabalho, que a maçava. “Não tinha planeado despedir-se, mas subitamente pareceu-lhe ser o que tinha que fazer” 457 Nunca tinha perdido o contacto com Wambui e um fim de tarde escrevera-lhe um longo email a dizer “as coisas que ela não dizia a Curt, coisas por dizer e por acabar.” Wambui respondera-lhe “Devias criar um blogue” e “ ela ansiava por outros ouvintes e ansiava ouvir as histórias de outras pessoas.”449 Começou a escrever um blogue 459 anónimo chamado “Sobre Raça ou Várias Observações Sobre os Negros Americanos (Anteriormente Chamados Pretos) por uma Negra Não Americana.”13 Escrevia sobre discriminação, raça, classe, género e estatura.16 Mais tarde percebeu que o blogue ajudava centenas de imigrantes legais e ilegais que chegavam à América sem conseguirem apoio para continuarem na luta pelos seus ideais.

E quando atingira o estatuto social e cultural que a tornaria totalmente integrada na sociedade americana, “por vezes não se sentia segura do que escrevia, por vezes não acreditava no que escrevia” 15 Quanto mais escrevia, tanto menos segura se sentia. E “ tinha escrito o post   final no seu blogue há dias.”14

“Sentia saudades lancinantes do seu país.” 16 E qualquer insinuação de que a América a tinha modificado, ou “a sugestão de que tinha sido de alguma forma alterada pela América (…) eram espinhos cravados na sua pele.” 33

Tudo começara quando encontrara Kayode DaSilva no centro comercial. Tinham-se abraçado e voltado “às suas vozes nigerianas e às suas personalidades nigerianas” 340 Kayode falara-lhe do seu “camarada Zê” 341 Estava em Londres. Tinham acontecido mudanças na vida dele de que ela não estava a par e sentiu-se “profundamente traída ao ouvir aquela notícia.” 341 O encontro tinha-a perturbado profundamente e Curt tinha-o notado. Ela mantivera Kayode à distância e “ achou-o culpado por trazer Obinze de volta” 342 Mais tarde, nesse dia, enviara o primeiro email  a Obinze, depois de muito tempo sem dar notícias. Dizia-lhe que sentia a falta dele. “E ele não respondeu.” 343  ___»parte 3

Já estava numa relação recente com Blaine, 29 quando Ranyinudo, com quem se tinha mantido em contacto, lhe contou que “Obinze ia casar.” 28 “Entretanto, ele agora tem carradas de dinheiro. Vê só o que perdeste” Nessa altura ela “já tinha reconhecido a sua pequena chama acesa” Escreveu-lhe de novo. Desejara-lhe muitas felicidades no casamento e mencionara o negro americano com quem estava a viver 35/36. Ele respondeu agradecendo a mensagem e dizendo que nunca tinha sido tão feliz na vida. E ela não voltara a escrever-lhe.

Começara a vasculhar sites nigerianos “e cada clique trazia mais uma história de uma pessoa jovem que voltara recentemente para a sua terra (…) Sentia a dor surda da perda como se lhe tivessem tirado alguma coisa que era dela.” 16 “Eles estavam a viver a vida dela” 17

“Em Dezembro passado, quando Ranyinudo lhe disse que tinha encontrado Obinze por acaso (…) com a sua bébé” 29 “A Nigéria tornou-se (…) o único lugar onde poderia enterrar as suas raízes sem a necessidade constante de as arrancar e sacudir a terra.” 17

“E Obinze era a única pessoa com quem nunca sentira necessidade de se explicar.”17 Escrevera-lhe o  email  a dizer que ia voltar.

Obinze sabia que “ela era o tipo de mulher (…) que faria um homem virar a sua vida de pernas para o ar” 55

“E sentiu o impulso de alisar alguma coisa….” 35

 

 

Manuela Pereira                                                                                                  Clube Leitura_20/ 06/ 2023 

 



Obinze e Blaine: duas temperaturas para um

 termómetro

por 

Conceição Rocha

 

  Ifemelu tem em alto grau a qualidade de se pensar – dissecando as opções e acontecimentos da sua vida com distanciamento – e, ao mesmo tempo, de se entregar ao puro sentir, às  emoções e explosões de momento, a uma sinceridade quer amorosa, quer agressiva, sem pruridos de culpa ou racionalidade.

