quinta-feira, 18 de julho de 2013

A Brazileira de Prazins




Lamúrias de José Dias de Vilalba ou um personagem à procura de autor 

por Amélia Correia


Todo o meu arrazoado vai no sentido de explicar a minha indignação com o papel que o Sr. Camilo Castelo Branco me reservou na novela: A Brasileira de Prazins.
Nesta novela, como vossas excelências puderam constatar, eu sou sempre a marionete ao sabor dos acontecimentos, o coitado, ou como diria o nosso Eça, um escritor que cá para nós empresta outra densidade aos personagens, o coitado, coitadinho, coitadíssimo. Ora homem quando é homem não pode contentar-se com tão injusta apreciação.
 Como os meus queridos amigos e amigas são leitores cultos e críticos, poderão perceber o que Maria Rattazzi observou sobre Camilo. Considerou-o justamente como escritor infatigável, mas onde a quantidade supre por vezes a qualidade. Segundo ela, todos os romances do solitário de S Miguel de Seide contêm infalivelmente um tipo brasileiro, uma rapariga que se recolhe a um convento, um fidalgo de província e um romântico apaixonado e transparente. Acrescentou: Lemos por exemplo, o primeiro romance de Camilo Castelo Branco, parece-nos interessantíssimo, o segundo é a reminiscência do primeiro, o terceiro a reprodução do segundo e assim sucessivamente. É uma galeria de personagens que raramente saem dos seus lugares tal como as figuras de cera.
Rio Pele perto de S. Miguel de Seide
Esta senhora pode ser demasiado crítica com Portugal em geral, e com os seus escritores em particular, mas reparem que não tem a mesma opinião sobre Júlio Diniz, Soares de Passos, Eça ou Ramalho Ortigão, para falar só de alguns que lhe merecem elogios.
 Camilo irritado com estas opiniões reagiu de uma maneira que o define, afirmando que mulher escritora, por via de regra pouco exceptuada é um homem por dentro, e foi mais longe concordando com Francisco Manuel de Mello quando afirmava: mulheres doutoras, autoras e compositoras dava-as ao diabo.
Estou certo que as minhas caras amigas ficarão escandalizadas com o machismo deste autor, e os meus amigos, que são homens despreconcebidos e de vistas largas, ficarão também elucidados sobre esta ironia de péssimo gosto. É desplante do Sr. Castelo Branco, que foi preso pelo seu amor a uma mulher casada, Ana Plácido, ela própria escritora. Aliás, há uma incoerência total entre a sua visão romântica do amor puro e a sua vida pessoal.
Mas entremos agora na novela para que vossas excelências verifiquem como fui muito mal apreciado. O novelista de Seide caracteriza-me como fraco, amarelo de poucas carnes, um pau de virar tripas, um pelém. Tanto assim, que o cirurgião aconselhou o meu pai a retirar-me dos estudos de  latim para me ordenar clérigo, pois não me faria bem puxar pelas memórias.
Digam o que disserem, e presunção e água benta cada qual toma a que quer, gosto de mim quando me olho no espelho. Sou magro, mas bem talhado, gostaria porventura de possuir musculatura mais desenvolvida, mas posso dizer, que segundo os cânones da moda, não sou nada de deitar fora. Possuo um rosto de feições regulares, onde sobressaem olhos negros sonhadores, nariz aquilino e lábios finos mas bem recortados. Estes atributos são muito apreciados pelas moças. Para o provar refiro que, mesmo sendo respeitador com as raparigas, ao contrário dos meus colegas, grandes parvajolas, tinha muitas, mesmo muitas moças, paletes delas, como alguém diria, que me olhavam com olhar dengoso cheio de promessas. Uma das alunas da paralítica que frequentava o quinteiro com Marta, escreveu-me um bilhete em papel almaço, cheio de erros de português, elas não eram muito fortes nas letras. Questionava-me, sobre o que encontrava eu na songuinha da Marta para só ter olhos para ela, e não reparar nas outras, nomeadamente nela, que era rapariga louçã com pernas e seios que se podiam ver. O meu colega Osório chegou um dia a dizer-me: ainda bem Zé que não vais ordenar-te, porque com o sucesso que tens com o femeaço, era de recear que não cumprisses o sexto, e lá iam os votos para o galheiro.
Lamento que o meu pai, influenciado por um clínico de meia tijela, me fizesse desistir dos estudos. Os professores sempre realçaram a minha curiosidade e facilidade de aprendizagem. O novelista de Seide afirma, com seu buçal anticlericalismo, que os padres do Minho ordenavam-se tão alheios às faculdades da alma, que sem memória nem entendimento e às vezes sem vontade eram sofríveis sacerdotes. Aqui toma a parte pelo todo, e quanto a mim posso considerar ter uma cultura superior à média, aliada a uma educação e maneiras, que sempre me distinguiram dos meus colegas, grosseiros no trato e burgessos culturalmente. É que isto de educação e cultura, quando se vem sobrepor a gente de fraca extração, não há volta a dar-lhe, permanece sempre a animalidade latente!
