terça-feira, 10 de dezembro de 2013

História da Minha Vida I _ Giacomo Casanova


    "História da Minha Vida I", Páginas Escolhidas, edição da Divina Comédia Editores, é uma antologia publicada em Junho deste ano, baseada numa reprodução rigorosíssima do texto manuscrito, nas palavras do tradutor para português, Pedro Tamen. 

O texto introdutório, "As Mil Faces da Paixão" de Miguel Viqueira,  explica como o médico irlandês que Casanova consulta quando adoece gravemente em 1789, poderá estar na origem remota da sua autobiografia: O'Reilly "receita-lhe" a narrativa  das suas memórias como remédio para recuperar do intenso trabalho matemático e geométrico que desenvolvia (a duplicação do cubo). Casanova dedica-se, então, febrilmente a uma   narrativa autobiográfica que se prolonga desde a infância até ao ano de 1772 embora inicialmente estivesse previsto chegar a 1797. O que foi a turbulenta história da publicação das suas memórias  desde a primeira edição em 1822, em alemão, até à disponibilização em linha do manuscrito a verificar-se num futuro próximo, parece reproduzir a própria turbulência da vida do autor.

 E porque verba volant, scripta manent são estes os temas a desenvolver:

                                                                               

Casanova e a cabala


O facto encarrega-se de verificar o presságio. Se o facto não acontecer, o vaticínio torna-se nulo; mas remeto o meu complacente leitor para a história geral, onde encontrará muitos acontecimentos que nunca teriam acontecido se não tivessem sido vaticinados. (pág. 437)


Casanova e  a beleza feminina

A mulher é como um livro que, bom ou mau, deve começara a agradar pelo frontispício. O frontispício da mulher vai também de alto a baixo como o de um livro, e os seus pés, que interessam tantos homens da minha espécie, criam o mesmo interesse que a edição da obra cria no homem de letras. (pág. 102)


Casanova e a fé

Um teólogo qualquer, porém,  poderia achar a minha oração piedosa, santa e muito razoável porque a consideraria fundada na força da fé; e teria razão, tal como também eu tenho razão, eu que não teólogo, ao achá-la absurda. (pág. 396)

Casanova e as santas virgens de Veneza

Enfim, está claro que eu não teria lá ido se não fosse a curiosidade que sentia de ver que atitude teria diante de mim uma mulher daquele tipo, que se oferecera para vir cear comigo a Veneza. Estava , alíás, muito surpreendido pela grande liberdade daquelas santas virgens que tão facilmente podiam violar a sua clausura.(pág. 271)


Casanova e o Ancien Régime

A França viu sucederem-se no trono vários outros monarcas preguiçosos, que detestavam o trabalho, inimigos das preocupações e tratando unicamente da sua tranquilidade. (pág. 243)

 Casanova e a geometria do amor

"Estava muito admirado por ver nas caras da Nanette e da Marton a impressão resultante das setas que eu lançava em linha recta para a Ângela. Esta curva metafísica não me parecia natural; devia ser uma esquina. Infelizmente eu estava então a estudar geometria." (pág. 78)

Casanova e a aprendizagem da língua francesa 
 "_ Bebi um café como todas as manhãs
_ Mas é uma tolice, meu amigo; um café é a loja onde o vendem; o que a gente bebe é uma xícara de café.
_Bem! Então bebeis a xícara? Em Itália dizemos um café e temos a inteligência de adivinhar que não bebemos a loja."  (pág. 2

                                    Casanova e o dinheiro
"A minha receita com o primeiro sorteio foi de 40 000 libras. Uma hora depois da extracção o meu empregado trouxe-me o registo e mostrou-me que tínhamos a pagar dezassete a dezoito mil libras, tudo em ambes, e eu dei-lhe o dinheiro. (...) Em todas as grandes casas aonde ia e nos foyers dos teatros, mal me viam todos me vinham dar dinheiro pedindo-me que jogasse por eles à minha vontade, e que lhes entregasse os bilhetes, visto que não percebiam nada daquilo." (pág. 480)

