quinta-feira, 7 de julho de 2022

“Romântico? Deus me livre de o ser!”

 


                 “Romântico? Deus me livre de o ser!”

                          por  Alexandra Azevedo

No capítulo VIII de “Viagens na Minha Terra”, a propósito da descrição da charneca ribatejana, o narrador afirma: “Eu amo a charneca. E não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser - ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.”

De facto, Garret reconhece que muitos dos elementos característicos do romantismo tinham caído já numa nova retórica tão artificial quanto a do arcadismo que o romantismo se propusera substituir. Caricaturando, explica ao leitor como se faz literatura romântica: “Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas, mais ou menos ingénuas. Um pai, nobre ou ignóbil. Dois ou três filhos de dezanove a trinta anos. Um criado velho .Um monstro, encarregado de fazer as maldades. Vários tratantes e algumas pessoas capazes de intermédios e centros.” E, depois de mais algumas indicações igualmente preciosas sobre a que românticos franceses deve um autor  ir “recortar as figuras de que precisa”  termina ironizando: “E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original”. (Cap. III) 

Repare-se que a declaração formal de que não é romântico no sentido negativo da palavra (“ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.”) decorre da afirmação anterior _ “Eu amo a charneca” e com esta afirmação, confirma a sua condição de verdadeiro romântico. Porque é a charneca ribatejana, bem portuguesa que ele ama e descreve. É uma descrição ancorada na realidade vivida e sentida e não uma imitação oca e estéril de obras alheias e consideradas como modelos a seguir, mas que, na verdade, nada dizem à realidade da nossa cultura.  Não é o bosque druídico, que não temos, que descreve. O que o narrador poetiza é a  charneca do Ribatejo. É certo que essa descrição obedece aos cânones românticos: a charneca  é erma e  selvagem e a descrição é feita à hora romântica do pôr-do-sol, mas estes traços românticos assentam na sinceridade dos sentimentos experienciados. Os românticos manifestavam uma acentuada preferência pelos lugares solitários e não domesticados pelo homem pois, aí, diziam, era mais fácil meditar nos grandes temas da humanidade (Deus, a eternidade…) e, por outro lado, o fim do dia tem uma luminosidade que dá a tudo contornos indefinidos e os românticos, ao contrário dos clássicos que amavam a clareza da razão, preferem o vago e o indefinido do sentimento.

No entanto, o próprio autor não consegue fugir às características românticas que deplora e satiriza para ir ao encontro do gosto do público de então. A novela que introduz na narrativa digressiva é hoje, a meu ver, a parte menos interessante da obra. As revelações trágicas, as mortes das personagens, as vozes cavas, os vultos negros, não resistiram ao tempo e surgem hoje como um dramalhão um pouco ridículo e totalmente dispensável.

O Garrett romântico, sincero, poético, esse continua a ler-se com enorme agrado.

 

Viagens na Minha Terra: a distância entre autor e narrador

 

      Viagens na Minha Terra: a distância entre autor e narrador

                                                                        por António Nabais

A narratologia distingue autor e narrador, sendo o primeiro uma pessoa real e o segundo, um ser de papel. O primeiro está sujeito às leis da morte física, o narrador estará livre dessa lei, enquanto a narrativa existir.

Esta distinção faz sentido e terá nascido do combate ao biografismo que olhava para a literatura – ou para a arte em geral – como um tecido mais ou menos revelador da vida do autor, com tudo o que isso implica.

Um exemplo dessa leitura biografista será o monumental livro que João Gaspar Simões escreveu sobre Eça. Os exageros biografistas transformaram a análise literária numa espécie de arqueologia da vida dos autores, sendo o texto um simples veículo de informação. Olhava-se para a literatura para descobrir o autor, ficando, portanto, a literatura esquecida, reduzida a uma fonte.

Há poucos anos, o programa de Português do Ensino Secundário, num delírio absoluto, considerava que os sonetos camonianos eram textos autobiográficos. Basta, entre outros exemplos, comparar “O dia em que eu nasci moura e pereça” com o Livro de Job para se saber que toda a tristeza apocalíptica do poema é, afinal, intertextualidade. A expressão de um sentimento não é o sentimento, um bocadinho à semelhança do cachimbo de Magritte e relembrando o “fingidor” de Pessoa.

