segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Oblomov




Da sobrancelha ao cotovelo: o percurso de Oblomov


por António Nabais


Depois de conseguir, finalmente e depois de várias tentativas sempre adiadas, levantar-se da cama, Oblomov, na realidade, continua deitado, porque estar de pé não é apenas uma actividade física, é um estado de espírito. Efectivamente, Iliá Ilitch Oblomov não tem força de vontade, adia constantemente planos, evita decisões e está decidido, passe a contradição, a não sair de casa. Pelo que percebemos, este carácter resulta da educação recebida, da hereditariedade ou de ambas: o pai, na p. 142, “não está ocioso. Fica toda a manhã sentado á janela a observar rigorosamente tudo o que se passa no pátio”; a mãe também “anda muito ocupada: fala durante três horas com Averka, o alfaiate.”
É este homem fraco que encontrará Olga Sergueiévna. Coube a Stoltz, o amigo alemão, apresentá-los. Olga é uma mulher rara, ignorada pelos inteligentes e temida pelos tímidos. A primeira vez que se encontram, Oblomov fica impressionado pelo olhar de Olga (p. 249).
Poucas páginas depois (pp. 251-252), Oblomov procura concentrar-se na aparência exterior de Olga. Tudo é vago do pescoço para baixo, mas minucioso na descrição do rosto. Mesmo assim, o que interessa é não o aspecto físico mas o reflexo do interior: os lábios revelam “a presença de um pensamento sempre concentrado em qualquer coisa.”; o olhar (não os olhos) mostrava um “pensamento eloquente”. As sobrancelhas merecem destaque, não só porque transmitem beleza aos olhos, mas também “porque raramente se mantinham simétricas: uma era um pouco mais alta que a outra, e por isso formava uma pequena ruga por cima da sobrancelha, parecendo indicar a presença de um pensamento ali escondido.”
Mais à frente, na p. 259, o maravilhamento de Oblomov com a beleza de Olga fica-se pela região superior do corpo: os olhos, sorriso, os dentes.
Surge, então, entre ambos, uma atracção que só será verdadeiramente entendida posteriormente. Nessa relação, tendo em conta a fraqueza de Oblomov e a força de Olga, é fácil perceber quem assume a posição dominante.
Essa hierarquia, por assim dizer, é perfeitamente aceite por ambos. Olga quer modificar Oblomov, curá-lo da terrível “oblomovite”. Na p. 302, Olga é a “mulher no papel dominante”; mais à frente, na p. 308, é o homem que é Galateia e a mulher, Pigmalião.
Olga é, portanto, uma mulher superior, no sentido de alguém que vive na sua cabeça. As referências aos olhos e, mais especificamente, às sobrancelhas servem para confirmar isso mesmo. A alusão às sobrancelhas inclui a assimetria e a ruga pensativa. Oblomov, na p. 347, considera que é “nessa ruga que reside a sua tenacidade”.
Viremos a saber que Olga não amou Oblomov. Não poderia amá-lo. Amou aquilo em que iria transformar Oblomov, um Oblomov imaginário, curado da oblomovite. Todavia, como poderia Oblomov não sofrer da doença, sendo que essa doença é, afinal, o seu carácter. Pode alguém deixar de ser quem é? Pode alguém curar-se de si próprio? Basta ter consciência disso? Talvez, no fundo, Olga já amasse Stoltz, uma espécie de príncipe encantado.
Stoltz, aliás, com a sua habitual perspicácia, explica: “se no lugar dele [Oblomov] estivesse outro homem (…), sem dúvida que as vossas relações teriam evoluído em amor, fortaleciam-se, e nesse caso… Mas isso é outro romance e outro herói, com que nada temos a ver.” (p. 551) A própria carta de Oblomov explica isso mesmo, na p. 552.
Incapaz de acompanhar a sobrancelha de Olga, Oblomov descobre os cotovelos de Agáfia Matvéiena. Da razão e da inteligência, Oblomov desce à carne.
Quando, na p. 388, Agáfia entra na sala, Oblomov já a tinha visto “de pescoço e de cotovelos nus.” O adjectivo poderá não ser apenas objectivo, até porque o seu uso é frequente, a propósito de Agáfia. Na p. 399, surge três vezes: note-se, a propósito, a atracção irreflectida presente na frase “[Oblomov] deu com o olhar no busto alto e nos ombros nus.”
A mulher, que já não era apenas pescoço e cotovelos, é descrita em dois parágrafos. Há um pormenor curiosíssimo: Agáfia quase “não tinha sobrancelhas” (p. 388).
O primeiro diálogo entre ambos mostra que esta mulher se coloca num plano inferior ao dos homens, como se pode verificar no facto de que prefere que seja o irmão a falar.
Agáfia é, portanto, alguém que não pensa (essa alusão surge algumas vezes: “nunca se interrogava”, “não pensava”), ao contrário de Olga, com a sua sobrancelha analítica.
Seduzido pelos cotovelos de Agáfia, Oblomov encontrará a felicidade com alguém que não pretende modificá-lo e apenas servi-lo, o sonho, no fundo, de qualquer preguiçoso, o que, sendo simplista, não deixa de ser verdadeiro. Numa relação perfeitamente equilibrada, a mulher vive satisfeita por poder servir o homem.
A obtusidade de Agáfia é referida mais do que uma vez, não ficando a impressão de que isso seja um defeito, mas uma característica. É a impossibilidade de análise que faz com que ela própria não se aperceba do amor que sente por Oblomov. Cabe ao narrador, numa espécie de debate, explicar os sinais desse mesmo amor, entre as pp. 496 e 500, numa explicação tão pormenorizada que parece querer chegar ao próprio entendimento de Agáfia.
Na p. 502, é o narrador, usando de omnisciência, que explica o que simbolizam, em parte, os cotovelos de Agáfia: “A atitude dele para com ela era muito mais simples: via em Agáfia Matvéiena, nos seus cotovelos sempre em movimento, nos seus olhos preocupados e atentos a tudo, nas eternas deslocações do armário para a cozinha, da cozinha para a despensa, dali para a cave, no seu perfeito conhecimento do governo da casa e de todos os confortos, a encarnação do ideal daquele repouso imenso como o oceano, inviolável, cujo quadro ficara indelevelmente impresso na sua alma desde a infância, sob o tecto paterno.”
Na verdade, as constantes referências à nudez também insinuam algum desejo por parte de Oblomov que descobre em Agáfia a companheira que lhe permite exercer a sua oblomovite em paz. Olga terá sido um acidente que lhe permitiu perceber que nunca mudaria, uma oportunidade para perceber que mulher deveria amar ou por que mulher deveria ser amado. O percurso de Oblomov vai, portanto, do cérebro para o corpo, de Olga para Agáfia, dos olhos para o cotovelo desnudado, o cotovelo que é um braço que trabalha e a carne que atrai. Tudo está bem quando acaba bem.