Jovem mulher de duas culturas, ou melhor, talvez, de uma cultura e outra em somatório sem que desapareçam as evidências quer de uma quer de outra, Ifemelu é intensa, inteligente, sensual, com uma força que parece distancia-la de qualquer espécie de opressão, subalternidade, humilhação, mesmo quando experimenta consigo a complexidade de atitudes da América racista e amaneirada, com o seu inventário de não brancos e o respectivo lugar na sociedade. A sua capacidade de abordar essa problemática num blogue é notável e não menor é a sua capacidade de sobrevivência nos quatro grandes estádios por que passa – adolescente e jovem em Lagos, onde vive o primeiro amor, emigrante africana pobre, africana bem sucedida na América académica, africana regressada a uma realidade outra, mas que é a África sua de origem.



E é nesse percurso que fazem sentido Obinze e Blaine, cada um ocupando um espaço mental e afectivo específicos, ambos portadores de prazer e sofrimento, cada um com uma personalidade que conhecemos pelos pensamentos e actos que vão sendo descritos e, sobretudo, pelo significado que esses pensamentos e actos têm para Ifemelu.

Não nego que gosto mais de Obinze do que de Blaine, até tenho a certeza de que é isso que Ifemelu quer e consegue. Obinze é o amor de descoberta, de frescura, de emoções simples, como simples eram nessa altura os seus protagonistas. Amando-se na igualdade de gostos e na diferença, na alegria espontânea e honesta do fruir dos corpos e do tempo comum.

A viagem de cada um para os dois mundos anglo saxónicos é também uma separação. Dura para ambos, as vidas de emigrantes africanos sem visto é dificílima. Obinze não é bem sucedido na Inglaterra, é explorado e repatriado. No entanto, faz fortuna na Nigéria emergente, casa, é pai, frequenta os meios certos. Mas a emoção por Ifemelu reaparece com os mails que ela não resiste a enviar e a vida quotidiana de tédio parece começar lentamente a espevitar-se, a princípio com emoção contida, a pouco e pouco com intensidade.

Entretanto, Ifemelu entra nos meios académicos e conhece Blaine, o típico intelectual de esquerda americano, movimentado com talento entre pares, praticante do politicamente correcto, irmão e amigo de uma colecção de neuróticas cultíssimas, profundamente empenhadas em evitar qualquer deslize reaccionário, vegetariano, sóbrio, austero, íntegro até à medula, incapaz de pensar ou agir sem tal subordinar a um significado. Homem bonito, corpo ginasticado, sabe vestir-se como académico de esquerda. Ifemelu conhece-o, impressiona-se e provoca o encontro. É bem sucedida, não à primeira, como seria de esperar de um homem como Blaine.

Ifemelu entrega-se, sem no entanto perder o mínimo de distanciamento que a torna lúcida e resistente a algumas hiper exigências do companheiro. No fundo, parece-me haver com Blaine mais atração, admiração, novidade, gosto em desafiar as suas capacidades de frequentar novos meios mais sofisticados do que aqueles que até aí teve, do que o tal amor que ficou na memória da Nigéria de Obinze e da sua juventude. Mas, aparentemente, adapta-se e sofre com o epílogo da relação.

Blaine é um homem previsível no seu dia a dia de integridade, emoções contidas, alimentação certa, amigos idênticos, tudo no seu lugar. Tendemos a considera-lo um chato. Não o é completamente, mas falta-lhe a centelha que Ifemelu merece.

Obinze é um homem calmo, seguro, também íntegro, mas a experiência do amor juvenil que não esquece faz-me pensar que possui a tal centelha. Menos bonito do que Blaine, o seu encanto não parece decorrer daquilo que é dito sobre a sua vida – apesar de uma mãe especial, constitui uma família tradicional, move-se num grupo social formal e até corrupto, ganha e gasta do mesmo modo que os outros. O seu encanto começa no que foi a sua relação com  Ifemelu, nas memórias desse amor vivo, informal, espevitado, que perdurou com tal força que até o encorajou a tornar novamente tudo claro e intenso.

Obinze é a opção certa. Enquanto for.

Obinze e Blaine, apesar das personalidades que bem os individualizam, são muito o que deles sabemos na relação com aquela mulher bela, inteligente, sensual. E essa imagem provavelmente favorece um e desfavorece o outro; a lente através da qual os olhamos  é muito forte e muito dirigida.

