terça-feira, 18 de abril de 2017

Judas de Amos OZ



Gershom Wald, o corifeu



por Alexandra Azevedo





Gershom Wald, é o corifeu desta história.
De facto, tal como os coreutas das tragédias gregas clássicas, o rosto de Wald é uma máscara trágica na sua fealdade – “…aquela cara informe, como se o escultor tivesse desistido do trabalho a meio, com o queixo afiado a apontar para a frente e o bigode branco desgrenhado” (173);  “a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo, um olho franzido e o outro bem aberto, como quem aguarda o levantar da cortina e o início da representação, na qual não deposita a menor esperança, e a quem nada mais resta senão esperar pacientemente pelo mal que as várias personagens se preparam para fazer umas às outras: como se vão precipitar mutuamente até ao fundo da desventura, se é que ela tem fundo, e de que forma cada personagem se prepara para atrair a si a desgraça que lhe é exclusivamente destinada” (30)
É justamente esta função de espectador, afastado da acção principal  e encarregado de, através dos seus comentários, analisar as personagens e moderar-lhes os ímpetos, função que o coro desempenhava na tragédia clássica,  aquela que o autor reserva a Wald.
Assim, as suas análises penetrantes e argutas desvendam a essência de cada uma das personagens, nomeadamente, Samuel e Atalia. Samuel, um romântico: Mas você é um rapaz tão romântico” (98); um homem puro: “ Por que se preocupa comigo?, perguntou Samuel. Talvez porque haja em você algo que nos comove: qualquer coisa do homem das cavernas com uma alma exposta como um relógio de pulso a que tiraram a tampa de vidro” (97); “Às vezes você parece uma tartaruga que perdeu a carapaça pelo caminho” (174); um sonhador: “Eu estou satisfeito consigo mesmo que se atrase. Os sonhadores estão sempre atrasados” (133)
E Atalia, a mulher fatal marcada pela tragédia: “Ela possui uma espécie de frieza quente, uma distância que vos atrai a ela como as traças para a luz do candeeiro. “ (175); ou a mulher lúcida que odeia a febre de guerra de todos os homens:  “ E Atalia? Estava próxima das ideias do pai? Ela é ainda mais extremista do que ele. Disse-me uma vez que a existência dos judeus em Israel se fundamenta na injustiça.”(199)
Por outro lado, a função moderadora dos ímpetos das personagens é desempenhada por Wald, por exemplo, nos conselhos que dá a Samuel: “Ouça-me, é para seu bem. Se puder, não se apaixone por Atalia. Não vale a pena. Mas se calhar já é tarde” (97 .
Há ainda toda a reflexão que a personagem faz acerca da política e da guerra, uma reflexão amarga e distanciada de alguém que já em nada participa, mero espectador acantonado a uma sala/biblioteca em que, em mais uma flagrante semelhança com o coro trágico, deambula numa estranha coreografia: “…o homem apoiou as duas mãos sobre a escrivaninha e colocando todo o peso do corpo sobre os músculos dos braços começou a avançar devagar, com um esforço enorme, agarrado à mesa: parecia um polvo gigante que foi atirado para terra e se arrasta penosamente ao longo da costa para o mar. Assim se arrastou ele com a força dos braços, da sua cadeira, ao longo da escrivaninha, até uma espreguiçadeira em vime, forrada, que o esperava junto da secretária, debaixo da janela da biblioteca. Aqui, fora do círculo de luz do candeeiro de mesa, começou a executar uma série complicada de inclinações, de contorções, procura de pontos de apoio, até conseguir estender o corpanzil dentro daquela espécie de berço.” (31)
E, assimo  movimento lento e pesado do corpanzil de Wald transforma-se, ele  próprio, no corpo  colectivo do coro que evolui no palco trágico da Pólis


Alexandra Azevedo

4 de Abril de 2017



Judas de Amos OZ

O espaço que os espaços, interior e exterior, ocupam no romance

 por Manuela Pereira


A casa (…) mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser (…) expulso, posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo.”
A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem.”
                                                                                                  Gaston Bachelard, A Poética do Espaço (26/27)   