Oblomov

Zahar o criado, Oblomov o senhor
 - opúsculo sobre uma ociosa luta de classes


  por Conceição Rocha



Na Rússia, até ao fim da monarquia, a estratificação social compreendia, no fim da escala, o grupo dos servos e imediatamente acima o dos criados. Havia alguma diferenciação de estatuto embora, ao que parece, a película diferenciadora fosse muito ténue e até porosa. Aqueles pertenciam à terra e, por conseguinte, à família terratenente, eram transaccionados com ela, mas não eram propriamente escravos, pois se se inscrevessem no exército ou na marinha, ou se ingressassem num convento, obtinham automaticamente carta de liberdade        (os homens, claro); também ganhavam algum dinheiro com o lucro de produtos que vendiam, sobretudo peles e com esses proventos podiam comprar a liberdade. Na Sibéria ganhava também alforria o servo que abatesse um urso, sendo essa alforria para a família directa toda, se urso e servo morressem no acto de caça.
Quanto aos criados, provinham de grupos familiares que serviam famílias nobres ou burguesas com algumas posses, por vezes ao longo de gerações cuja antiguidade se perdia no tempo. Ambos os sexos tinham uma função decisiva e específica junto da família: o sector feminino tratava da casa e seu governo, da capoeira e da pocilga, da cozinha e da aleitação e criação das crianças. O sector masculino ocupava-se do serviço de portaria e de mesa, tratava de tudo o que dizia respeito ao quotidiano dos homens da casa - escolha e tratamento das roupas, ajuda na toilette, asseio e transporte das armas de caça, asseio dos cavalos e condução dos "veículos", levar e trazer de recados e, sobretudo, grande participação na vida íntima do senhor-  mensageiro, auscultador de novidades junto dos seus pares nas outras famílias, etc. Ambos, criados e criadas tinham salário, consta que misérrimo e nulo mesmo, se a família estivesse falida.
A relação criado/criada - família patronal era típica deste modelo de estratificação e não muito diferente do que ocorria no ocidente alguns séculos atrás: uma relação de confiança mútua baseada na habituação e na proximidade, uma relação de fidelidade por parte dos criados, fundada no facto de saberem não ter melhor futuro se abdicassem do serviço à família, não terem escolaridade que lhes permitisse enfrentar o mundo com alguma confiança e, como consta de todos os manuais de sociologia, a convicção acrítica de que cada um ocupa um lugar determinado no mundo e há que rentabilizá-lo da melhor forma. Essa convicção e a proximidade ao longo de gerações gerava mesmo algum afeto mútuo ou, pelo menos, da parte do criado pelo senhor. São os meandros desta relação que muita ficção explora, desde os romances de cavalaria, o D. Quixote de la Mancha, a commedia del'arte, as obras dos grandes russos do século XIX, a ópera de Mozart até Rossini, o nosso Eça  do Primo Basílio até, no século XX, por exemplo, ao teatro de Ibsen.
Claro, minhas e meus amigos, que este tema dava uma tese de doutoramento daquelas chatas e recheadas de citações, cheias de reflexões ideológicas, obviamente de Marx, Engels e socialistas utópicos com especial incidência em Proudhon ( não me responsabilizo pelo Saint Simon que era conde e não sei como tratava os criados) e em todos aqueles que em boa hora metralharam a malandragem aristocrática, abanando os alicerces das stairs nos upstais/downstairs deste mundo perverso - Lenin, Rosa Luxemburgo e o divino Trotski, percursor de Catarina Martins. Diria eu graças a Deus, não fosse o medo que tenho de Deus desde que ele pertence ao Daesh.
Posto o prólogo, que tem por objecto mostrar às amigas e aos amigos como vou frequentando a cultura, vamos ao Zahar e sua entourage. Em nada diferente do tradicional criado pessoal, até naquele detalhe que faz a diferença e individualiza cada dueto criado-senhor: a adaptação às características de personalidade do amo, o ser a outra face da moeda, simultaneamente distanciado para criticar e fugir e próximo para compreender e encontrar soluções. Entre Sancho Pança e Zahar a diferença está no senhor: activo/delirante de um e indeciso/ocioso do outro. Ambos espertalhões e extraordinariamente práticos, ajustam a sua vida conforme a leitura que fazem do mundo a partir dos patrões, nisso despendendo o menor esforço e a eficácia possível. Comer e dormir são a sua  luta, desenvolvida na máxima proximidade do amo, que vigiam e servem sem a menor preocupação de competência. Desleixados, línguas afiadas, porquíssimos, desbocados para com o amo, são agressivos contra aqueles que entendem explorá-lo ou enganá-lo.

Zahar acompanha Oblomov desde sempre e para além da morte. Conhece-o tão completamente que até sabe a duração dos sonos do amo para avaliar o tamanho das escapadelas que pode dar. É o companheiro perfeito da preguiça absoluta de Oblomov: o centro do mundo para si é o fogão, junto do qual dorme, dormita e faz sorna entre o prato de comida que a mulher lhe serve, a indignação de faz de conta por não poder calçar as botas ao amo, por receber deste ordens e contra ordens que cumpre partindo e estragando tudo. Medíocre senhor, medíocre servo, no entanto ciente este do papel que lhe compete: tudo fazer ao amo desde que este acorda até que adormece, tudo fazer que neste caso é sobretudo tudo não fazer: não limpar, não cuidar da roupa, não conservar nada direito; lutar com as botas, argumentar, lamentar, sobreviver com expedientes, ocupam os momentos que sobram do borralho do fogão. Alguma emoção se adivinhou quando sobre Oblomov pairou a asa da paixão, levar e trazer recados sempre alterou um pouco a rotina, mas tudo se esfumou no fim previsível.
As revoluções industrial, primeiro, política depois,  acabaram com os Zahars, embora cá na terra tenham ficado uns simulacros encarnados nas sopeiras de origem rural que, de bigodes, pernas peludas e aventais de riscado pontificaram entre a cozinha e a sala, com baixo salário, segurança social nenhuma, vítimas daqueles a quem foram chamando alegremente  meninos e meninas, mas que nunca as sentaram à mesa, embora na sua gíria social as designassem por "família".
Acomodado à preguiçosa Oblomovite, privado de qualquer ambição que não fosse chegar vivo e alimentado até ao dia seguinte, folgado e grato pelo destino não lhe ter reservado um amo que o espancasse, Zahar vê um dia alterado o sossego da sua pequena vida: Oblomov morre e deixa-o desprotegido, como seria de prever. Miserável, passa por outros empregos onde exercita sem sucesso a sua capacidade de estragar e preguiçar. Restam-lhe as saudades do amo, cuja campa de vez em quando visita para recordar os bons tempos. Pelo menos é o que diz a Andrei Ivánitch Stoltz, de quem recebe esmola e promessa de mais alguma coisa se aparecer em casa.
Zahar aprendeu certamente com as várias gerações de antepassados essa espécie de fidelidade irracional que, alicerçada na diferença, acaba por se amalgamar com o amo, como a rocha que se vai formando com os minerais que a natureza lhe pôs ao alcance.  Em menos de uma centena de anos essa amálgama vai implodir e dar lugar a outras fidelidades. Os tovaritchs também chamavam paizinho ao Stalin.

Moral da História: nem Oblomovs, nem Stalines, nem o Reino Unido com os upstairs e os downstairs, viva o sossego com a querida Geringonça.

  
Porto, 2 de Julho, 2016


Concenka Pintova  Rochova 


segunda-feira, 25 de julho de 2016

A MÚSICA EM "OBLOMOV"

Os romances estão sempre cheios de música.    Que música se ouve  em Oblomov, um romance de Ivan Gontcharov publicado em 1859 na Rússia ?
 por Alexandra Azevedo


A criadagem ociosa está sentada ao portão; ouvem-se ali vozes alegres, gargalhadas, o som de uma balalaica, as raparigas brincam à apanhada. (101)
Mas já começa a entardecer. De novo crepita o lume na cozinha, de novo se ouve o som miudinho das facas: prepara-se o jantar.
A criadagem reuniu-se junto aos portões: ouve-se uma balalaica,ouvem-se risos. Os criados jogam à apanhada. (149)     


O senhor é músico?- perguntou Olga para o tirar do embaraço.
Nesse momento Stoltz aproximou-se.
- Iliá! Eu disse a Olga Serguéievna que tu és um apaixonado pela música, pedi-lhe que cantasse alguma coisa...Casta Diva. 