José Saramago, discípulo declarado de Garrett, defendeu, no entanto, quase a proscrição do narrador: "Um livro não está formado somente por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, acima de tudo, a expressão do seu autor. Pergunto-me até, se o que determina o leitor a ler não será a secreta esperança de descobrir no interior do livro a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor."

Seja como for, a distinção autor/narrador constitui uma “diferença ontológica irreversível” (“Autor”, Dicionário de Narratologia). Por outro lado, entre autor e narrador haverá sempre diferentes distâncias conforme os contextos, mesmo que, no auge do estruturalismo, tenham querido quase declarar a morte do autor, porque tudo seria apenas texto e estruturas invariantes.

Em Viagens na Minha Terra, também por ser uma obra “inclassificável” (capítulo XXXII), com um narrador autodiegético tão presente, numa mistura de ficção, reportagem de confissão, autor e narrador estão tão próximos que é fácil – e talvez desejado por Garrett – confundi-los. Aliás, a obsessão de Garrett por introduzir notas ao texto ou a referencialidade histórica e pessoal presente (as referências a Passos Manuel ou aquilo que se sabe do liberal desiludido em que Garrett se transformou) aumentam a possibilidade de o narrador estar morto, cedendo o lugar ao autor.

Os estudiosos da obra de Garrett, sem desprezar a importância da terminologia narratológica, têm já abordado, sendo de realçar o artigo “A Morte do Leitor nas «Viagens» de Garrett, de Victor J. Mendes, na Colóquio-Letras 153/154, de Julho-Dezembro 1999.

A minha memória guarda o tédio com que li este livro pela primeira vez, há mais de quarenta anos. Outras memórias nasceram das releituras seguintes, de uma obra que constitui um desafio a qualquer leitor, incluindo este leitor formatado para distinguir autor e narrador, distinção, repita-se, extremamente operativa. Um autor que, no século XIX, consegue o feito de incomodar leitores desta maneira só pode ser louvado, um autor que tenta impor a sua própria (in)classificação (o romântico que se recusa a sê-lo), é um marco na vida de qualquer leitor e de qualquer clube de leitura.

Como se consegue criar literatura, contando apenas aquilo que se pensou e se sentiu durante uma simples viagem? Sendo Garrett. Aceitando a possibilidade de que, afinal, não haja narrador, Viagens na Minha Terra não é um livro, é uma gravação que nos permite ouvir a voz do autor.

 

 

 

 

Actualidade e anacronismo em Viagens na Minha Terra

 

CLUBE DE LEITURA DA EASR – Margarida Mouta - Julho de 2022

Introdução

Pela sua natureza híbrida, “Viagens na Minha Terra” é difícil de enquadrar num único género literário. Esta é, como sabemos, uma das várias características que permitem detetar na obra fortes traços de contemporaneidade. Calhou-me na rifa o tema Actualidade e anacronismo em “Viagens na Minha Terra”.  Procurando não me afastar muito do tema proposto, tentarei provar, com este pequeno texto destinado a esta ilustre assembleia, que é efetivamente possível equacionar essa contemporaneidade. Não esperem, contudo, encontrar na minha prosa, ecos do relato jornalístico, da novela sentimental, da memória autobiográfica, do ensaio sociopolítico, do diário íntimo ou até mesmo da prosa de ficção que encontramos no texto garrettiano. O meu fôlego e modesto talento não darão para tanto. Tentarei, tão-só, apresentar-vos numas quatro condensadas páginas –constrangimento imposto pelo tempo de duração da vossa paciência e pela hora do nosso jantar – um breve esquisso da viagem e da novela sentimental. Quanto às digressões, filosóficas, literárias ou outras, façamo-las no decorrer da nossa sessão.

