segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Oblomov




Da sobrancelha ao cotovelo: o percurso de Oblomov


por António Nabais


Depois de conseguir, finalmente e depois de várias tentativas sempre adiadas, levantar-se da cama, Oblomov, na realidade, continua deitado, porque estar de pé não é apenas uma actividade física, é um estado de espírito. Efectivamente, Iliá Ilitch Oblomov não tem força de vontade, adia constantemente planos, evita decisões e está decidido, passe a contradição, a não sair de casa. Pelo que percebemos, este carácter resulta da educação recebida, da hereditariedade ou de ambas: o pai, na p. 142, “não está ocioso. Fica toda a manhã sentado á janela a observar rigorosamente tudo o que se passa no pátio”; a mãe também “anda muito ocupada: fala durante três horas com Averka, o alfaiate.”
É este homem fraco que encontrará Olga Sergueiévna. Coube a Stoltz, o amigo alemão, apresentá-los. Olga é uma mulher rara, ignorada pelos inteligentes e temida pelos tímidos. A primeira vez que se encontram, Oblomov fica impressionado pelo olhar de Olga (p. 249).
Poucas páginas depois (pp. 251-252), Oblomov procura concentrar-se na aparência exterior de Olga. Tudo é vago do pescoço para baixo, mas minucioso na descrição do rosto. Mesmo assim, o que interessa é não o aspecto físico mas o reflexo do interior: os lábios revelam “a presença de um pensamento sempre concentrado em qualquer coisa.”; o olhar (não os olhos) mostrava um “pensamento eloquente”. As sobrancelhas merecem destaque, não só porque transmitem beleza aos olhos, mas também “porque raramente se mantinham simétricas: uma era um pouco mais alta que a outra, e por isso formava uma pequena ruga por cima da sobrancelha, parecendo indicar a presença de um pensamento ali escondido.”
Mais à frente, na p. 259, o maravilhamento de Oblomov com a beleza de Olga fica-se pela região superior do corpo: os olhos, sorriso, os dentes.
Surge, então, entre ambos, uma atracção que só será verdadeiramente entendida posteriormente. Nessa relação, tendo em conta a fraqueza de Oblomov e a força de Olga, é fácil perceber quem assume a posição dominante.
Essa hierarquia, por assim dizer, é perfeitamente aceite por ambos. Olga quer modificar Oblomov, curá-lo da terrível “oblomovite”. Na p. 302, Olga é a “mulher no papel dominante”; mais à frente, na p. 308, é o homem que é Galateia e a mulher, Pigmalião.
Olga é, portanto, uma mulher superior, no sentido de alguém que vive na sua cabeça. As referências aos olhos e, mais especificamente, às sobrancelhas servem para confirmar isso mesmo. A alusão às sobrancelhas inclui a assimetria e a ruga pensativa. Oblomov, na p. 347, considera que é “nessa ruga que reside a sua tenacidade”.
Viremos a saber que Olga não amou Oblomov. Não poderia amá-lo. Amou aquilo em que iria transformar Oblomov, um Oblomov imaginário, curado da oblomovite. Todavia, como poderia Oblomov não sofrer da doença, sendo que essa doença é, afinal, o seu carácter. Pode alguém deixar de ser quem é? Pode alguém curar-se de si próprio? Basta ter consciência disso? Talvez, no fundo, Olga já amasse Stoltz, uma espécie de príncipe encantado.
Stoltz, aliás, com a sua habitual perspicácia, explica: “se no lugar dele [Oblomov] estivesse outro homem (…), sem dúvida que as vossas relações teriam evoluído em amor, fortaleciam-se, e nesse caso… Mas isso é outro romance e outro herói, com que nada temos a ver.” (p. 551) A própria carta de Oblomov explica isso mesmo, na p. 552.
Incapaz de acompanhar a sobrancelha de Olga, Oblomov descobre os cotovelos de Agáfia Matvéiena. Da razão e da inteligência, Oblomov desce à carne.
Quando, na p. 388, Agáfia entra na sala, Oblomov já a tinha visto “de pescoço e de cotovelos nus.” O adjectivo poderá não ser apenas objectivo, até porque o seu uso é frequente, a propósito de Agáfia. Na p. 399, surge três vezes: note-se, a propósito, a atracção irreflectida presente na frase “[Oblomov] deu com o olhar no busto alto e nos ombros nus.”
A mulher, que já não era apenas pescoço e cotovelos, é descrita em dois parágrafos. Há um pormenor curiosíssimo: Agáfia quase “não tinha sobrancelhas” (p. 388).
O primeiro diálogo entre ambos mostra que esta mulher se coloca num plano inferior ao dos homens, como se pode verificar no facto de que prefere que seja o irmão a falar.
Agáfia é, portanto, alguém que não pensa (essa alusão surge algumas vezes: “nunca se interrogava”, “não pensava”), ao contrário de Olga, com a sua sobrancelha analítica.
Seduzido pelos cotovelos de Agáfia, Oblomov encontrará a felicidade com alguém que não pretende modificá-lo e apenas servi-lo, o sonho, no fundo, de qualquer preguiçoso, o que, sendo simplista, não deixa de ser verdadeiro. Numa relação perfeitamente equilibrada, a mulher vive satisfeita por poder servir o homem.
A obtusidade de Agáfia é referida mais do que uma vez, não ficando a impressão de que isso seja um defeito, mas uma característica. É a impossibilidade de análise que faz com que ela própria não se aperceba do amor que sente por Oblomov. Cabe ao narrador, numa espécie de debate, explicar os sinais desse mesmo amor, entre as pp. 496 e 500, numa explicação tão pormenorizada que parece querer chegar ao próprio entendimento de Agáfia.
Na p. 502, é o narrador, usando de omnisciência, que explica o que simbolizam, em parte, os cotovelos de Agáfia: “A atitude dele para com ela era muito mais simples: via em Agáfia Matvéiena, nos seus cotovelos sempre em movimento, nos seus olhos preocupados e atentos a tudo, nas eternas deslocações do armário para a cozinha, da cozinha para a despensa, dali para a cave, no seu perfeito conhecimento do governo da casa e de todos os confortos, a encarnação do ideal daquele repouso imenso como o oceano, inviolável, cujo quadro ficara indelevelmente impresso na sua alma desde a infância, sob o tecto paterno.”
Na verdade, as constantes referências à nudez também insinuam algum desejo por parte de Oblomov que descobre em Agáfia a companheira que lhe permite exercer a sua oblomovite em paz. Olga terá sido um acidente que lhe permitiu perceber que nunca mudaria, uma oportunidade para perceber que mulher deveria amar ou por que mulher deveria ser amado. O percurso de Oblomov vai, portanto, do cérebro para o corpo, de Olga para Agáfia, dos olhos para o cotovelo desnudado, o cotovelo que é um braço que trabalha e a carne que atrai. Tudo está bem quando acaba bem.