- Por que andas a dizer coisas a meu respeito?- replicou Oblomov.(...)
- De que música é que gosta mais? - perguntou Olga.
- É difícil responder a essa pergunta! Qualquer música! Por vezes escuto com prazer um realejo roufenho, um tema qualquer que não consigo tirar da memória,




 outras vezes saio a meio de uma ópera; Meyerbeer pode emocionar-me; 



ou até uma canção de barqueiro: 



depende do estado de espírito! Por vezes até Mozart me faz tapar os ouvidos...

- Portanto, gosta verdadeiramente de música. (254)


*
Ao passar diante das janelas de Olga, ouviu como o seu peito opresso se aliviava com os sons de Schubert, como que a soluçar de felicidade.

Meu Deus! Que bom viver neste mundo!(344)

*
Lançou um olhar ao camarote: os binóculos de Olga estavam dirigidos para ele.
«Ah, meu Deus!- pensou.- E não tira os olhos de mim! o que encontrou em mim? Que tesouro ela descobriu! Agora com a cabeça indica-me o palco...parece que os janotas estão a rir-se, a olhar para mim...Meu Deus, meu Deus!»
De novo agitado, coçava freneticamente a nuca, de novo cruzava as pernas.
Ela convidou os janotas do teatro para tomar chá, prometeu cantar a cavatina e disse-lhe que fosse também. (415)




*
_ Não, você tem que me dar conta do meu Iliá- insistia Stoltz. _ O que é que lhe fez? Porque não o trouxe consigo?
_ Mais ma tante vient de le dire- disse ela.
_ Ele é terrivelmente preguiçoso- observou a tia- e tão insociável, que assim que se reuniam três ou quatro hóspedes em nossa casa, ia-se logo embora. Imagine que comprou uma assinatura para a ópera e não ouviu nem metade da assinatura.
_ Não ouviu Rubini _ acrescentou Olga.
Stoltz abanou a cabeça e suspirou. (525)

Giovanni Battista Rubini (1794-1854) famoso tenor italiano 

Nota: Excertos de Gontcharov, Ivan (2015) Oblomov , Tinta da China, Lisboa
  

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Oblomov _ Verba volant, scripta manent!



 Verba volant, scripta manent!

Oblomov de Ivan Gontcharov

Temas de reflexão:

·      Os cotovelos de Agáfia Matvéievna vs a sobrancelha de Olga 
·      O russo Oblomov vs o português Carlos da Maia
·      Andrei, o cometa brilhante vs Oblomov o astro apagado
·      As luvas cor de palha vs o cafetã surrado
·      Oblomovka vs Viborg
·      O homem vs a mulher;
·      Os maridos vs as esposas

·      Zakhar, o criado vs Oblomov, o  amo  




      O russo Oblomov vs o português Carlos da Maia

Alexandra Azevedo


     A leitura do romance  “Oblomov” do escritor russo  Ivan Gontcharov cuja primeira edição data de 1859 evoca, a vários títulos, o romance “Os Maias” de Eça de Queirós publicado vinte e nove anos mais tarde, em 1888.
     De facto, vários são os paralelismos que podemos estabelecer entre as duas obras.
    Começando, desde logo, pelo título, constatamos que tanto numa obra como na outra, este corresponde ao nome de personagens, embora o plural de “Os Maias” implique a ideia de que se vai contar a história de uma família enquanto no romance russo, Oblomov é, simplesmente, o nome da personagem central.  Poder-se-á objectar que  o romance de Eça ostenta um subtítulo, Episódios da Vida Romântica, que não está presente em “Oblomov”. No entanto, se Eça assume explicitamente a intenção de descrever um certo estilo de vida dominado pela visão da vida e do mundo que o Romantismo trouxe à sociedade portuguesa e que persistia ainda na década de 70 do século XIX, Gontcharov dá conta dessa mesma influência na sociedade russa com um olhar eventualmente mais benevolente, mas igualmente critico. Evitava (Oblomov) principalmente aquelas meninas pálidas e melancólicas, na sua maior parte com olhos negros, em que se reflectem «os dias aflitivos e as noites iníquas», meninas com tristezas e alegrias    que ninguém conhece, que têm sempre alguma coisa a confidenciar, a contar, e quando é preciso dizer, estremecem, desfazem-se em lágrimas inesperadas, depois agarram de súbito o pescoço da amiga com as duas mãos, olham-na longamente nos olhos, depois olham para o céu, dizem que há uma maldição na sua vida e por vezes caem em desfalecimento. (Oblomov,78) É verdade que este retrato caricatural da mulher romântica não enquadra o perfil de  Olga Serguéievna, a personagem feminina principal celebrada pela sua inteligência, naturalidade e beleza, mas nem mesmo ela escapa totalmente ao modo romântico de encarar o sentimento amoroso quando suspeita estar apaixonada por Stoltz. Rebuscava na sua experiência: não encontrava lá nenhuma informação sobre um segundo amor. Lembrava-se das opiniões das tias, de velhas solteironas, de várias pessoas inteligentes, finalmente de alguns escritores «pensadores do amor» - de todos os lados ouvia a sentença implacável: «A mulher só ama verdadeiramente uma vez.» (…) Não, ela não sentia amor por Stoltz – decidiu- e não podia sentir. Tinha amado Oblomov, esse amor morrera, a flor da vida definhara para sempre. (Oblomov 535)




    Por seu lado, Eça faz a  personagem central do seu romance, Carlos da Maia, auto-recriminar-se  ao descobrir que não passava de um romântico imbecil. E seria tão fácil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquela deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brasileiro! Mas quê! A sua paixão absurda de romântico pusera-lhe logo entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma dessas névoas douradas que dão às montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! (Os Maias, 484).E, no diálogo final entre Carlos da Maia e João da Ega, este último faz uma síntese do que fora a vida de ambos, vivida à luz do Romantismo . – É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar a minha vida inteira! Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor à vida – a paixão.- Muitas outras coisas dão valor á vida…Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!_ E que somos nós?_exclamou Ega. _ Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão… (Os Maias 714)