Este desfecho contraria aquilo que eu sempre pensei – que não há amor como o último. Aqui, é como o primeiro. Estou sempre disponível para aprender.

 

Conceição Rocha


O Clube Nigerpolitano

ou

“O espírito sintonizado com o outro lado do Atlântico”


por 

Delfina Rodrigues



I – O Retorno

Ifemelu entra no “Mariama African Hair Braiding”, no final do 1.ª capítulo, pág. 34, dondesai apenas na pág. 546, muitos capítulos e 6 horas mais tarde. Esta longa permanência,“num dia cheio da opulência do verão”, é motivada pela sua determinação de regressar àNigéria, ou a casa, como se lê: “… pestes a entrançar o cabelo para a viagem de regresso acasa” (pág.19) e serve de palco para a evocação da sua vida na Nigéria, primeiro, e duranteos treze anos vividos nos EUA, cujo sonho perseguiu como tantos nigerianos, depois.

Este primeiro contacto com a personagem dá conta de um vivido mas ultrapassadoconflito interior, entre regressar e permanecer, e do modo como a sua decisão surge tãopouco racional a olhos alheios. Como se trocar os EUA pela Nigéria fosse da ordem doirracional. Pesaram, para ela, razões emocionais, “saudades lancinantes do deu país” e nãoqualquer “epifania radical” ou “causa específica”, “simplesmente, camada atrás de camadade descontentamento instalara-se nela e formara uma massa que agora a impelia” (pág. 18).

Apenas Ranyinudo, amiga de Lagos, “fizera o seu regresso parecer normal”. Lagos, dizia-lhe,“está agora cheia de retornados americanos, por isso é melhor tu voltares e juntares-te aeles”. E assim aconteceu. Se na América descobriu a raça, como afirma, o regresso fá-ladescobrir uma cidade natal diferente da que deixara. Enfrenta agora uma cidade estranha,ou vista pela primeira vez com um olhar disfórico: são os” autocarros amarelos cheios debraços e pernas esmagados”; os “vendedores ambulantes suados a correrem atrás doscarros”; os” anúncios em gigantescos painéis publicitários”; os “montes de lixo que seerguiam nas bermas das estradas como uma provocação”… E interrogava-se: “Sempre foiassim, ou teria mudado muito durante a sua ausência?”; “E quando é que os lojistas setinham tornado tão grosseiros e os edifícios adquirido esta pátina de deterioração?”;

“Quando é que Lagos se tinha tornado uma cidade de pessoas prontas a mendigar edemasiado interessadas em coisas de borla?”. Eis algumas questões que lhe dominaram oolhar e o pensamento perante a Lagos a que regressava e que lhe valeram o epíteto deAmericanah, na voz de Ranyinudo, que a esperava no aeroporto.



Progressivamente o regresso ia sendo acompanhado de outras estranhezas que ainterpelavam, designadamente as relações amorosas utilitárias, os sinais exteriores daimportância social avaliada a partir do número de governadores presentes nos casamentes,o casamento como condição de sucesso, que a levou a mentir acerca da sua relação comBlaine e afirmar que ele viria mais tarde. E depois havia verdades objectivas: “Agora amulher que lhe entrançava o cabelo e a vendedora de banana da terra a tomar conta de umgrelhador enegrecido tinham um telemóvel e antes só os ricos tinham”.

Estrangeira em casa, Ifemelu vai-se instalando, numa (re)integração feita deestranheza e aconchego, até assumir o primeiro trabalho numa revista feminina a que secandidatara ainda nos EUA, que não dissipa, antes acentua as primeiras impressões.Considera a recepção na casa da patroa pouco profissional, mas enfim, entranhava a ideiaque se instalara: estava-se na Nigéria “onde as fronteiras eram esbatidas, onde o trabalhose misturava com a vida privada e se chamava Mamã à chefe”. A esta, outras impressões sejuntavam a completar o retrato que uma outra mundividência retirou da penumbra: era aestética das casas, o acabamento tosco das construções, a falta de profissionalismo dostrabalhadores a alimentar uma fúria crescente perante um trabalho mal acabado – “O problema é que nós já não temos artistas neste país”.