Oblomov

Zahar o criado, Oblomov o senhor
 - opúsculo sobre uma ociosa luta de classes


  por Conceição Rocha



Na Rússia, até ao fim da monarquia, a estratificação social compreendia, no fim da escala, o grupo dos servos e imediatamente acima o dos criados. Havia alguma diferenciação de estatuto embora, ao que parece, a película diferenciadora fosse muito ténue e até porosa. Aqueles pertenciam à terra e, por conseguinte, à família terratenente, eram transaccionados com ela, mas não eram propriamente escravos, pois se se inscrevessem no exército ou na marinha, ou se ingressassem num convento, obtinham automaticamente carta de liberdade        (os homens, claro); também ganhavam algum dinheiro com o lucro de produtos que vendiam, sobretudo peles e com esses proventos podiam comprar a liberdade. Na Sibéria ganhava também alforria o servo que abatesse um urso, sendo essa alforria para a família directa toda, se urso e servo morressem no acto de caça.
Quanto aos criados, provinham de grupos familiares que serviam famílias nobres ou burguesas com algumas posses, por vezes ao longo de gerações cuja antiguidade se perdia no tempo. Ambos os sexos tinham uma função decisiva e específica junto da família: o sector feminino tratava da casa e seu governo, da capoeira e da pocilga, da cozinha e da aleitação e criação das crianças. O sector masculino ocupava-se do serviço de portaria e de mesa, tratava de tudo o que dizia respeito ao quotidiano dos homens da casa - escolha e tratamento das roupas, ajuda na toilette, asseio e transporte das armas de caça, asseio dos cavalos e condução dos "veículos", levar e trazer de recados e, sobretudo, grande participação na vida íntima do senhor-  mensageiro, auscultador de novidades junto dos seus pares nas outras famílias, etc. Ambos, criados e criadas tinham salário, consta que misérrimo e nulo mesmo, se a família estivesse falida.
A relação criado/criada - família patronal era típica deste modelo de estratificação e não muito diferente do que ocorria no ocidente alguns séculos atrás: uma relação de confiança mútua baseada na habituação e na proximidade, uma relação de fidelidade por parte dos criados, fundada no facto de saberem não ter melhor futuro se abdicassem do serviço à família, não terem escolaridade que lhes permitisse enfrentar o mundo com alguma confiança e, como consta de todos os manuais de sociologia, a convicção acrítica de que cada um ocupa um lugar determinado no mundo e há que rentabilizá-lo da melhor forma. Essa convicção e a proximidade ao longo de gerações gerava mesmo algum afeto mútuo ou, pelo menos, da parte do criado pelo senhor. São os meandros desta relação que muita ficção explora, desde os romances de cavalaria, o D. Quixote de la Mancha, a commedia del'arte, as obras dos grandes russos do século XIX, a ópera de Mozart até Rossini, o nosso Eça  do Primo Basílio até, no século XX, por exemplo, ao teatro de Ibsen.
Claro, minhas e meus amigos, que este tema dava uma tese de doutoramento daquelas chatas e recheadas de citações, cheias de reflexões ideológicas, obviamente de Marx, Engels e socialistas utópicos com especial incidência em Proudhon ( não me responsabilizo pelo Saint Simon que era conde e não sei como tratava os criados) e em todos aqueles que em boa hora metralharam a malandragem aristocrática, abanando os alicerces das stairs nos upstais/downstairs deste mundo perverso - Lenin, Rosa Luxemburgo e o divino Trotski, percursor de Catarina Martins. Diria eu graças a Deus, não fosse o medo que tenho de Deus desde que ele pertence ao Daesh.
Posto o prólogo, que tem por objecto mostrar às amigas e aos amigos como vou frequentando a cultura, vamos ao Zahar e sua entourage. Em nada diferente do tradicional criado pessoal, até naquele detalhe que faz a diferença e individualiza cada dueto criado-senhor: a adaptação às características de personalidade do amo, o ser a outra face da moeda, simultaneamente distanciado para criticar e fugir e próximo para compreender e encontrar soluções. Entre Sancho Pança e Zahar a diferença está no senhor: activo/delirante de um e indeciso/ocioso do outro. Ambos espertalhões e extraordinariamente práticos, ajustam a sua vida conforme a leitura que fazem do mundo a partir dos patrões, nisso despendendo o menor esforço e a eficácia possível. Comer e dormir são a sua  luta, desenvolvida na máxima proximidade do amo, que vigiam e servem sem a menor preocupação de competência. Desleixados, línguas afiadas, porquíssimos, desbocados para com o amo, são agressivos contra aqueles que entendem explorá-lo ou enganá-lo.