    A amizade incondicional entre  Carlos da Maia e João da Ega tem, aliás, um contraponto muito claro na amizade entre Oblomov e Stoltz, também ela ilimitada e total. Tanto num como no outro romance, cada um destes pares de personagens encarna a amizade isenta de competição e invejas, a amizade verdadeira.
   Um outro paralelismo entre as duas obras é a educação a que são submetidas as personagens enquanto crianças. A educação de Oblomov em Oblomovka assemelha-se muito à de Pedro da Maia pelo excesso de protecção de  que ambos são alvo, nomeadamente por parte das respectivas mães. Queria subir à colina, ver para onde fora o cavalo. Dirigiu-se ao portão, mas da janela ouviu-se a voz da mãe:- Ama! Tu não vês que o menino anda ao sol? Leva-o para a sombra; se lhe aquece  a cabeça, vai adoecer, ficar agoniado e não come. Ainda o vais deixar fugir para o barranco! (Oblomov 141)
     Comportamento semelhante tem  Maria Eduarda Runa, mãe de Pedro da Maia. Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros pensativo, triste daquela fraqueza do filho… (Os Maias ,18)
    Por sua vez, a educação rigorosa de Stoltz, imposta pelo seu pai alemão assemelha-se à educação “à inglesa” a que Afonso da Maia submete o seu neto Carlos, privilegiando a vida ao ar livre, o rigor e a disciplina. Ao libertar-se das lições, corria a devastar os ninhos dos pássaros com os rapazes da aldeia, e por vezes, no meio de uma aula ou da oração, ouvia-se-lhe no bolso o pio de pequenas gralhas. (…)Acontecia também o pai estar sentado debaixo de uma árvore no jardim a seguir ao almoço. A fumar cachimbo e a mãe a tricotar uma qualquer camisola ou a bordar na talagarça; de repente, ouve-se um barulho na rua, gritos e uma multidão de pessoas irrompe pela casa. _ O que se passa?_ pergunta a mãe alarmada._ Pelos vistos trazem outra vez o Andrei_ diz o pai calmamente. Escacaram-se as portas e uma multidão de mujiques, de mulheres e rapazes irrompe pelo jardim. De facto, traziam o Andrei_ mas em que estado: sem botas, com as roupas rasgadas e um nariz partido, o dele ou o de outro rapazinho.(…)A mãe fica em lágrimas, o pai nem por isso, ainda se ri (Oblomov 199) Também Afonso da Maia, para escândalo dos criados e dos amigos da família deixa Carlos brincar com os filhos dos caseiros em Santa Olávia, sujar-se na terra  e fazer ginástica na barra do trapézio. E perante o abade  que timidamente insiste que se “deve começar pelos clássicos e pelo latinzinho”, Afonso expõe a sua teoria: _ Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois… A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande…(Os Maias, 63)   
     Mas as semelhanças entre Andrei Stoltz e Carlos da Maia ficam-se pela infância  já que o Carlos adulto se aproxima mais de Oblomov com quem, aliás,  partilha o estatuto social e a cuidada preparação académica, pois tal como ele também Carlos falha o seu projecto de vida. Na verdade, ambos tinham na juventude grandes ambições. Dez anos antes, Oblomov sonhava, como lho recorda Andrei «servir a Rússia enquanto tiver forças, porque a Rússia necessita de braços e de cérebros para a exploração dos seus recursos inesgostáveis (as palavras são tuas); trabalhar para mais docemente descansar, e descansar significa viver outro lado da vida, artístico, mais elegante, a vida dos artistas, dos poetas» (Oblomov 237) Do mesmo modo, Carlos chega a Lisboa, já médico, disposto a uma vida de estudo e investigação e faz instalar um moderno laboratório “ com uma vasta de mesa de mármore e um amplo divã de crina para o repouso depois das grandes descobertas” mas “ não tinha realmente tempo de se ocupar do laboratório; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilégio de saber o segredo das coisas_ como ele dizia rindo ao avô. (Os Maias, 128)
    Assim, e aparentemente, a sociedade portuguesa está tão adormecida como a sociedade russa e ambas fazem murchar todos os sonhos de juventude que depressa se diluem na mediocridade  do quotidiano. É isto que constata Oblomov quando reage às invectivas de  Andrei para que saia da sua indolência: O mundo e a sociedade! Tu, Andrei, provavelmente levas-me de propósito para esse mundo e essa sociedade para que eu perca mais depressa o desejo de lá ir. Vida: que bela vida!(…) Tudo aquilo são pessoas mortas, adormecidas, piores do que eu, esses membros do mundo e da sociedade!(…)  E a nossa juventude, o que faz ela? Não está a dormir enquanto percorre a Avenida Nevski, a pé ou de carruagem, e enquanto dança? Uma contínua e fútil mistura dos dias! (Oblomov 227)  
   É flagrante a semelhança entre este desabafo de Oblomov e o espanto de Carlos, regressado de Paris, ao observar os jovens que passeiam na recente Avenida que substituía agora  o pacato e frondoso Passeio Público: Carlos pasmava. Que faziam ali, às horas de trabalho, aqueles moços tristes de calça esguia? (…) E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos. (Os Maias, 702)
   Mas o próprio Carlos não é, afinal, muito diferente desses jovens que observa pois também ele leva uma vida fútil e sem objectivo Vivia, ria, governava o seu faetonte no Bois e como o próprio diz: Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na estrada de Saint-Cloud…Vim no «Figaro» (Os Maias, 713)
    Coincidem, deste modo, os dois romancistas na análise e no diagnóstico social que fazem e, se a personagem de Oblomov se entrega caricaturalmente, coerentemente e conscientemente à indolência, rejeitando a ideologia do trabalho que o seu amigo lhe apresenta, por inútil numa sociedade à deriva, também Carlos sofre de uma oblomovite à portuguesa e a sua  existência  é, assim, não menos caricaturalmente reduzida à do « homem rico que vive bem». Nada mais infensivo, mais nulo e mais agradável. (Os Maias, 713)
     Oblomov, o russo vs Carlos da Maia, o português podiam pois, perfeitamente, mudar os seus nomes para Iliá da Maia Oblomov vs Carlos Oblomov da Maia, ambos inúteis, ambos superiores, ambos irremediável e surpreendentemente irrelevantes.
     E trabalhar…que trabalhe o alemão!  

Gondar, 4 de Julho de 2016





quarta-feira, 6 de abril de 2016

A Casa e o Mundo



Verba volant, scripta manent


A CASA E O MUNDO

por Alberto Teixeira

Tagore representa, no seu livro, uma metáfora da Índia nas vésperas da independência. Nikhil é um ocidentalizado pragmático. Percebe que a defesa do produto nacional, que poderá ser uma excelente opção política, é economicamente ruinosa. São dele as palavras “poderá a força prevalecer contra a vontade?” Sandip teve idêntica formação académica a Nikhil, foram ambos colegas de universidade. No entanto, não poderiam ser mais diferentes. Nikhil representa a boa educação britânica, a correção, as boas maneiras; Sandip é Nietzche a falar “ser justo é próprio de homens vulgares, aos grandes está reservado ser injusto; a liberdade baseia-se na injustiça”. Sandip está para além do bem e do mal “admitir um erro é o maior de todos os erros, é um exemplo típico de fraqueza”.Bimala é a Índia perdida entre duas posturas diferentes, “quando, como os rios, nos conservamos junto das nossas margens, nutrimos tudo quanto temos; quando as galgamos, destruímos  tudo o que somos”. Nada de mais profético! Bimala vai oscilando entre um casamento que, não sendo opressivo, não lhe coloca desafios e um potencial amante que a estimula. Hesita com cautela e sempre sob a espada do arrependimento, “se na hora precisa de se embriagar com qualquer coisa, que não seja com uma mulher”.
Nikhil e Bimala

Nikhil é um epicurista moderado e sensato, “é sem dúvida melhor encarar o mundo a rir do que inundá-lo de lágrimas, pois é graças à primeira atitude que o mundo vai andando”, mas também é um moderno face a Sandip que traz ao de cima tudo o que há de mais primitivo no ser humano, “aqueles que vencem neste mundo criam a verdade, não a respeitam cegamente; os que dominam não temem a mentira; os grandes mentiras são os principais ingredientes dos imensos caldeirões onde fervilham os programas políticos; o objetivo do homem não é a verdade e sim o êxito; mil ou duas mil rupias teriam o ar de roubo mesquinho, cinquenta mil manifestem-se de toda a amplitude do banditismo romântico”. 

Sandip
s

Sandip é um amoral que constrói o bem e o mal à sua medida que supõe ele está de acordo com a causa, com os desejos de toda a Índia. Nikhil tem uma postura democrata, um democrata liberal, “exercer a tirania para bem do país é tiranizar o país; a liberdade sentida é a maior coisa que pode haver para o homem, nada se lhe pode comparar, absolutamente nada; só quando chegamos ao ponto de deixar sair o pássaro da gaiola compreendemos como ele nos liberta, a nós”.  O altruísmo de Nikhil assenta na tradição religiosa indiana, muito semelhante ao credo budista em certas posturas. O seu Mestre, à boa maneira daqueles tutores dos príncipes da antiga Grécia, foi sempre o seu guia espiritual e mentor, “só somos senhores de nós próprios quando conseguimos expulsar os desejos do nosso espírito”. O não querer, não desejar é uma postura budista que pretende evitar o sofrimento pela não ação. Segundo esta doutrina o sofrimento é provocado pelo desejo frustrado, pelo impedimento de alcançar o que foi ambicionado. Na verdade, Buda era um príncipe que se despojou de tudo, cansado da riqueza. Foi um ato de coragem, mas não mais do que isso. Seria muito diferente se um faminto não quisesse pensar em comida para não sofrer e não ambicionasse um lauto jantar.