"História da Minha Vida"
                         Giacomo Casanova


E foram estes os textos produzidos a partir dos desafios apresentados:


 Casanova e a cabala

por Conceição Rocha

 O facto encarrega-se de verificar o presságio. Se o facto não acontecer, o vaticínio torna-se nulo; mas remeto o meu complacente leitor para a história geral, onde encontrará muitos acontecimentos que nunca teriam acontecido se não tivessem sido vaticinados. (pág. 437)



                          



A Cabala entra na Europa no século XI e desenvolve-se sobretudo no interior das comunidades judaicas até ao século XVI. O grande livro sobre a Cabala e sua exegese surge no século XIII, na Espanha sefardita: é o Zohar, ou livro do Esplendor. Os sábios judeus foram desenvolvendo uma interpretação da Bíblia por meio da combinação de letras do alfabeto.  Para que se entenda melhor: Deus revela e revela-se pela palavra. Portanto, a palavra é sagrada, sendo-o igualmente o alfabeto que compõe as palavras da revelação. Mas este alfabeto não compõe simplesmente as palavras que designam as coisas e as ideias: compõem também as quantidades e as relações, isto é, os números que, combinando-se, repetindo-se e articulando-se com as letras revelam  o que está oculto para o indivíduo comum, mas luminoso para o filósofo que pratica os saberes esotéricos cabalísticos na Bíblia. O aspeto divino das letras do alfabeto hebreu é o princípio mágico da Cabala. Assim, a língua hebraica tem uma componente funcional – de uso comum, de fixação em textos – e uma metalinguagem – a exotérica, para iniciados. Cada letra/número é uma energia, um fragmento do cosmos. Como acedemos à revelação, ao conhecimento?


A Cabala considera que a sabedoria entra em nós (se a procurarmos) através de 32 portais. Este nº 32 resulta de um conjunto de somas e multiplicações a partir do nº 4(as 4 esferas) e do nº 8(o nº do eterno, ou da eternidade, como a sua figura mostra, não tem princípio nem fim). Este conjunto de operações chega até ao número 32, que tem como expressão escrita em letras do alfabeto hebraico o anagrama de árvore.








 Árvore da Vida


 


 




Esfera: sephirah. 




Cada sephirah representa

um conceito, uma qualidade que,

desenvolvida individualmente, torna a

compreensão metafísica do universo mais

clara e próxima do pensamento do Criador.


A Árvore da Vida divide-se em 4 planos, ou esferas:

·        _ na primeira, a menos densa, Deus age diretamente (digamos que é o Céu);

·         _na segunda, temos o mundo da matéria. Deus já não age aqui diretamente, mas através de arcanjos (é uma espécie da amálgama primitiva);
·         _na terceira, temos o mundo das formações: Deus também não age aqui diretamente, mas através da voz dos arcanjos que emitem a Sua vontade (mundo criado):
·        _ na quarta, temos o mundo das ações. É o mundo físico a que chamam o canal das manifestações, o mundo da experiência da privação, da falta e, por conseguinte, da necessidade. É essa sensação que induz a busca do conhecimento permanente e insaciável sobre todas as coisas. A imagem que se atribui a este estádio é a de abismo, de que o cabalista está sempre a fugir pelo conhecimento.
Quanto mais inferior é a esfera, mais denso o ambiente. As esferas são as Sephirot (singular sephirath).

A árvore contém 10 sephirah, dez frutos. No ponto de vista macrocósmico, cada fruto é um estádiop do universo; no ponto de vista microcósmico, cada fruto é um estado de consciência. Microcosmicamente, a árvore lê-se debaixo para cima; macrocosmicamente, de cima para baixo.

Grandes cabalistas europeus ou com influência sobre os europeus:

Yeuda Halevi , séc. XI – XII, nascido em Navarra, falecido em Jerusalém;
Moisés Maimónides, século XII, nascido em Córdova e emigrado para Marrocos;
Abraham Simeon Halevi, século XVI, nascido(?) em Jerusalém
Isaac Luria, séculos XV – XVI, nascido em Jerusalém.