Zahar acompanha Oblomov desde sempre e para além da morte. Conhece-o tão completamente que até sabe a duração dos sonos do amo para avaliar o tamanho das escapadelas que pode dar. É o companheiro perfeito da preguiça absoluta de Oblomov: o centro do mundo para si é o fogão, junto do qual dorme, dormita e faz sorna entre o prato de comida que a mulher lhe serve, a indignação de faz de conta por não poder calçar as botas ao amo, por receber deste ordens e contra ordens que cumpre partindo e estragando tudo. Medíocre senhor, medíocre servo, no entanto ciente este do papel que lhe compete: tudo fazer ao amo desde que este acorda até que adormece, tudo fazer que neste caso é sobretudo tudo não fazer: não limpar, não cuidar da roupa, não conservar nada direito; lutar com as botas, argumentar, lamentar, sobreviver com expedientes, ocupam os momentos que sobram do borralho do fogão. Alguma emoção se adivinhou quando sobre Oblomov pairou a asa da paixão, levar e trazer recados sempre alterou um pouco a rotina, mas tudo se esfumou no fim previsível.
As revoluções industrial, primeiro, política depois,  acabaram com os Zahars, embora cá na terra tenham ficado uns simulacros encarnados nas sopeiras de origem rural que, de bigodes, pernas peludas e aventais de riscado pontificaram entre a cozinha e a sala, com baixo salário, segurança social nenhuma, vítimas daqueles a quem foram chamando alegremente  meninos e meninas, mas que nunca as sentaram à mesa, embora na sua gíria social as designassem por "família".
Acomodado à preguiçosa Oblomovite, privado de qualquer ambição que não fosse chegar vivo e alimentado até ao dia seguinte, folgado e grato pelo destino não lhe ter reservado um amo que o espancasse, Zahar vê um dia alterado o sossego da sua pequena vida: Oblomov morre e deixa-o desprotegido, como seria de prever. Miserável, passa por outros empregos onde exercita sem sucesso a sua capacidade de estragar e preguiçar. Restam-lhe as saudades do amo, cuja campa de vez em quando visita para recordar os bons tempos. Pelo menos é o que diz a Andrei Ivánitch Stoltz, de quem recebe esmola e promessa de mais alguma coisa se aparecer em casa.
Zahar aprendeu certamente com as várias gerações de antepassados essa espécie de fidelidade irracional que, alicerçada na diferença, acaba por se amalgamar com o amo, como a rocha que se vai formando com os minerais que a natureza lhe pôs ao alcance.  Em menos de uma centena de anos essa amálgama vai implodir e dar lugar a outras fidelidades. Os tovaritchs também chamavam paizinho ao Stalin.

Moral da História: nem Oblomovs, nem Stalines, nem o Reino Unido com os upstairs e os downstairs, viva o sossego com a querida Geringonça.

  
Porto, 2 de Julho, 2016


Concenka Pintova  Rochova