A Viagem de Lisboa a Santarém

Convido-vos a iniciar a viagem não a 17 de julho de 1843, mas 179 anos depois, neste ano da graça de 2022. Embarquemos, pois, não sem antes fazermos uma pequena viagem à roda dos nossos quartos para provarmos a improficuidade do programa turístico proposto pela agência do Senhor Xavier de Maistre.

Posto isto, completado que está o circuito da alcova, aceitemos o convite da Associação Caminhando que proporciona cruzeiros no rio Tejo e comecemos, sem mais delongas e sem madrugadas desnecessárias, a nossa viagem. Partiremos às 10 horas da Praça do Comércio. A primeira etapa levar-nos-á ao Parque das Nações, onde teremos oportunidade de apreciar o belo Centro Comercial Vasco da Gama, recinto em que o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma Sociedade, passa as tardes de domingo; admiraremos depois esse prodígio da técnica que é a Ponte Vasco da Gama, para depois nos deleitarmos com a graça do parque habitacional da Póvoa de Santa Iria; espreitaremos a zona ribeirinha de Alhandra sob o olhar vigilante do PAN e suas hostes implantadas na Praça de Touros e, finalmente, chegaremos a Vila Franca, aquela que continua sendo de Xira, apesar dos sucessivos, odiosos e engulhosos governos de patuscos que nos têm calhado em sorte.

Embarquemos, pois! Viajando em velocidade de cruzeiro, contemplemos de todo o nosso vagar este majestoso e pitoresco anfiteatro de Lisboa oriental que é vista de fora, a mais grandiosa parte da cidade.  Que outra saída tem Lisboa que se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E aí correríamos o sério risco de um encontro matinal com ósculos presidenciais que atrasariam sem dúvida a nossa partida.

O nosso barco não é sério nem sisudo, dispõe de mesas e de toldos que nos protegem do sol, mas hélàs, por todo o lado se vêem avisos que nos impedirão de acender os nossos charutos. Encontramo-nos num transporte público fluvial e, pour cause, aspirar molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro de Havana é uma das coisas que nos estarão interditas neste barco, quiçá nesta terra, que já não é o país do cigarro livre. Tal ousadia revelaria uma atitude hoje taxada de politicamente incorrecta que acarretaria à autora deste texto o risco de ser acusada de aceitar o patrocínio da indústria do tabaco. Perdoem-me o desabafo desta ponderação que está na ordem das coisas, mas este necessário e inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há-de levar muito tempo, há-de ser contrastado por muita reação antes de completar-se…

Eis-nos chegados à Azambuja. Aí não vislumbrámos o desembarcadouro, mas pudemos aspirar o cheiro a queimado das agulhas de pinheiro que restavam no pinhal, devastado por sucessivos incêndios. Houve um breve momento em que cada um de nós se interrogou, meditativo: Onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto é possível? Pois o Pinhal de Azambuja é isto?...

Desencantados, incapazes de dezambujar a nossa frustração, decidimos passar aí a noite. Através do Tripadviser encontramos uma Guesthouse, onde nos perguntaram, em inglês, se havíamos feito reserva. Cabisbaixos, humildemente rendidos à evidência da modernidade, demos o nosso melhor na língua de Shakespeare e de Julian Barnes, com um Do you have any rooms available for tonight? Enfim… Como diria o nosso Camões, todo o mundo é composto de mudança. Até o interior da mais mísera terreola. E nós não queremos caluniar a boa gente da Azambuja, mas rien est beau que le vrai, já dizia o Boileau, que cedo aprendeu a não ter ilusões. Na manhã seguinte, a viagem prosseguirá numa camioneta de carreira onde se não anda sem receio. O piso, em manifesto mau estado, prenuncia dores ciáticas. Continuamos à espera que se faça a lei da responsabilidade ministerial para que cada ministro seja obrigado a viajar por estas estradas pelo menos uma vez em cada ano – diz alguém. Se uns concordam molemente com as cabeças, outros discordam com veemência. E então as nossas belas autoestradas que autorizam grandes velocidades e servem hoje para aumentar a sinistralidade e embaraçar ministros?

A viagem irá prosseguir com uma breve paragem no Cartaxo para fazer jus ao vinho da região, enjoados que estamos da coca-cola e do sumo de laranja de pacote servido na guesthouse.