A partir do fim da Idade Média, o cabalismo cruza com o cristianismo neoplatónico, com o neopitagorismo e o gnosticismo. Pico della Mirandola (século XV) por exemplo,  publica em Roma as “Conclusiones philosophicae cabalisticae et teologicae” constituídas por 900 teses que desafia os concidadãos a contestar para estabelecer polémica. A igreja católica contestou só 13, o suficiente para o livro ter entrado num índice prohibitorum e ele ter que se retractar.

Finalmente, quanto a Casanova e o seu possível convicto cabalismo:

Sabe-se que Casanova era mação e privou com rosacrucistas, tendo mesmo estado presente na estreia da Flauta Mágica de Mozart em Viena. Na sua autobiografia cita factos que o implicam na mística cabalística, ora por possível convicção, ora por oportunismo, ora por diletantismo. Seja como for, a sua biblioteca de manuscritos sobre os sábios hebraicos, magia e alquimia era bem provida, foi confiscada pela inquisição em Veneza e constituiu motivo acrescido de acusação. Várias vezes ao longo dos seus textos menciona a prática de futurologia através das pirâmides numerológicas, que lhe serviram para embustar e extorquir abundantes somas à Marquesa d’Ursé, influenciar o seu protetor, senador Bragadin, prever lotarias, prever (só por exercício) a sua própria saída da prisão veneziana, tudo o que há de mais contrário à pureza ética com que os cabalistas se identificam. Enfim, creio que a sephirah superior é misericordiosa e entenderá que Casanova é um ser que contém em si  todas as energias do universo, contribuiu como poucos para a circulação do conhecimento, do prazer e da aventura que alimentaram o iluminismo, as sociedades secretas que vieram a estar na base das grandes transformações sociais que vieram a ser a Revolução Francesa e a Carta de Independência dos Estados Unidos.
   

Quanto à frase-desafio que me foi destinada:

Casanova estava preso numa prisão muito segura, tendo como único companheiro um espião e como único recurso uma faca para que o senador Bragadin, na cela do piso de cima, escavasse um buraco para fugirem. Perante a situação dificílima,  Casanova recorre mais uma vez à pirâmide numerológica a partir de um poema de Ariosto para ver se e quando a operação fuga terá sucesso. Obtém a resposta, mas não deixa de se desculpar do método divinatório junto dos leitores e é nesse contexto de pêndulo entre a crença e a dúvida que escreve:

“O facto encarrega-se de verificar o presságio. Se o facto acontecer, o vaticínio torna-se nulo; mas remeto o meu complacente leitor para a história geral, onde encontrará muitos acontecimentos que nunca teriam acontecido se não tivessem sido vaticinados.”

Um inteligente relativismo.

Clube de Leitura Verba volant, scripta manent, Janeiro de 2014




Casanova e as santas virgens de Veneza

por AméliaCorreia









Enfim, está claro que eu não teria lá ido se não fosse a curiosidade que sentia de ver que atitude teria diante de mim uma mulher daquele tipo, que se oferecera para vir cear comigo a Veneza. Estava , alíás, muito surpreendido pela grande liberdade daquelas santas virgens que tão facilmente podiam violar a sua clausura.(pág. 271)




Clube de Leitura – Escola Artística Soares dos Reis, 16 de Janeiro de 2014

Carta de MM enviada a Giacomo Casanova. Esta missiva foi encontrada em casa de MM após a sua morte. Tal facto leva a crer que não foi recebida pelo destinatário.

Meu adorado moreninho:  
Soube pelo nosso caro amigo comum (cardeal de Bernis) que vos encontrais bem, e que a única coisa que vos apoquenta agora é poder voltar a Veneza com todos os direitos assegurados. Que feliz nova para alegrar meus tristes dias, querido, nem imaginas! Estou certa de que não só conseguirás os teus intentos, como também de que te cobrirão de merecidas honras, e de que te irão suplicar perdão pela perfídia e malvadez a que te sujeitaram. Não há um dia desta pobre vida em que não me lembre de ti e dos momentos de paixão que vivemos. A tua lembrança é um lenitivo para os maus fados que caíram sobre mim, desde que foste encarcerado debaixo de chumbos.
Mal desapareceste do meu convívio, a irmã conversa, que me facilitava as fugas do convento, adoeceu com tísica galopante e ao fim de poucos meses feneceu. Esta morte abalou-me profundamente, não só porque lhe criara grande afeição, como também pelas dificuldades que me causou.