Na revista, encontra um microcosmo que encerra as mesmas questões e o confronto de mundividências entre os que saíram e os que ficaram no país, corporizado naspersonagens Doris e Zemaye, respectivamente. “Doris soava como se, de alguma forma, elae Ifemelu partilhassem o mesmo plano, a mesma visão do mundo”. Perguntava: “Tu andaste na Welson, em Filadélfia? Eu andei no Temple?” para que fosse imediatamente assente quepertenciam ambas ao mesmo clube superior, cumplicidade que Ifemelu não alimentava. E Zemaye insinuava: “Vocês as duas devem estar a falar do próximo encontro dos “Vindos - de

“”. Perceptíveis sinais de uma surda litigância entre entre grupos.


II – Os Vindos-de ou O Clube Nigerpolitano

É-lhe apresentado como “… uma data de pessoas que voltaram recentemente paracá, algumas de Inglaterra, mas principalmente dos EUA. …uma coisa discreta, só, tipo,partilhar experiências e estabelecer contactos”. Assim fala Doris. A voz narrativa descreve areunião como “Um pequeno grupo de pessoas a beberem champanhe por copos de cartãojunto à piscina de uma casa do Condomínio Osborne, pessoas chiques, todas a escorrerem savoir faire, cada uma delas ostentando uma excentricidade original própria- um penteadoafro ruivo, uma T-shirt com uma fotografia de Thomas Sankara, brincos artesanais exageradamente grandes…”(p.608) Surge aos seus olhos, no primeiro contacto, como umafeira de vaidades disfarçadas. Não dizem “estive em Harvard, estudei em Yale. Escondem o orgulho em falsamente despretensiosas referências metonímicas. Boston era a palavra decódigo para a Universidade de Harvard, New Haven para a Universidade de Yale.

Partilhavam uma familiaridade feita da possibilidade de fazerem referências comuns.

Carregadinhos de sentido crítico em relação à sociedade civil nigeriana, ao que a cidade nãooferece (sempre subliminar a vivência de civilização superior) e, recorrente, a “despretensiosa referência a evento em que se esteve “. Isto é, tinham, no regresso,” umacamada extra de verniz” que exibiam com displicência e com mal disfarçado orgulho.

E desfilam nostalgias da civilização abandonada: leite de soja magro, ligação rápida à Internet, bom atendimento ao cliente, restaurante italiano em condições…e outras tantasrejeições daquela em que (re)imergiram, designadamente os filmes de Nollywood. Ifemelu, que não tinha grande opinião dos filmes de Nollywood (cf p.28) dá consigo a afirmar: “Eu gosto dos filmes de Nollywood……podem ser melodramáticos, mas a vida na Nigéria é muito melodramática.” Torna-se evidente que esta opinião é ditada por um impulso de contrariar, uma forma de resistência ao perfil que definia os Vindos- de, em que decididamente não se revia.

Nostálgica do que perdeu e disponível para as idiossincrasias da sua cidade, do seu país, teme tornar-se no género de pessoa “têm o tipo de coisas que dá para comer”. Ela, que tinha saudades do estufado da mãe, “com uma camada de óleo a flutuar em cima do puré de tomate…” (p.593).

Constrangida na sua liberdade criativa, sai da revista e cria o blogue “As pequenas redenções de Lagos”, cujo post “O clube Nigeriano” expõe com a inteligência e o desassombro a que nos habituou a sua visão desta emigração de retorno:

“Lagos nunca foi, nunca será e nunca aspirou a ser como Nova Yorque, nem como qualquer outro lugar, diga-se. Lagos sempre foi indiscutivelmente ela própria, mas não se ficaria a saber isso num encontro do Clube Nigerpolitano, um grupo de jovens retornados que se reúnem todas as semanas para se queixarem de todas as coisas em que Lagos não é como Nova Yorque, como se Lagos alguma vez tivesse estado perto de ser como Nova Yorque. Uma confissão: eu sou uma dessas pessoas. …” (p.629)

Despida, porém, de falsos preconceitos e disponível para acolher as diferenças, porque ela sabia que a Nigéria se tornara no lugar “onde ela devia estar, o único lugar onde poderia enterrar as suas raízes sem necessidade constante de as arrancar e de sacudir a terra” (pág. 17) e admitir que “tinha sido de alguma forma irrevogavelmente alterada pala

América eram espinhos cravados na sua pele” (pág.33).

A Nigéria era, enfim, a terra onde ficou, em suspenso, um grande amor que agora

reencontrou.

Junho de 2023

Delfina Rodrigues