Entre os dois Bimala vai hesitando e Amulya, seu fiel servo, desabafa pelos dois “aquilo a que chamamos piedade é no fundo apenas piedade de nós próprios, antes compaixão, não temos coragem para seguirmos os nossos instintos mais delicados e por isso não atacamos”. Amulya não rouba nem Bimala chega a trair verdadeiramente o marido, “porque será que quando mudamos, não mudamos completamente?”. O medo da mudança! De passar definitivamente para o lado de lá. Bimala é a Índia fascinada pelo desejo de se afirmar, mas muito amarrada ao conforto Inglês, ao modo de vida dos Ingleses.
Quando Sandip pergunta a Nikhil “será que aquilo que acontece é a própria verdade?” e este lhe responde “que outra verdade poderá haver?” ficamos com um dualismo ancestral nas mãos, o  relativista e construtivista Sandip versus um realista algo ortodoxo, Nikhil. Para o primeiro a realidade é uma construção que se vai fazendo de acordo com as necessidades, para o outro a realidade é o que é, o que se sente e vê acontecer.
Nikhil estava destinado a um fim trágico como todos os que, durante uma tempestade, agem como se nada estivesse a acontecer e continuam plautinamente com a sua vida.


segunda-feira, 21 de março de 2016

A Casa e o Mundo


BIMALA E NIKHIL

por Maria João leite de Castro

A relação entre Bimala e Nikhil, embora contextualizada na época e no espaço, não é essencialmente diferente de uma relação amorosa em que a mulher se subalterniza face ao homem e considera que essa subalternização é, não só legítima e necessária, como também desejável.
Na verdade, embora Nikhil considerasse que marido e mulher são iguais no amor porque têm direitos iguais uns sobre os outros, Bimala, apesar de reconhecer a grandeza do marido nessa afirmação, admite que, se Nikhil aceitasse a sua adoração e veneração, ter-lhe-ia prestado um verdadeiro favor..
Penso que é neste aspecto que residem os maiores problemas que vão, ao fim de nove anos de casamento e de suposta ilusão de felicidade, ameaçar desmoronar toda a relação.

                      Tanto Nikhil como Bimala vivem contradições internas que espelham as contradições existentes no país entre modernidade/autonomia e tradição/submissão.
Nikhil é, de facto, a personagem mais livre da narrativa. Ele deseja também para Bimala essa autonomia e por isso não quer que ela fique confinada à casa, ao zenana e ao purdah, mas que desabroche completamente em toda a sua verdade e força. E mesmo quando reconhece que essa passagem do mundo estreito para o vasto mundo é tempestuosa e pode correr o risco de a perder, Nikhil aceita esse sofrimento em função daquilo que lhe parece justo.

Mas qual é verdade e a força de Bimala?
Ensinada desde criança a considerar a dedicação ao marido como a própria beleza, no seu aspecto interior é natural que, confrontada com a “modernidade” de Nikhil, se sinta simultaneamente orgulhosa e desencantada.
Esse desencantamento agudiza-se no encontro com Sandip, pois este personifica o ideal de masculinidade que Bimala se habituou a idolatrar: orgulhoso, intempestivo, agressivo, apaixonado, com um discurso hipnótico e adulador.
A entrega apaixonada à Causa é muito mais uma entrega a Sandip do que aos ideais que ambos afirmam professar. E essa entrega, embora Bimala a descreva como um estado de embriaguez na qual não reconhece o seu próprio “eu”, alterna com estados de lucidez em que se debate com sentimentos contraditórios, em que põe em causa as suas avaliações, o carácter de Sandip e Nikhil, os seus valores, etc.
Tal como Nikhil previa, Bimala atravessa tempestuosamente o caminho entre a casa e o mundo. E regressa a casa com maior consciência dos valores que pretende adoptar, das escolhas que deseja fazer…talvez a verdade de Bimala lhe tenha permitido deixar de ser peão do destino, apesar de continuar a ajoelhar perante os pés do marido, em sinal de reverência.
Talvez a sua força e verdade se revele nas últimas páginas quando diz (…) Havia tão pouco tempo, ainda, que me preocupara a tentar decidir o que levaria e como o acondicionaria! Mas agora parecia-me que não precisava de levar nada. Partir era o importante.


  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A Casa e o Mundo


Verba volant, scripta manent


Carta enviada por Sandip Babu a Nikhil

por Maria Amélia L. V.Correia


Ahmedabad, 13,Nov/1920
        
   Meu caro irmão Nikhil:


Demorou bastante tempo até conseguir coragem e forças para te enviar esta missiva.
Já deves ter notícias minhas, assim como eu tenho tuas, através do nosso querido amigo comum Rabindranath Tagore. Como é do teu conhecimento fugi de tua casa para escapar à fúria dos muçulmanos, acabrunhado de remorsos pela desgraça que causei em tua casa e em muitas outras, infelizmente.  O meu desejo de expiação e purificação fez com que depois de me ter escondido em lugares inimagináveis, me dirigisse para Shantiniketan onde pedi guarida ao nosso mestre, depois de lhe contar todo mal que tinha provocado. Tanto eu como Tagore ainda desconhecíamos as graves sequelas que resultaram dos ferimentos que te infligiram, assim como a morte do pobre Amulya.  São tragédias que provoquei às pessoas que mais amei e que menos mereciam. Jamais conseguirei livrar-me desta dor.
 O mestre teve longas conversas comigo e repetia sorrindo: vamos transformar um leão num cordeiro. Explicou-me que esta metáfora era inspirada em Nietzsche, filósofo que eu desconhecia, mas de que segundo ele, fora um legítimo seguidor. Depois falou-me em Freud e explicou que eu deveria conseguir uma sublimação dos meus impulsos. Fiquei curioso e li algumas obras destes autores. Deu para entender as brincadeiras do mestre, mas como sabes não são muito perseverante no estudo e fiquei-me por um conhecimento básico destes ocidentais.
 Em contrapartida as Upanishades,  que eram  profundamente estudadas ali, contêm tudo que preciso para meditar e encontrar o  caminho de redenção: Um profundo amor pela humanidade traduzido em boas ações. Tenho tentado este caminho com todas as forças da minha alma, e tu Nikhil és a minha inspiração constante. Foi preciso chegar aqui para perceber a força serena do teu carácter e a grandiosidade e pureza da tua alma.
Em Shantiniketan, não tinha tarefas específicas, ia fazendo tudo o que era necessário para o bom funcionamento da comunidade.
 Em Fevereiro de 1915 Gandhi e a sua família alargada vieram viver connosco. Que homem Nikhil , foi uma  verdadeira iluminação!
A vida dos professores e alunos na comunidade alterou-se completamente. Este homem incentivou-nos a que preparássemos os vegetais na cozinha, varrêssemos os pátios e outros aposentos e de uma maneira geral todos fazíamos com gosto os trabalhos físicos necessários à sobrevivência da comunidade.
Como sabes Gandhi e Tagore, admiram-se profundamente, aliás foi este que lhe atribuiu o título de Mahatma, mas isto não impede de terem visões diferentes em aspetos que eu diria marginais. Imagino-te  Nikhil, eu que tão  bem te conheço, com objeções à conduta de Gandhi muito próximas de Tagore. A um artista, cosmopolita e muito racional como ele, não agrada o que lhe parece uma linguagem religiosa com laivos de irracionalidade, rituais que lhe parecem de automortificação, a rigidez moral, o nacionalismo exagerado, o culto da roca de fiar.
Nikhil, Gandhi é um líder carismático e sabe como chegar à alma dos indianos, não deseja o culto da personalidade, é totalmente abnegado, o que ele já conseguiu é notável! Sigo-o sem qualquer objeção!
Assim quando ele criou este ashram, acompanhei-o desde a primeira hora. Aqui reina o puro espirito Swadeshi.
Problemas não nos têm faltado!...Quando o Bapu impôs aqui o convívio com pessoas de castas inferiores e mesmo com os intocáveis, até Kasturba e Maganlal ameaçaram ir-se embora. Mas pior que isto, os doadores recusaram continuar a financiar o ashram e ficamos sem quaisquer meios para continuar o projeto. Bapu não desistiu. Felizmente Deus é grande e recebemos uma doação anónima que nos permite continuar.  
NIkhil , meu irmão, sou casto, jejuo, medito,  teço, ajudo todos os necessitados que  aqui chegam  e tiro o pó dos pés dos intocáveis em sinal de humildade. Gostaria de o fazer contigo com Bimala com Chandranatah Babu e porque não com todos os servos da tua casa a quem não tratei como mereciam.
Diz a Bimala, tua esposa e guia, que a admiro profundamente e que me perdoe ter-me aproveitado da sua bondade.
 Recebe deste teu irmão um abraço fraterno. Até breve, pois logo que possa dispor de algum  tempo, irei fazê-lo pessoalmente. Teu:
                                       

