terça-feira, 30 de setembro de 2014

A música n'"Os Maias"




E Ega , com as mãos enterradas nos vastos bolsos da peliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:
_ O veludo dá seriedade... E o verde-escuro é a cor suprema, é a cor estética...Tem a sua expressão própria, estremece e faz pensar...Gosto deste divã. Móvel de amor.
Foi entrando para a sala dos doentes, devagar, de luneta no olho, estudando os ornatos. Tu és o grandioso Salomão, Carlos!  O papel é bonito... E o cretonezinho agrada-me.
Apalpou-o também. Uma begónia manchada da sua ferrugem de prata num vaso de Ruão, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de música aberto, as «Canções» de Gounot, teve uma surpresa enternecida:
_ Homem, é curioso... Cá me aparece! A «Barcarola»! É deliciosa, hem?...


Dîtes, la jeune belle,
Où voulez-vous aller?
La voile... 

_ Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!



Ega não continua... porque está rouco, diz ele, mas talvez houvesse uma razão inconfessada, quase inconsciente, para não o fazer. Eça, não certamente por acaso, escolhe uma  canção que  prenuncia o carácter passageiro, o modo ligeiro e inconsequente  como, no fundo, Ega encara  a  relação amorosa com Mme Cohen.
À pergunta feita, que Ega cantarola, "la jeune belle" acaba por responder assim:
Menez-moi dit la belle
À la rive fidèle
Où l'on aime toujours;  
Mas, hélas! esse lugar de amor fiel e eterno não existe no país do amor (nem no coração de Ega):
Cette rive ma chère,
On ne la connaît guère
Au pays des amours!



A música n' "Os Maias"





_ Olá! Quem toca por cá? - exclamou o Vilaça, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rabeca.
_ É o Sr. Brown, o inglês, o preceptor do menino...Muito habilidoso, é um regalo ouvi-lo; toca às vezes´`a noite na sala, o senhor juiz de direito acompanha-o na concertina... (...)
 O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor a rabeca atacara o "Carnaval de Veneza".



A escolha de o "Carnaval de Veneza" de Paganini não é, obviamente casual. Eça faz Brown tocar um  tema  popular e conhecido em toda a Europa, um tema alegre e infantil, adequado, portanto, ao perfil dum preceptor de crianças, um tema cuja letra acentua o carácter lúdico da peça ligando-se simultaneamente   às veste carnavalescas de Veneza.
A letra desta peça ainda hoje é cantada pelas crianças europeias:    

O meu chapéu tem três bicos
Tem três bicos o meu chapéu
Se não tivesse três bicos
O chapéu não era meu.

La Chouette Aveugle

La Chouette Aveugle_ um romance  do autor persa Sadegh Hedayat





  1. بوف کور

E porque 

Verba volant, scripta manent 

foram estes os textos produzidos a propósito de La Chouette Aveugle



A personagem feminina em “A coruja cega” de Sadegh Hedayat

Por Conceição Rocha 



A personagem feminina em “A coruja cega” de Sadegh Hedayat


Tal como é extremamente difícil fazer uma síntese compreensiva da obra, assim ocorre também com a personagem feminina, sem nome, multifacetada e desencadeadora dos mais variados e alucinados actos  por parte do protagonista – narrador.
Logo no início ela aparece como uma espécie de visão ideal. Paira junto de uma fonte, oferece uma flor a um homem velho que entretanto surge. É etérea, mas inicialmente viva ou concebida como tal. Esta mulher misteriosa vem uma tarde a casa do narrador, que se maravilha com os seus magníficos cabelos e vestes negros. No entanto, pouco a pouco descobre que ela está morta. Enterra-a para que ninguém possa mais olhá-la e esculpe o seu rosto num vaso de cerâmica, uma cerâmica iraniana conhecida pela sua beleza.

Este início poético, lírico, deixa-nos logo adivinhar a complexidade do texto e das personagens, sobretudo aquela que me cabe descrever: uma mulher apenas perscrutada, numa atmosfera sonâmbula, muitas vezes angustiante, descrita em diferentes dimensões do tempo.  Em nenhum momento podemos distinguir real e irreal, passado e presente.