Nesta história de erro, desejo e amor não correspondido, os espaços, interior e exterior, ocupam todo o espaço do romance.
Judas, todo ele, é um espaço de reflexão e de debate de ideias sobre Israel; reflexão sobre o seu passado e presente, e perspectiva do seu futuro.
Nele todas as descrições apelam aos nossos sentidos e emoções.
O espaço físico-temporal, onde se movimentam as suas personagens – Jerusalém dos anos 50-60 – é também o espaço simbólico e psicológico dos seus habitantes. As suas derivas, interiores e exteriores, reflectem o espaço social e politico que caracteriza a sociedade israelita e descrevem um cenário de guerra.
O espaço físico exterior é o espaço de investigação de Atalia. É pelas ruas escuras e desertas ou junto de fronteiras policiadas que Samuel a acompanha, deixando-se guiar, ultrapassando o espaço restrito do restaurante da Jerusalém pobre, e da biblioteca, onde o passado permanece encerrado e proibido.
Ao mesmo tempo vai-se tornando adulto, enquanto passa pelo cinema que lhe permite sonhar ou pelos montes desertos da solidão introspectiva. Samuel nunca chegou a entrar nos salões onde a elite erudita e abastada de Jerusalém se reúne para dançar. É nesse passo, não dado, que o seu caminho se define.
Tudo se passa no Inverno, espaço de maturação que prepara e nos conduz à Primavera.
O que separa o espaço público do espaço privado não é o portão do jardim. Esse portão tombado, simbolicamente indiferente e descuidado, não é uma verdadeira fronteira, qualquer um o pode transpor sem dificuldade.
A transição tem que ser feita pelo degrau à entrada da porta. Ele é o contraponto entre o aberto e o fechado, o exterior e o interior. Esse degrau hostil, limite do espaço íntimo, inscreve um pequeno desnivelamento da vida anterior e da futura.
É no espaço interior da casa – a casa de Sheatliel Abravnel1 (sendo a casa que simbolicamente nos representa a nós mesmos) – que convivem o passado e o presente e onde o futuro ainda aprisionado se alimenta.
A cozinha – espaço do presente – é o espaço de encontro dentro da casa. Aí Samuel encontra os recursos para enfrentar a vida: é aí que devora sanduiches e bebe leite, alimenta o seu corpo; também aí se encontra com Atalia e se prepara para alcançar com êxito o futuro. Futuro incerto que persegue de forma inquieta, correndo com a cabeça inclinada para a frente. Um futuro socialista, onde haja paz e justiça para todos, e onde árabes e judeus possam viver lado a lado como iguais.
Ao mesmo tempo procura concluir a sua tese e responder à pergunta são os traidores sempre maus?
Tese que resgata a sua culpa em relação ao abandono dos pais e, simultaneamente, resgata a de Abravnel, que viveu o fim da sua vida como um judas e morreu como um profeta sem honra, na sua própria terra – sendo Judas o símbolo da traição ela própria e por sua vez o símbolo de todos os judeus.
O espaço íntimo de Samuel Ash – espaço do futuro – é a mansarda, onde se encontra aprisionado com os seus sonhos de porvir. É o seu refúgio, a sua caverna, onde os posters são como gravuras rupestres em torno duma solidão concentrada, que irradia um universo que medita.
O acesso à mansarda é feito pela escada. A escada de acesso à mansarda é sempre de subida, é o símbolo da ascensão para a mais tranquila solidão.




A biblioteca – espaço do passado – é o espaço de comunicação com Gershom Wald, porque o importante é o que comunicamos aos outros. Aí se debatem ideias e se percorrem vidas anteriores. É um espaço de intimidade e de interiorização. É aí que Wald, velho e inválido, se confessa e esconde o remorso de decisões erradas, que acredita lhe fizeram perder o filho. É aí que passa a palavra aos jovens e lhes transmite a experiência vivida, esperando que se tornem capazes de enfrentar as adversidades do mundo lá fora.
Os quartos, espaço de relações íntimas, são espaços protegidos onde os desgostos de Atalia e Wald se inscrevem, recolhidos e encerrados. Só numa situação de doença e incapacidade é permitido a Samuel entrar num desses templos de dor, que tanto despertam a sua curiosidade.
Para chegar aos quartos é preciso percorrer um corredor. Envolto em sombras impalpáveis que ao mesmo tempo nos escondem e nos protegem, o corredor é um espaço de transição. É a oportunidade de mudança e de evolução.
Atalia, que perdeu o pai e o marido e também os filhos que nunca teve, mantém o seu espaço fechado. Samuel nunca entrou no seu quarto. E é ela que o expulsa da casa e o atira para fora do ninho, agora que ele já aprendeu a voar.