Agora que chegou a hora de atravessarmos a charneca entre o Cartaxo e Santarém, evoquemos de novo Camões, esse que foi um romântico avant la lettre. E antes que nos disponhamos a fazer versos, declaremos desde já: Nós não somos romanescos. Românticos, Deus nos livre de o sermos. Nós, que integramos o computador digital nos nossos processos produtivos e artísticos, deixando-nos alvoroçar pela teoria quântica do cibertexto, não somos do tempo de nos deixarmos levar pela arte do sonho e da fantasia. Nós somos do tempo do pós-pós-modernismo, da desvalorização da inspiração fugaz dos momentos fortes da vida subjetiva, seduzidos que estamos pelos processos de desconstrução da narrativa. Por isso, nada de anacronismos líricos.

Diga-se, todavia, em abono da verdade, que perante a bela e vasta planície, ainda tentamos alcançar o deslumbramento, aspirar o aroma selvagem que exalam as suas plantas, alguns de nós ainda se sentiram mesmo dispostos a fazer os tais versos, mas fomos rapidamente confrontados com o convite do Observatório da Paisagem da Charneca, instando-nos a participar num webinar cujo tema era a reflexão sobre a identidade do território e a sua matriz biofísica e cultural, seguindo as recomendações da Convenção Europeia da Paisagem. Não tivemos como escapar e, sacando dos portáteis, obedientemente clicámos no link. Valeu-nos o facto de a palestra não durar mais do que os 60 minutos da praxe,  pelo que pudemos ainda chegar à ponte da Asseca a horas de avistarmos um dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém. Um vale que é, como sabem, pátria dos rouxinóis, avezinha que servirá de epíteto, perdão, modificador restritivo do nome à jovem que protagonizará a segunda parte deste esquisso.

 

A novela sentimental

O Vale de Santarém tem 10,15 km² de área e 2 920 habitantes (2011).  Sede de freguesia desde meados do século XIX, foi elevado à categoria de Vila em 21 de junho de 1995.

Embora haja quem diga que é um lugar privilegiado da natureza em que tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita, um lugar de onde as paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe, evitarei aqui a referência a esses atributos idílicos. Nesta novela, o vale de Santarém será apenas considerado tout court como o espaço aberto onde uma parte da acção ocorrerá.

Tudo começou com a observação de uma janela.

Não pretendo discutir aqui a importância simbólica desta janela, discussão que se situa para além do cânones clássicos e que tem como base a fenomenologia do espaço.  Se refiro aqui a janela, é porque efetivamente, tudo começou com a observação de uma janela.

Ao fundo do vale, avistei uma casa reconstruída sobre uma ruína. Os muros em granito sugeriam um prolongamento ao longo do terreno e, no espaço que os mediava, um pano de vidro abria-se sobre a paisagem, acentuando o contraste com a construção antiga.  

         Informaram-me depois que se tratava de uma das casas da autoria de Souto Moura. Achei curioso o esclarecimento, tanto mais que tinha lido algures que este célebre arquiteto confessara um dia publicamente a sua dificuldade em desenhar janelas. An irony of fate, indeed!  

Parei e pus-me a namorar a janela. Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?  Pensei, atiçada pela curiosidade. Julguei entrever, por detrás do vidro, um vulto debruçado a escrever, mas não consegui distinguir se se tratava de um homem a compor poemas ou de uma mulher a escrever cartas de amor. Vim a descobrir que o vulto era fruto da minha imaginação. A casa estava fechada há um par de anos.