 A tua ex futura esposa (CC), pouco depois da mãe morrer, foi retirada do convento pelo irmão, que a prometera em casamento a um conde muito rico e da idade do pai. Apesar das diligências que intentei, não mais tive notícias desta terna amiga. Tal facto privou-nos dos prazeres sáficos que proporcionávamos uma à outra. Recordas, querido amigo, como a teu pedido, nós as duas, nos combates amorosos percorríamos todo o reportório da “Academia das Damas” ou das estampas de Meursius?
Ainda tentei perverter uma noviça, que entrou para o convento depois da saída de CC, mas sabes bem, que ou se nasce para o amor, fantasia e volúpia, ou pouco há a fazer! Tornou-se um belo animalzinho amestrado ao meu serviço, mas faltava-lhe atrevimento, espírito, imaginação.
Três meses após a tua ida para os calabouços, começou a aparecer no parlatório um homem de bela estampa, mascarado, que me mandava chamar e fazia passar entre as grades bilhetes. Declarava-se perdido de amores por mim, apresentando-me planos para violar a clausura que me espantaram pelo engenho e astúcia que manifestavam. Sabes bem que a curiosidade é um magnífico aperitivo, e a castidade forçada tinha-me tornado o claustro insuportável. Os riscos que correria serviram também para acicatar a vontade de violar o interdito. Era também necessário lutar contra a melancolia que me causava a tua falta e a do nosso amigo.
Este homem, belo certamente, empenhado até bastante, só contribuiu para me fazer apreciar ainda mais os vossos méritos. Com o nosso amigo conheci uma profunda amizade e gratidão, contigo uma profunda paixão que encheu meu coração, com ele nem uma coisa nem outra. Mais uma vez a satisfação que tinha com ele era do mesmo tipo que tinha com a noviça, melhor que nada, adorado do meu coração. O nosso “affaire” durou meses e tomávamos todas as precauções para preservar a minha honorabilidade e liberdade.
Podes então imaginar, meu amor, a revolta quando descobri que estava grávida e logo daquele homem que muito pouco me dizia. Tomei todas as mezinhas que me propuseram, sem qualquer efeito. Já viste alguma libertina possuir sentimentos maternais? O meu desespero foi notado no convento, não saía da cela, recusava-me a comer e o meu aspeto metia dó. Algumas freiras que nutriam por mim inveja e inimizade espiavam-me constantemente. O rumor de que estaria grávida adensou-se.
 Chamaram o clínico, contra a minha vontade, pois só desejava morrer, nem as cartas do nosso amigo animando-me e falando na possibilidade de tratar desta criança me mudaram o humor.
O médico avisou-me da do que me esperava caso persistisse neste terrível desânimo: a minha morte e a da criança que gerava. Desesperada, e com um último sopro que me ligava ainda á vida, confessei o meu estado à madre superiora. Expulsaram-me do convento.
Quando a notícia chegou ao nosso amigo, este, enviou um emissário que
simulando ser meu  familiar, me recolheu  numa casa em Florença com todas as comodidades. O nosso amigo não podia denunciar a ligação que mantinha comigo, encontrava-se numa situação delicada, e ai de mim complicar-lhe a vida. Várias vezes me veio visitar incógnito e prometeu sustentar-nos, pois a minha fortuna sofrera graves reveses com o jogo.
A criança nasceu morta para felicidade dela e minha. Não a quis ver!
Passaram dezoito anos após a tua partida e quinze que me encontro aqui. Imagina uma cortesã de quarenta anos! Adoraria ver-te, meu terno amigo, mas o tempo é vilão e pouco resta da beldade que conheceste. Talvez seja melhor conservar as memórias e não deixar que a realidade as vá macular. Fica bem meu anjo, não me arrependo de nada que fizemos, conheci o céu, que outro não existe! Recebe o coração desta que te ama acima de tudo, tua:
MM    



Casanova e a geometria do amor

por Manuela Pereira

"Estava muito admirado por ver nas caras da Nanette e da Marton a impressão resultante das setas que eu lançava em linha recta para a Ângela. Esta curva metafísica não me parecia natural; devia ser uma esquina. Infelizmente eu estava então a estudar geometria." (pág. 78)







Poesia matemática

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.