Mas na verdade o amor da minha vida foi a Marta, que ao contrário das outras, era muito loira e alva, magrinha, com pernas finas e bem torneadas e pezinhos delicados e pequenos. Tinha um olhar sério e tímido, uma formosura meiga, que lhe dava um ar de santa de altar. Como sabem esta moça delicada e virginal agradava também ao bronco do Zeferino, que daria a sua fortuna por casar com ela, mas para quem ela nunca olhou, a não ser perdida de riso quando o cão o deixou sem calças. Coitado do Zeferino até lhe perdoei quando o vi assim, apesar das alarvidades com que me mimoseou. Não tinha maneiras nem educação!
Eu amei-a pudica e castamente, mas como sabem, minha mãe jurava que enquanto fosse viva jamais haveria de ter como nora a filha da Genoveva de Prazins. Dizia que Genoveva além de dar desgostos ao homem, foi falada com um frade de Santo Tirso, pintava a manta em festas e romarias, tinha o demónio no corpo e morreu louca atirando-se ao rio Ave. Esta doidice já vinha do pai, avô de Marta, que ao que diziam também não era escorreito. O meu pai, menos exagerado, que ela também não concordava com o casamento.
O Sr. Camilo Castelo Branco não percebeu todo o conflito que tive em casa por causa do meu amor contrariado. A minha mãe, mulher pretensamente devota e muito rezadeira, não se convencia com argumentos racionais, que eu bem tentei. O resultado, foi berrar que eu merecia ser posto fora de casa com um pontapé como um cão, porque não merecia a família que tinha e os sacrifícios que tinham feito por mim. O meu pai também se acoitava nas opiniões da mulher e jamais teria força para lhe fazer frente. As discussões lá em casa eram terríveis e o meu irmão chegou a dizer-me: esta casa tornou-se um inferno desde que te apaixonaste por essa lambisgoia, não tens tu moças por aí mais bonitas e mais prendadas para quem olhes? Irra que nem me apetece entrar nesta porta!
Eu desesperado, só pensava numa solução para casar com Marta, em  segredo, apresentaria depois o facto consumado. O problema era  encontrar um padre que desse a sua bênção, já que o Osório se negava. Só conseguia ter paz, abraçado a ela pelas noites dentro, em que penetrava na sua casa quando todos dormiam. Às juras de amor e ao chamegos, seguiam-se soluços tristes quando dávamos conta da nossa infelicidade e do futuro incerto que nos esperava.
Tínhamos já decidido fugir, com promessas de um padre de Santo Tirso que aceitava unir-nos com o sacramento da Santa Madre Igreja, porque o casamento já estava consumado de corpo e alma.
Neste ínterim as forças iam-me faltando a tosse assaltava-me com tal intensidade pela noite dentro, com o calor dos lençóis e da paixão, que cheguei a recear que o velho Simeão acordasse e fizesse ali um escândalo. É que este desgraçado já andava a matutar casar a minha Marta com o seu irmão que vinha do Brasil, podre de rico. A Marta quando ouvia falar no tio soluçava de tal maneira que me deixava de coração despedaçado Vai daí, numa noite frígida de Janeiro, ao saltar da janela do quarto dela, fui parar a uma poça de água gélida e cheguei a casa tolhido de febrões que não me largaram mais. Este foi o princípio do fim, cheguei a melhorar, mas por pouco tempo. A minha mãe dava-lhe para gritar que a maluca de Prazins era a culpada do meu mal. Já não me bastavam os sofrimentos físicos, as saudades de Marta e a histeria da minha mãe levaram-me quase à loucura. Pedi ao Osório que retirasse a minha mãe do meu quarto para sempre.   
O resto, vossas excelências já sabem, finei-me e o destino da minha amada foi o que conhecem.
Haverá heroína romântica sem o respetivo herói? A resposta é clara para os meus preclaros auditores e leitores. Mas para o novelista de Seide não foi assim. Foi capaz de colocar a figura do mastronço do Zeferino numa posição mais importante que a minha. Deixemo-lo em paz, se é que a tem, com morte tão nefanda, o desgraçado de Seide. Pelo menos dei a conhecer-vos o relato verídico da minha infelicidade, parece que merecia honras de herói romântico, não vos parece?
Muito bom dia e até mais ver, cumprimentos deste herói romântico injustiçado: 

José Dias de Vilalba