                                                                                                           Sandip Babu






domingo, 7 de fevereiro de 2016

A Casa e o Mundo - R. Tagore



Verba volant, scripta manent

A Verdade e a Ilusão


por Manuela Pereira


 Nada é mais fácil do que se iludir, pois todo o homem acredita que aquilo que deseja seja também verdadeiro. Demóstenes, séc. IV a.C.

Nikhil, passivo e tolerante – que se refere a si próprio dizendo “Não sou chama, sou apenas um carvão negro, que se apagou. Não posso acender nenhuma luz.” (227) – e Sandip, vibrante e tempestuoso – que diz sobre a verdade “... sou carne. Sou paixão. Sou fome despudorada e cruel.” (60) têm visões do mundo que se opõem, diferentes ideais. Quando as suas Verdades se confrontam, dá-se o choque entre o novo e o velho, realismo e idealismo, Deus e Satã.
Como explica o Mestre Chandranath Babu, Sandip está “...no anverso da verdade, como a lua nova que não deixa de ser lua apesar de toda a sua luz se encontrar do lado que não vemos.” (123) e “A atracção da mesma luz faz subir e descer a maré.” (203)
Bimala, no centro do conflito, oscila entre as duas verdades. É atraída pelo desejo agressivo de Sandip, ao ver “o fogo primevo da Criação...” (87) na sua energia cósmica e libertadora.
Na passagem de um a outro pólo, Bimala derruba barreiras, sai “de casa para o mundo”. Transforma-se em outra mulher, consciente que, diz “sómente um sacrifício pessoal me poderia ajudar a suportar o tumulto da minha exaltação.”
A sedução de Sandip inicia Bimala na verdade do shakti. “Era shakti e, também, uma personificação da alegria universal. Nada podia acorrentar-me, nada era impossível para mim, tudo aquilo em que tocava adquiria vida nova. O mundo que me cercava era uma nova criação minha.” (112)
O ponto de viragem para Bimala, provocado pelo roubo de 6000 rupias, acontece com uma dimensão moral. “O peso do roubo rojou-me o coração pelo pó.” (168) , “Por tal pecado, a minha casa deixara de me pertencer e o meu país também se afastara de mim.” (169)

Desfazia-se a ilusão em que vivera “Perdi a capacidade de ver a verdade, os meus olhos estão obscurecidos como os dos fumadores de ópio.” (174) e conclui “Há, com certeza, duas pessoas dentro de uma pessoa! Em mim, uma delas compreendeu que Sandip tentava iludir-me, enquanto a outra se sentiu feliz por se deixar iludir.” (173)
Disse Anatole France “Sem se iludir, a humanidade pereceria de desespero e tédio.”
Sandip atinge, também, um momento de confronto consigo próprio “Nos últimos dias, tem-me atormentado um problema. (…) Serei um tronco à deriva, destinado a chocar com todos os obstáculos que encontro no caminho?” (91)Vejo agora , claramente, que certos elementos da minha natureza se ergueram, num desafio franco, como obstáculos ao meu caminho.” (93)
O homem, vivo como a Terra, também se encontra sempre envolto na névoa de ideias que ele próprio exala...” (88) “...não sou apenas o que quero, o que penso --- sou também o que não amo, o que não desejo ser.” (88) , “...tudo quanto acabo de descrever é apenas a minha idéia e não eu, completamente.” (89)
Existe uma discrepância entre a minha existência exterior e os seus desígnios interiores, que me esforço por ocultar de mim próprio...” (89/90) “Esta doença de ideias que me atormenta está a mudar a minha vida interior.” (89)
Nikhil também descobre, num momento, que vivera numa ilusão “O que paguei à ilusão (…) tem agora de ser pago com juros à Verdade...” (42) . E, também num momento, liberta-se do “...que antes tivera o mistério...” (27): “De súbito o mundo brilhou para mim, com uma claridade nova. (…) Descobri, surpreendido, que o meu espírito estava liberto de toda a nebulosidade...” (127). “Saí do quarto, que me parecia agora uma gaiola quebrada, para a claridade dourada do exterior.” (127) E pergunta, “«Minha mulher...» Equivalerá isto a um argumento, equivalerá, sequer, à verdade? Poderá alguém aprisionar, nessas duas palavra, toda uma personalidade?(72)
Verdade e Ilusão ... Brahman e Maya ...
O que é a Verdade? O que é a razão? Não é verdade que (...) o mundo é uma espécie de sonho? Que Brama sonhou e continua a sonhar o universo? Que tudo quanto vemos é visto por nós através dessa teia de sonhos que se chama Maya. Maya (…) tudo quanto é ilusório, batota, artifício e intrujice. Aparições, fantasmas, miragens, prestidigitações, a forma aparente das coisas(...) in Os filhos da meia-noite, Salman Rushdie (201)
Sandip cria a ilusão da Verdade, o seu fascínio atrai uma turba de seguidores. É um lider ardente e carismático.
Pareceu-me escolhido pelos deuses como seu mensageiro.” (29)., diz Bimala.