"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.

E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

 

                                                               Millôr Fernandes


 

Casanova compreendeu que as regras da geometria não se aplicam ao amor. O amor é o caos na geometria.

Não existe geometria no amor... mas pode amar-se a geometria!






 Max Frisch, em “Don JUAN ou L’amour de la Géométrie”

_ comèdie en cinq actes, acrescenta a todas as análises psicológicas, mitológicas(...),sobre Don Juan, a sua paixão pela geometria.

[ Don Juan, comme tout personage littéraire, a une famille spirituelle dans laquelle Icare et Faust, meme s’ils ne sont que ces lointains parents, sont plus proches de lui que Casanova.]
     Derrière tout Don Juan/Casanova on trouve l’ennui (…) l’ennui d’un esprit en quête de l’Absolut et qui croit savoir d’experience qu’il lui est impossible de l’atteindre. (p.98)
(---)
     Le torero qui, dans son costume argenté, s’avance vers le taureau noir, l’homme qui joue le combat à mort de l’esprit n’est autre que Don Juan/Casanova. Pour le torero non plus il ne s’agit pas en definitive de conserver la vie. La victoire ne se situe pas là. C’est la grace de son jeu qui lui assure la victoire, la précision géométrique, la légèreté du danser, ce qu’il oppose à la puissance du taureau: c’est la victoire de l’esprit de jeu qui remplit l’arène d’allégresse. (96)
(…)
     Son infidélité – l’attribut le plus connu (…) – prend allors ce sens: il n’est pas entraîné de volupté en volupté, mais tout ce qui n’est pas exact le rebute. Ce n’est pas l’amour des femmes, mais l’amour d’une chose – la géométrie par exemple –, plus fort en lui que l’amour de la femme, qui l’oblige à abandoner chacune d’elles. (92)
(…)
     “Les choses en elles-mêmes ne lui suffisent pas. En chacune il veut voir un problème. Et c’est le plus grand symptôme de l’amour. Il en résulte que les choses n’existent que quand elles existent pour l’intellectuel. La femme a parfois ce sentiment…” in L’intellectuel et l’autre, Ortega y Gasset (p.91)
(…)
      La beauté, c’est-à-dire ce qui est clair, limpide, transparent, c’est ce qu’il a dans l’esprit quand il parle de géométrie – et naturellement il a en tête la géométrie qu’on peut encore imaginer. (p.98)
(…)




Premier acte


[ Preparativos para o casamento de Don Juan com Dona Anna. Assustados ambos fugiram para o parque.]

(…)