Esta mulher-cadáver, objecto de intenso desejo e amor, que se apresenta aleatoriamente em duas dimensões do tempo, é uma sombra sonhada, uma galdéria encantadora de homens, artista em drogas e filtros (referência à mandrágora, por exemplo), mas ao mesmo tempo angélica e pura no seu enorme erotismo. Fonte de prazer e de sofrimento, de amor e de ódio pelo narrador, que a ama e a odeia sucessivamente. Identificada com a natureza, ela é associada às fontes, à água corrente e às flores portadoras de poderes erógenos (a dedaleira – creio que é a tradução de capoucine).

Ao longo do romance, mulher e narrador são levados por caminhos ideais, cheios de referências que recordam a poesia oriental, atravessam campos de violetas, regatos de água perfumada ladeados por casas de janelas sem vidros. O narrador descreve páginas e páginas de atmosferas tanto idílicas quanto terríficas, que a mulher percorre quase sempre passivamente, levada sem vontade própria, movida pelo narrador e por um outro homem ou talvez por um destino que passo a passo a aproxima do fim e esse fim é a morte, obsessão do autor desde o início da obra.

Paradoxalmente, uma mulher idealizada nas suas grandes facetas de virgem e eros, uma mulher que, quase desde o início, é concebida como morta talvez para que o narrador a possa manipular enquanto ideia, acaba por  ensanguentar completamente e pesar terrivelmente sobre o peito daquele que a concebeu, amou, odiou mas provavelmente não conseguiu aprisionar.

Mulher é assim: até incorpórea ela é uma força. Para que conste.




O tempo e espaço em La Chouette Aveugle

Por António Nabais

“Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia, numa tarde quente de 1930.”
Ernestina, Rentes de Carvalho

               Iraj Bashiri, estudioso da obra de Hedayat, confessou a alunos a dificuldade do seu primeiro contacto com a principal obra do autor.
              
“Li, mas não consegui encontrar um sentido. Fiquei confuso e quando pensava sobre a obra e não conseguia percebê-la, fiquei frustrado. Então, pensei que me poderia ter escapado alguma coisa importante na história, o que me levou a lê-la pela segunda vez: o efeito foi pior. Desde então, sempre que o li, senti que estava a ser engolido por uma espécie de turbilhão semântico recorrente, lendo a mesma coisa uma e outra vez. Finalmente, no entanto, acabei por perceber que não estava a ler a mesma coisa repetidamente. Gradualmente, as coisas que pareciam iguais à superfície começaram a ter significados diferentes dependendo das circunstâncias. Contudo, não tinha uma pista que me permitisse perceber que circunstâncias eram essas.”