Ao usar a antiga religião e cultura indiana como base para os novos objectivos do Movimento para a Independência, cria nos seus seguidores um fervor inabalável pela causa.
Sandip veio como mensageiro de qualquer reino calamitoso, e enquanto percorre a terra, murmurando encantamentos sacrílegos, atrai para si todos os rapazes e todos os jovens.” (208)
A ilusão, que promete a soberania do povo, que o liberta da soberania de outros povos e terminaria com a riqueza e bem-estar de todos, é, como a maioria das vezes, falsa e baseada na mentira. Levou ao caos e à guerra civil o povo de Bengala.
Amulya, um dos seus seguidores mais emotivo e apaixonado, é, também ele, capaz de viver e morrer para alcançar os objectivos do movimento Swadeshi e, individualmente, para alcançar o amor de Bimala – Mãe, Deusa, Durgá . (39)
A semente do fanatismo desponta com a paixão, a idealização de líderes e a adoração de indivíduos sedutores. Quando a Verdade se impõe como superioridade moral (movimento Swadeshi e outros movimentos nacionalistas emergentes na época), surge a urgência do sacrifício – o sacrifício de dar a vida pelo bem de alguém, pelo bem futuro.
Amulya não teme morrer pela pátria nem matar por ela “Darei a minha vida para cumprir qualquer dever de que me encarregar...” (178)
...como o homem pode encontrar suprema ventura na total destruição.” ? (76) 
Nikhil compreendera o perigo que representava o Movimento Nacionalista, o seu poder de destruição e de engano. “...amam mais a exaltação do que a pátria.” (…) “...as suas chispas desconexas servem apenas para lisonjear o vosso orgulho e não clarificam a vossa visão.” (44)
Sandip e Amulya, em nome da Verdade e do Bem, não têm compaixão por quem não pertence ao seu bando. Não têm simpatia pelo indivíduo, “...não são capazes de amar os homens só porque são homens...”. (44)
A ilusão num sistema político é um perigo maior do que a falta de participação. Quem se ilude com promessas participa activamente na defesa de interesses por vezes duvidosos, pois para eles só existe uma verdade, um certo e um errado.
Começo a suspeitar que existiu sempre em mim uma tendência para a tirania.” (…) “Os homens como eu, possuídos por uma ideia, conseguem entender-se com aqueles que são capazes de concordar com eles, mas os que não concordam têm que os enganar. É a nossa inflexível obstinação que conduz, até os mais simples, a caminhos tortuosos.” (231)Exercer tirania para bem do país é tiranizar o país, mas receio que nunca sejas capaz de compreender isso.” (126) diz Nikhil a Sandip.
A verdade absoluta só pode conceber-se mediante a integração absoluta do indivíduo na sua infinita totalidade.” (…) “A poesia reflecte pedaços de uma verdade espantosa e gigantesca, mas nunca inteiramente revelada, pois sempre permanece envolta numa bruma de mistério.” Rabindranath Tagre, in Diálogo com Einstein que teve lugar em 1930

                                                                                                     Manuela Pereira, Clube de Leitura_ 3 Fevereiro 2016



Bimala, metáfora da Índia

por  Alexandra Azevedo
Clube de Leitura da EASR
3 de Fevereiro de 2016

Quantas vezes lhe disse que, se nunca a tivesse visto, nunca teria conhecido o meu país como uma unidade?



Bimala, a personagem feminina central da obra, é, tal como a Índia,  o território em que se confrontam duas forças distintas, metaforicamente encarnadas por duas personagens masculinas, Nikhil e Sandip.
 Nikhil, o marido, é um Marajá, senhor de vastos domínios. É a Índia tradicional que, serenamente e sem contestar abertamente as tradições, fomenta uma evolução no sentido da modernidade, incorporando ideias novas e costumes novos, abandonando lentamente usos arcaicos e  obsoletos, mas conservando intactos os verdadeiros e valiosos valores da Índia e a sua espiritualidade.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     

               
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
A diignidade da casa do meu sogro era muito antiga, vinha do tempo dos paxás. Alguns dos seus usos, herdara-os dos Mongóis e dos Patanes, certos dos seus costumes provinham de Manu e Paraxar. Mas o meu marido era absolutamente moderno, fora o primeiro da família a frequentar a universidade e a licenciar-se. O seu irmão mais velho morrera novo, vitimado pela bebida, e não deixara descendentes. O meu marido não bebia nem se dava a vícios. A sua abstinência era tão estranha à família que a muitos dos seus membros quase nem parecia decente! Na opinião deles, a pureza só ficava bem àqueles a quem a fortuna não sorrira. É na Lua que há manchas, não nas estrelas.(15)
 Assim, Nikhil, sem se importar com o veneno bolsado pelas más línguas de casa e do exterior, promove a educação ocidental de Bimala, contratando Miss Gilby, uma professora inglesa. Nikhil quer que  Bimala se emancipe,   saia do purdah,  se abra ao mundo exterior, conheça mais do que os muros que confinam o espaço da sua casa Mas para que quero eu o mundo exterior?
 A Índia de Ranis e Marajás vive, com efeito, como Bimala, na ilusão de que a casa de luxo que conhece é  o mundo inteiro, o mundo suficiente. Deliberadamente, ignora a realidade do mundo exterior e tal como a viúva do irmão de Nikhil finge desprezo pela ideias modernas.
Mas o contacto com a modernidade, ainda que mitigado, não é inofensivo e, passo a passo, os antigos costumes como a veneração que a mulher deveria votar ao marido, começam a parecer a Bimala, absurdos ou retrógrados. Era a sua rainha e ocupava o meu lugar a seu lado, mas a minha verdadeira alegria provinha de saber que o meu verdadeiro lugar era a seus pés. Depois, porém, instruíram-me,  deram-me a conhecer a idade moderna e a sua linguagem própria, de tal modo que estas palavras parecem corar de vergonha, na prosa em que as inscrevo.
Os próprios objectos indianos perdem a antiga dignidade O meu marido tinha na escrivaninha um vulgar vaso de latão que lhe servia de jarra de flores. Muitas vezes, ao ter conhecimento da visita de alguns europeus, ia sorrateiramente ao seu gabinete e substituía o vaso de latão por uma jarra de cristal, de fabrico europeu.  (109)
Um  sentimento de inferioridade face aos europeus, que, aliás,  não existe em Nikhil, torna-se evidente O meu marido costumava rir-se dos meus protestos--Por que consentes que tais ninharias te transtornem? – Julgarão que somos bárbaros ou, pelo menos, que nos falta requinte. – Se julgarem, pagar-lhes-ei na mesma moeda, pensando que o seu requinte não penetra para além da sua pele branca. (109)
Porém, Bimala tal como a Índia, é um ser estuante da energia da vida que não pode satisfazer--se com este estado de coisas e a reacção surge sob a forma de um movimento nacionalista que rapidamente alastra e assume contornos extremos.
Essa Índia materialista e falsamente patriótica é encarnada na figura de Sandip. Sandip Babu torna-se para Bimala o Príncipe Encantador dos contos de fadas com que  sonhava em criança. Como este, também ele tinha um rosto esplendidamente belo e, no entanto, ela  notara nas suas feições um não-sei-quê de que não gostava. (29) Mas o sopro encantatório é muito forte e todos sucumbem ao seu discurso triunfal.  Sandip Babu conhece o poder que tem e sem nenhum instrumento, nenhuma arma, apenas o engano da sugestão irresistível (145), atreve-se a desafiar os ensinamentos das escrituras hindus e a afirmar que em vez da Verdade será a Ilusão a triunfar. Quem disse «A Verdade triunfará?» Quem triunfará no fim será a Ilusão (145)
A Índia é, assim,  uma mulher que lhe cai aos pés totalmente rendida. Bimala deslizou da cadeira e caiu a meus pés que abraçou e depois soluçou como se nunca mais fosse parar (145), uma mulher que já não se contenta com o Swadeshi monótono e aguado (109) de Nikhil e quer ser arrebatada para um futuro novo, por que estrada ou para que meta, não lhe importa. (108).
No seu arrebatamento, Bimala ignora, deliberadamente, os perigos futuros desse caminho. Vi, nesse futuro, a minha pátria, mulher como eu, imóvel e na expectativa. Foi arrancada do seu canto no lar pelo chamamento súbito de um Desconhecido, não teve tempo para reflectir nem para acender um archote que a guiasse enquanto corria e mergulhava impetuosamente na escuridão. (107)
Mas os perigos são reais e o arrependimento virá porque a linha do tempo tem um único sentido e nem  Deus tem o poder de o reverter. Deus tem o poder de criar coisas novas, mas terá também o poder de criar de novo o que foi destruído? (217)
Nilhil e  Sandip desejam ambos o amor de Bimala e por ele lutam com meios diferentes  e por diferentes caminhos. Travam, afinal, uma mesma batalha por caminhos diferentes, um respeitando os valores tradicionais e o outro negando-os  e a nenhum cabe a vitória, pois na ânsia  de transpor os muros da casa antiga e fazer parte do mundo novo das nações fortes, esquecendo os seus valores culturais e espirituais, a Índia foi  seriamente atingida. Mortalmente? Não se sabe. Vi chegar um palanquim, seguido por uma padiola. O médico vinha ao lado do palanquim. – Que pensa , doutor?- perguntou o dewan.- Ainda não sei. O ferimento da cabeça é grave. (237).