DON JUAN:  Nous nous sommes rencontrés dans le parc. Un pur hazard. Hier dans l’obscurité. Et
tout fut si naturel tout à coup. Nous avons fui. Tous deux. Mais dans l’obscurité, tout était simple.
(p.34)
(…)
DON RODRIGUE:  Où veux-tu donc aller?
DON JUAN:  Fuir.
DON RODRIGUE:  Retourner à la géométie?
DON JUAN:  Là où je trouve des certitudes: oui… ici je suis perdu.
(p.19)
(…)
Deuxième acte
[Père Diègo e Dona Elvire – a mãe de Anna – tentam compreender a recusa de Don Juan em casar.]
(…)
Don Juan:  Que pourrait bien dire le père? De nous tous c’est lui qui peu le mieux me comprendre.
Porquoi n’est-il pas marié?
Père Diègo:  Moi?
Don Juan:  Par exemple avec Dona Elvire.
Père Diego:  Grand Dieu!
Don Juan:  Pour Dieu, dit-il, et moi  je dis pour la géométrie; tout homme qui reprend ses esprits
retrouve quelque ideal supérieur à la femme. (p.36)
(…)
DON jUAN:  Adieu! (Il baise la main de Dona Anna.) Je t’ai aimée, Anna; même si je ne sais pas
laquelle j’ai aimée, la fiancé ou l’autre. En te perdant je vous ai perdues l’une et l’autre. Je me
suis perdu moi-même.  (Il lui baise la main à nouveau.) (p.39)
(…)
Troisième acte
[Livre do casamento Don Juan conversa com seu amigo Don Rodrigue]
(…)
Don Juan:  (…) Je me sens libre, Rodrigue, comme jamais encore je ne le fus!
La tête froide et l’esprit vif et aspirant aux joies viriles de la géométrie.
Don Rodrigue:  Géométrie!
Don Juan:  L’as-tu jamais éprouvé, l’étonnement tranquille que procure une connaissance juste?
Par exemple: la définition d’un cercle, la précision d’un lieu géométrique?  J’aspire à ce qui est net,
sobre et exact, mon ami. Le marécage de nos états dâme m’épouvante. Jamais encore la vue d’un
cercle ou d’un triangle ne m’inspira confusion, ni dégoût.
Sais tu ce que c’est qu’un triangle? Une chose inévitable comme un destin:  des trois elements que
tu possèdes ne peut resulter qu’une figure et une seule et l’espoir, l’apparence de possibilités à
l’infini qui si souvent jette le trouble dans notre coeur, se dissipe comme une chimère devant ces
trois segments. Une solution et non pas la première venue. Tous les vertiges et tous les états d’âme
n’y changeron rien, une figure et une seule qui coincide avec son nom. N’est-ce pas beaux,
Rodrigue? (p.50)
(…)
Là ce qui vaut aujourd’hui aura valeur demain et vaudra encore sans vous, sans moi, quand
mon coeur aura cessé de battre. (p.50)
(…)
Si nous refuson le mensonge de la surface des choses, si nous voulons voir dans ce monde plus que
le mirror de nos voeux, si nous voulons savoir qui nous sommes, allors Rodrigue, notre chute ne
cesse plus, et le siflement à nos oreilles est tel que nous ne savons plus où Dieu habite. (p.51)
(---)
Quatrième acte
[Prepara um golpe de teatro para desaparecer do mundo. Procura a sua própria perdição para melhor
encontrar a paz.]
(…)
Cinquième acte
[Longe do mundo conversa com Père Diego]
(…)
L’ÉVÊQUE:  Nous vous attendios dans les jardins, mon cher, dehors le charme de la soirée est
envoûtant.
(…)
…quand le dernier rayon de soleil allume les asters d’un feu rouge et violet, tandis que  la brume
azurée s’élève de la vallée pleine d’ombre déjà, je me répète chaque fois: c’est un paradis qui
s’étend à vos pieds.
(…)

Je le disais à l’instant: quel art de vivre avec l’épiderme possédaient les vieux Maures qui
tracèrent ces jardins.

 Toutes ces cours et leurs échapées successives sur les montagnes, ces
enfilades de cours baignées de fraîcheur délicieuse où le silence n’a rien de sepulcral, mais reste
imprégné du mystère des lointains bleuissant derrière les grilles ouvragées. On fait quelques pas,
on se délasse à l’ombre dont la fraîcheur est adoucie par le rayonnement d’un mur tiédi par le
soleil. Comme tout cela est délicat et conçu pour une sensibilité à fleur de peau. Et je ne parle
pas des jeux d’eau! Quel art de faire vibrer ainsi les cordes de nos sens sous les doigts de la création,
quelle maîtrise pour jouir de l’éphémère, devenir spirituel jusqu’à l’épiderme, quelle civilisation! (p.83)
(…)
Ce que vous m’avez dit la dernière fois m’a longtemps préocupé, votre histoire de dimension, vous
savez!
 “ La géometrie, ele aussi, peut prétendre à une verité qui échappe à l’imagination.”
Ce sont bien vos termes, n’est-ce pas? Des droites, des plans, l’espace. Mais qu’est-ce que vient faire
la quatrième dimension? Et pourtant vous pouvez prouver par le raisonnement qu’elle existe
nécessairement. (Don Juan vide son verre.)  Don Juan, que vous est-il arrivé? (p.84)
(...)
   