O proprietário, um tal Carlos, deputado com assento na Assembleia da República e com negócios na banca privada, passava a maior parte do seu tempo em Lisboa ou em Bruxelas. Em tempos fora um homem garboso, era sócio do clube de ténis, jogava a sua partida de golfe e não descurava o treino no ginásio, mas com o passar dos anos deixara-se engordar e era agora a típica figura do canastrão dedicado à política. Formara-se em Direito em Coimbra e cedo se exilara na Inglaterra, não tanto para fugir à guerra colonial e às imposições do regime que, na altura, obrigava os mancebos a combaterem pela pátria, mas mais por obscuras razões de família sobre as quais a minha fonte não se quis pronunciar, mas que tinham que ver com umas vagas suspeitas que Carlos alimentava sobre um sacerdote amigo da família, o Padre Dinis. Na casa, haviam habitado D. Francisca, avó do proprietário e da sua prima Joaninha, uma jovem de grandes olhos verdes, dada à ornitologia, que dedicava os seus dias à avó extremosa e à delicada arte de criar passarinhos, mais especificamente rouxinóis.

Avó e neta recebiam todas as semanas a visita do Padre Dinis, que chegava religiosamente à sexta-feira, depois de fazer o totoloto. Entre D. Francisca e o sacerdote havia sempre grandes cochichos que indiciavam um segredo de família que, ao que tudo indica, tinha que ver com Carlos. Este, entretanto, nas suas andanças na doce Albion, conhecera Georgina, e preso aos encantos desta senhora de fino trato, ar majestoso e altivo, lânguidos olhos de gazela e boas maneiras à inglesa, ficara noivo. Ao que consta, esta não terá sido a sua única conquista, pois afirma quem o conheceu na juventude que se lhe contam no rol das enfeitiçadas pelos seus dotes de sedutor, pelo menos uma Júlia, uma Laura e uma tal de Soledad com quem terá tido um caso na Ilha Terceira. Isto para já não falar da prima Joaninha, que quanto mais prima mais se lhe arrima, como diz o povo.

Quando os ecos da Revolução do 25 de Abril chegam a Inglaterra, Carlos, antifascista assumido, apressa-se a regressar à pátria. Arrebatado pelo clima que se vivia no país durante o PREC, envolve-se nas campanhas de dinamização do MFA e o verão quente irá surpreendê-lo em Santarém, onde as forças da reação preparam uma intentona. E é aí, no frondoso bosque do Vale de Santarém que reencontra a prima Joaninha. Esta, esquecida a paixão pela ornitologia, entrega-se de alma e coração à paixão pelo primo Carlos. Ambos se deixam arrebatar pelos sentimentos e encetam uma tórrida ligação que conseguirá ofuscar o próprio Verão quente de 75. De mistura com beijos fogosos, Joaninha vai segredando ao ouvido de Carlos juras de amor entremeadas com pedidos para que visite a avó. Ele, porém, faz orelhas moucas a estes pedidos por uma qualquer razão que não consegui descortinar. Sei apenas que, apaixonado, ma non tropo, Carlos se deixa dominar pelo seu temperamento instável; trava uma luta interior que o dilacera, sofre por não poder dar-se inteiro e para sempre no amor, mas não deixa de se envaidecer por ter um coração grande de mais. Jogando pelo seguro, opta por ocultar a Joaninha que está noivo de Georgina. Mas Joaninha, embora pareça uma criança, é mulher e desconfia que Carlos tem outra.

Entretanto, as forças da reação, encabeçadas pelos membros mais ferozes da ultradireita, procuram reverter as mudanças democráticas introduzidas após o 25 de abril. As FAE - Forças de Acção Externa, lideradas por Alpoim Calvão intensificam o ataque e ocupam a região. Os grupos rivais entram em confronto e Carlos é baleado. De acordo com o testemunho de Diogo Pacheco de Amorim, antigo membro do MDLP e hoje militante proeminente do partido político Chega, Carlos só escapou com vida graças à Divina Providência. Por vontade de Amorim, aquele guedelhudo com ar emproado que não passava de um esquerdelho metido a besta, teria ficado logo ali, estendido na mata de Santarém, no meio dos fetos.


Tudo o que acabei de afirmar neste último parágrafo são conjeturas. De fonte limpa,
 sei apenas que Carlos se tornou proprietário daquela bela casa restaurada que
 encontrei no fundo vale. Disse-me a minha fonte que se tornou íntimo do 
Comendador Berardo e que em breve ele próprio receberá das mãos do Presidente 
da República a condecoração de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Aguardemos
 o próximo 10 de junho.










             
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