               Estamos, portanto, na presença de uma obra complexa cuja compreensão implica o conhecimento do contexto histórico-cultural em que foi produzida. Sem esse conhecimento que inclui, entre muitos outros elementos, a simbologia de uma determinada civilização ou as relações com outros textos, torna-se ainda mais difícil a interpretação do texto.
               Ora, a análise de categorias narrativas como o tempo e o espaço não fica imune ao (des)conhecimento desse mesmo contexto. Avancemos, ainda assim, sem medo das insuficiências de uma primeira leitura pouco informada.
               O narrador olha para o mundo sem grandes preocupações de objectividade, vivendo, sobretudo encerrado no seu interior (o facto de olhar para fora a partir de uma lucarna pode significar isso mesmo). O exterior, de qualquer modo, parece não lhe interessar, o que afecta, necessariamente, a percepção do espaço e do tempo.
               No início, parece haver, ainda, uma tentativa de precisão, como se pode verificar na p. 26. Pouco mais à frente, na p. 84, o narrador reflecte sobre o tempo, ou melhor, sobre a percepção e, portanto, sobre o significado do tempo. O individualismo ou o egocentrismo que caracteriza o narrador leva-o a aproveitar esta reflexão para se colocar a si mesmo num patamar diferente do dos homens comuns. O narrador coloca-se fora do tempo, essa categoria que diz respeito apenas aos outros.
               Ainda nesta reflexão, o narrador, para ilustrar o modo como vê o tempo, recorre à descrição de um espaço imaginado, com características infernais, sendo que o Inferno, mais do que um espaço, é, afinal, a Eternidade e o Sofrimento, ou seja, um tempo e o modo como se vive esse tempo.
               Mais à frente, na p. 107, o narrador mostra outra percepção do tempo: tudo se repete e não há nada de novo. Parece ouvir-se aqui um eco do Eclesiastes: “Não há nada de novo debaixo do sol.” O tempo é, agora, o do eterno retorno.
               O mundo exterior em si mesmo só existe para narrador como algo em que projecta o seu interior. Na p. 89, o homem que observa à distância e que descreve pormenorizadamente corresponde a alguém que aparece na maior parte dos seus pesadelos.
               Com o espaço físico passa-se o mesmo. Se o mundo, no fundo, só existe a partir do interior do narrador ou no interior do narrador, não interessam tanto as suas características objectivas, mas o seu significado. Na p. 116, a descrição é mais impressionista do que realista, mais egocêntrica do que objectiva. Note-se, a propósito, que o narrador mal se apercebe de que já transpôs a porta da cidade. Pouco depois, para se referir a um odor, conta-nos que o faz regressar à infância. O espaço faz, então, regressar outro tempo, como se pode confirmar na continuação do parágrafo.
               O narrador, com alguma frequência, discorre sobre a literatura e, até, sobre categorias narrativas. É o que acontece, na p. 143, a propósito do espaço e do tempo, conceitos inoperantes face ao estado em que o narrador se encontra.
               Voltando ao início, falta muita informação sobre a obra e as suas circunstâncias para que possa, neste momento, realizar uma análise minimamente satisfatória. De qualquer modo, penso que é possível concluir que o espaço e o tempo têm, nesta obra, mais significado do que existência, o que faz sentido numa obra que é menos narrativa e mais filosófica ou, provavelmente, mais simbólica.





               A Coruja Cega

               Por Laleh Estequeki

A Coruja Cega é uma história que assenta em oposições binárias: temporal/intemporal narratologia moderna/ narratologia pós-moderna, mitologia teosófica /representação histórica, monólogo interior/fluxo de consciência.
A Coruja Cega é a história de um “sem-nome”, um  pintor de escritórios  que é assaltado por visões horríveis, pesadelos febris e com uma obsessão existencialista pela morte quando diz: '' Nós somos os filhos de morte e morte livrai-nos das tentadoras atrações, fraudulentas de vida..... Ao longo de nossas vidas, o dedo da morte aponta para nós ".
A história tem duas partes. Na primeira encontramos uma  representação onírica e atemporal dos eventos em que o narrador é constantemente perseguido pelo fantasma de uma mulher celestial, a quem mais tarde corta em peçados, e por um velho e sinistro  corcunda.
Na segunda parte, as personagens que apareceram na primeira secção surgem, agora,  em imagens distorcidas  e nas suas viagens alucinatórias, o narrador encontra-se em lugares desconhecidos onde encontra  pessoas que lhe parecem estranhamente familiares. Na última secção que inclui o climax  da história,  o narrador metamorfoseia-se no velho corcunda.
E A história termina onde começou: como se a  sombra da coruja se estivesse confessando no início da história.

Em “A Coruja Cega, os leitores precisam colocar as diferentes peças de um puzzle no seu respectivo lugar para perceber o profundo sentido do texto como ele está imperceptivelmente divido em dois mundos: o  real e o etéreo.
 Assim, é ao leitor que cabe,  no seu  processo de leitura  ordenar cenas, acções, discursos de um universo realmente complexo e em alguns pontos incompreensível, para  em conjunto  modelar um significado para si mesmo.

 A "chave" para a compreensão a história "A Coruja Cega" de Sadegh Hedayat é "o nacionalismo, o amor da antiga glória e a tragédia de perdê-la após a invasão árabe".
De facto, para melhor entender a história, é necessário conhecer as duas eras da história do Irão: o Irão antes do Islão e o Irão depois Islão. Assim, também  a narrativa tem duas partes e aí encontramos elementos, como a antiga cidade de Rey, o jarro (Raq), a mulher (prostituta ou uma mulher celestial) ou o velho que correspondem a uma ou a outra dessas eras.