História da minha vida, vol.I  _ Giacomo Casanova     
Clube de Leitura, 16 Janeiro 2014                                                                               Manuela Pereira


  
Casanova e as mulheres 
por Alexandra Azevedo
 


Casanova nasceu a  2 de Abril de 1725, em Veneza e morreu a  4 de Junho de 1798 em Duchcov, na Boémia. Viveu, portanto, toda a sua vida na  Europa das “ Luzes”.
     As «Luzes», porém, pese embora a abertura que  trouxeram ao pensamento filosófico com a ideia de contrato social e de uma maior igualdade entre os seres, em nada contribuíram para o  reconhecimento da racionalidade das mulheres. O discurso médico do século XVIII, aliás, reduz todo o ser feminino à condição materna  e considera essa especificidade como condicionante do seu desenvolvimento intelectual. Naturalmente, é também esta a visão de Casanova que considera  que à mulher  basta uma razão prática: “… o menino não é filho da mãe no tocante ao cérebro, que é a sede da razão, mas sim do pai; (…). Neste sistema, a mulher apenas tem, quando muito, a razão de que precisa; não lhe sobra para dar uma dose ao feto” 
            Percepcionada negativamente no discurso filosófico da Grécia Antiga como sendo,  tal como os animais, o resultado menor de homens que não o conseguiram ser plenamente (para Platão, por exemplo,  as mulheres são a reencarnação de  homens que na sua primeira existência foram cobardes e conduziram mal, ou seja, sem virtude, as suas vidas) esta  exclusão da mulher da esfera do pensamento teórico foi ao longo dos tempos vista como algo de evidente porque "natural".
            Assim e invertendo a relação entre as causas e os efeitos, inversão que   "naturaliza" aquilo que é uma construção social e  faz com que as diferenças biológicas ao serem percebidas  segundo uma visão masculina se tornem elas próprias o fundamento da dominação, Casanova, comprova a incapacidade feminina para a abstracção  com o facto de não haver mulheres na ciência: “Numa mulher a ciência não tem cabimento; ela prejudica o essencial do seu sexo e, além disso, nunca vai para além dos limites conhecidos. Nenhuma descoberta científica é feita por mulheres. Para ir plus ultra é necessário um vigor que o sexo feminino não pode ter”.
Do mesmo modo, as relações que na sociedade se estabelecem entre os sexos são  olhadas como "naturais " no sentido de ahistóricas e não como  o resultado de uma longa construção social dominada por essa  mesma  visão masculina da realidade. Neste sentido, a mulher existe para servir o homem e perpetuar a sua espécie. Qualquer veleidade que rompa esta ordem de valores traz-lhe o estigma que encontramos, por exemplo, nestas palavras de Casanova:   “A mulher de inteligência que não é capaz de fazer a felicidade de um amante é a erudita. (…) Que insuportável fardo para um homem é uma mulher que tenha, por exemplo, a inteligência da senhora Dacier! Deus vos livre, meu caro leitor” (Anne Dacier, literata e tradutora de obras clássicas).
Excluída do percurso masculino da razão e acantonada ao seu próprio corpo, a mulher não encontrou no século revolucionário de Casanova o reconhecimento da sua cidadania e Olympe de Gouges morrerá guilhotinada por ter ousado escrever uma “Déclaration des Droits de la Femme et de la Citoyenne”!