 


                               


Rabindranath Tagore







O Movimento Swadeshi

por Conceição Rocha


No século XIX, sobretudo na segunda metade, crescem com grande expressão política os movimentos nacionalistas. Todos eles decorrem de situações de colonização ou anexação, seja na Europa (Noruega, Islândia, países do Báltico, por exemplo), seja no Oriente, na África ou na América latina (este desencadeado não por nativos, mas por descendentes dos colonizadores). A Índia, a “joia da coroa inglesa”, representa um caso muito especial, quer por ser o que nos interessa aqui, quer porque se trata de uma cultura multimilenar, complexa, requintadíssima, com expressão muito forte nos modos de pensar e viver das populações, particularmente das ilustradas.

Todas as colonizações têm as suas peculiaridades. Na Índia, a Inglaterra, ao mesmo tempo que exercia forte repressão sobre as populações, proporcionava aos grupos sociais mais ricos e educados o acesso à cultura ocidental: estudos universitários em Oxford e Cambridge, na Índia escolas formatadas ao estilo inglês, o cricket, etc. A colónia culta assimilou esses bens, compatibilizou-os com os seus próprios, mas como ocorre sempre em situações de subordinação, permaneceu a vontade de independência política. Muita desta vontade cresceu também com expressões culturais próprias.

Assim, e de um modo extremamente resumido:

          Os Upanishads, textos filosóficos cuja origem se perde no tempo e que contêm as bases do Induísmo, contêm muitos dos princípios que vão ser essenciais para entender a batalha pró independência, quer a informada pelo pensamento Swadeshi, quer pelo seu contrário. A “Casa e o mundo”  representa justamente esse conflito com expressão na própria luta (entre nacionalismo agressivo, representado por Sandip e nacionalismo cosmopolita, representado por Nikhil, alter ego de Rabindranath Tagore).

          Swadeshi, em Hindi, quer dizer autossuficiência. Swa, em sânscrito é “eu”, “eu próprio”, Desh, “terra”, no sentido de terra natal, pátria. O 1º movimento Swadeshi surge em 1850, lançado pelo líder político  Dadabaj Naoroj. O 2º começa em Bengala, em 1905, desde logo com enorme adesão, na época do vice-rei lord Curzon. Dura até 1911. Bengala, que foi o nervo do nacionalismo indiano, foi também o berço das correspondentes repressões militares  no período vitoriano. O cântico Vandemataram foi composto nessa época e algumas das suas estrofes ou alguns versos são sempre recitados/cantados pelos Swadeshi, como cumprimento entre pares ou como grito de revolta em situações limite.
          O que tem de peculiar o movimento Swadeshi é o facto de considerar ser o caminho mais radical para a independência a rejeição de produtos oriundos ou fabricados no estrangeiro. Fomentar a produção nacional e empobrecer os de fora fortaleceria a economia indiana e enfraqueceria os outros. Daí, o movimento se tornar repressivo à medida que conquista adeptos, maltratando artesão e comerciantes que laboravam com matérias primas importadas, gerando empobrecimento e conflitos privados e públicos com pessoas que exibissem produtos não nacionais. Ficaram na memória verdadeiras guerras campais ocasionadas por swadeshis em mercados urbanos e outros locais públicos. Apesar de penalizar economicamente muitos pequenos artesãos e comerciantes, o movimento Swadeshi mobilizou grandes contingentes populares, iniciou a luta armada contra o colonizador e mesmo algumas formas de guerrilha e atentado. Culturalmente, a importância do movimento foi tal que o cântico Vandemataram inspirou os hinos nacionais da Índia e do Bangladesh independentes (1947) (ambos os hinos da autoria de Rabindranath Tagore) e todos os periódicos bengali de grande circulação (eram 4 em língua nativa) abraçaram a causa com entusiasmo.


O movimento colapsou com a independência do país e com a divisão entre muçulmanos e hindus, pouco tendo feito pelo enriquecimento da produção nacional.


Contemporâneo de Rabindranath Tagore (1861 – 1941) é o Mahatma Gandhi (1861 – 1948). Mahatma, que quer dizer Grande Alma, regressa da África do Sul onde era advogado e militante anti-racista e vai operar a maior revolução não armada de todos os tempos. Com Tagore, integra as elites culturais bengalis. Ambos têm uma sólida formação na sabedoria ancestral da Índia e na do ocidente, Gandhi jurista, Tagore educado em Bengala pelos grandes mestres da época e simultaneamente formado em filologia anglo-saxónica. Ambos profundamente pacifistas, cedo se vão demarcar da ideologia swadeshi naquilo que ela tem de agressivo e penalizador da população mais pobre. No entanto, Gandhi elege como vestuário permanente a túnica de algodão grosseiro e não tingido, o kahdi, de fabrico local e com a forma de  envolvimento do corpo  idêntica à dos solitários e silenciosos sábios hindus.
Tagore, que nunca abandona os seus sinais exteriores de aristocrata, é um internacionalista cultural, um cosmopolita. Identificado com o Nikhil de “A Casa e o mundo”, expõe-nos a sua aversão intelectual pelo ódio e pela rudeza de comportamento (por exemplo, Nikhil pergunta a Sandip: “como é que pretendes adorar Deus e ao mesmo tempo odiar as outras pátrias que são também manifestações de Deus?”). Ficaram célebres duas afirmações  que Tagore proferiu no discurso de agradecimento do Prémio Nobel (1913): “Todas as glórias da humanidade são minhas” e “a minha poesia é a resposta da alma ao apelo do universo”. Noutro texto, cita os Upanishads referindo que “a infinita personalidade do homem se realiza pela harmonia de todas as raças”. Para Tagore, negar uma cultura, qualquer que ela seja, é provincianismo. Nikhil deixa  frequentemente implícita ao longo do texto a mesma convicção.
A “Casa e o mundo” é, pois, a expressão genial das conflitualidades ideológicas no interior do nacionalismo, conduzindo o leitor pacificamente para um dos lados. A hostilidade relativamente ao lado Swadeshi faz-se tornando quase grotesco Sandip, incapaz de argumentação inteligente, lógica e moral. A argumentação de Sandip é o contrário absoluto da palavra dos sábios, o seu discurso mobilizador das massas  é uma caricatura da força das ideias e da capacidade filosófica de questionar. É a personagem, criada por um filósofo aristocrata, que representa a perversão das ideias que escorrem da justeza dos teóricos para as massas.
Tagore, como Gandhi que funda em 1914 o movimento independentista, convoca para todas as suas artes – poesia, música, drama -, os princípios da identidade indiana:
- o Satyagraha, princípio de firmeza e constância da verdade;
- a Himsa, princípio da não violência;
- o Suaraj, princípio do autodomínio das emoções, por forma a convocar todas as energias interiores sem o recurso à violência física sobre si ou sobre outrem. Os jejuns periódicos, a limitação dos consumos e os exercícios de meditação propiciam essa atitude como forma de vida;
- o Swadeshi, autossuficiência local, ou seja, o privilegiar do relacionamento e do negócio de proximidade, por forma a valorizar as relações de vizinhança e a economia regional.

 

A propósito, a Associação Movimento Terra Solta – Swadeshi existe em Portugal e promove o consumo de produtos vicinais em vez dos remotos, denuncia o baixo pagamento das grandes cadeias de comércio alimentar aos produtores de qualidade e apoia empresários e cooperativas de produção e distribuição