Clube de leitura
16 de Janeiro de 2014
Alexandra Azevedo




Casanova, leitor de mulheres

por António Nabais

A mulher é como um livro que, bom ou mau, deve começara a agradar pelo frontispício. O frontispício da mulher vai também de alto a baixo como o de um livro, e os seus pés, que interessam tantos homens da minha espécie, criam o mesmo interesse que a edição da obra cria no homem de letras. (pág. 102) 
Este excerto constitui um exemplo daquilo a que, em narratologia, se dá o nome de discurso abstracto, ou seja, um enunciado de carácter sentencioso, em que o narrador exprime aquilo que considera verdades universais .
Uma leitura apressada poderia levar-nos a pensar que Casanova dá mais atenção à forma do que ao conteúdo, mas o simples facto de comparar a mulher a um livro já pode ser indício de que não é assim, já que se trata de um objecto cujas virtudes principais deverão estar no interior. De qualquer modo, o autor não despreza a importância de uma boa edição, ou seja, considera que é importante que uma mulher cuide “das suas roupas e da sua cara”.
 
A beleza ou os meios de atracção, no entanto, não se reduzem ao objecto. Cabe a um sujeito competente, raro portanto, reparar em pormenores invisíveis para uma maioria de incompetentes. Casanova considera-se, aliás, um homem de uma determinada espécie, a espécie de homens que, ao contrário da maioria dos homens, “repara nos belos pés de uma mulher”, o que poderia configurar um caso de podolatria, e que “se preocupa com a edição”.
Ainda que o fronstispício seja, realmente, importante, para Casanova, a verdade é que esta afirmação poderá transmitir a ideia de que a personagem se deixara levar sempre pelas aparências ou que teria mesmo uma obsessão pela aparência, mesmo que requintada. A continuação do texto e o facto de ter escolhido o livro como termo de comparação desmentem essa primeira impressão: não basta olhar para a qualidade da edição e a mulher, esse livro, deve ser folheada e lida.
Casanova, no entanto, como bibliófilo que é, ou seja, como conhecedor das mulheres, não precisa de frontispício cuidado para descobrir a beleza feminina escondida (ou para descobrir o feminino escondido). Como exemplo disso, temos, Teresa-Bellino e Henriette, vestidas de homem, e M.M., cujos encantos femininos não ficam obscurecidos pelo hábito de monja.
O desafio colocado por Teresa é extremamente complicado, uma vez que se não se trata apenas de uma mulher disfarçada de homem: é apresentada como um homem forçado a ser mulher, um castrato. Casanova, no entanto, meteu “na cabeça a ideia de que devia ser uma rapariga.” (p. 133) Até à revelação do verdadeiro sexo do falso castrato, o narrador viverá um conflito interior entre uma atracção envergonhadamente homossexual e uma quase certeza do verdadeiro sexo de Teresa.
Casanova revela uma capacidade única para reconhecer o verdadeiro feminino e não há aparência que o iluda. Diante das pressões do profundo conhecedor de mulheres, Bellino revela-se Teresa. Ainda sob a capa masculina, já Casanova tinha feito uma descrição em que comparava o castrato a Afrodite, como um retrato da beleza ideal da mulher.
Com Henriette, ficamos, ainda, a saber que, para além do frontispício, é, também, o interior da mulher. Note-se, na página, o modo como Casanova sintetiza, através de uma gradação, na p. 167, o processo que o levou a ficar seduzido por Henriette: primeiro, estava escondida; depois, vê-lhe a cabeça; a seguir, consegue observar o conjunto, quando está de pé; finalmente, assiste ao coroar da “obra”, graças a uma inteligência de que o narrador “gostava muito”. Casanova, como se vê, gostou do frontispício, mas foi a leitura do livro que o prendeu.
Na p. 258, Casanova revela o que a atraiu em C.C.: em meia hora ficou encantado “pelo seu porte, pelo seu rosto e por tudo o que nela via nascer.” A verdade é que o que sobretudo o impressionou “foi um espírito vivo e muito jovem em que brilhavam a candura e a ingenuidade, sentimentos simples e elevados, uma vivacidade jovial e inocente; enfim, um conjunto que pôs diante da minha alma o venerável retrato da virtude que teve sempre sobre mim um grande poder para me tornar escravo do objecto onde julgava reconhecê-lo.” Mais uma vez, o frontispício não é suficiente e Casanova acaba por dizer revelar que a sua carreira de seduzido, paralela à de sedutor ou causa dela, dependeu mais das virtudes interiores, em mais uma prova de que o belo só será belo se for bom.