1 Membro do Comité Executivo Sionista que se opôs a Bem-Gurion sobre a fundação do estado de Israel em 1948



Clube de Leitura, 4 de Aril 2017                              Manuela Pereira

Judas de Amos OZ

Israel, décadas de 50, 60 e 70

por Conceição Rocha


O romance “Judas”decorre em 1959. A década de 50 é determinante para a vida política de Israel, nomeadamente no que diz respeito à delimitação (!) das suas fronteiras. No entanto, para entender as políticas judaicas na Palestina é necessário conhecer alguma da história anterior, se possível recuar até aos tempos bíblicos e ao Livro, repositório das representações mentais do povo hebraico e ainda hoje fundamento de muitas das suas formas de pensar e viver.   

Uma pequeníssima abordagem histórica:

·        Génesis: Jacob, neto de Abraão, tem 12 filhos e, entretanto, inspirado por Deus, muda o seu nome para Israel (etimologicamente, “aquele que governa inspirado por Deus”). Esses 12 filhos deram origem a 12 tribos que viviam da pastorícia e da agricultura. São judeus, pois vão buscar essa designação a Judá, o mais notável dos 12 filhos de Jacob. Conheciam e usavam a escrita, o mais antigo testemunho escrito data do 3º milénio A. C. Por volta do 1º milénio AC aparece o primeiro documento em que figura o nome Israel.

·        No fim do século 17 AC uma grande fome leva os judeus a emigrarem para o Egipto, onde vêm a ocupar os lugares cultural, artística e tecnicamente mais qualificados durante 400 anos. No fim destes, uma tentativa de tomada de poder mal sucedida faz com que sejam escravizados pelo faraó.
·        Dirigidos por Moisés, saem do Egipto e 40 anos depois instalam-se na península do Sinai organizando-se em reino e conservando consigo as tábuas da Lei.
·        Por volta do ano 1000 Salomão conquista Jerusalém e constrói-se o 1º templo, onde é guardada a Arca da Aliança, que contém o decálogo e o candelabro portador do fogo sagrado. Mais tarde Nabucodonosor destrói o templo, leva os tesouros para  Babilónia e escraviza os judeus.
·        Em 535, Ciro, rei da Babilónia, autoriza o retorno dos judeus à Palestina. Constrói-se o 2º templo, destruído pelos romanos em 70 DC.
·        O 3º templo está ainda em fase de profecia.


Século XIX:

·        O movimento sionista, liderado pelo jornalista húngaro Theodor Herzl  surge na sequência dos grandes progroms na Europa de leste; postula o regresso (em hebraico, aliá) dos judeus à Terra Santa onde viviam já cerca de 25.000 procedentes de várias diásporas. Começa logo uma grande aliá a partir do Leste (Asquenaze) e, em 1880, a população judaica em Jerusalém era já superior à otomana.
·        Ao mesmo tempo, Eliezer bem Yehuda (1858 - 1922) reforma a língua hebraica falada e escrita, simplificando o hebraico bíblico e introduzindo os novos vocábulos. Muito ao arrepio das comunidades ortodoxas asquenazes, a língua hebraica será oficializada em vez do yiddish e será adoptada a pronúncia sefardita, com os sons espanhóis que a caracterizam.  
·        A ideologia sionista é profundamente influenciada pelo socialismo utópico (Saint Simon era judeu). Chegados os sionistas à Palestina fundaram o partido trabalhista e a maior parte dos kibutz que ainda hoje existem, com um sistema de partilha e distribuição de trabalho no modelo dos falanstérios idealizados por Fourier.
·        Após o fim da 1ª guerra mundial cai o império otomano e a Palestina passa a ser administrada pelos ingleses, que se comprometem, com a Declaração Balfour, a respeitar os direitos adquiridos no território por judeus e árabes residentes. Não fizeram nada do que prometeram.
·        A partir de 1920 começa o conflito explícito entre ingleses, judeus e árabes: atentados, guerrilha, emboscadas, contraguerrilha, foram cometidos sistematicamente pelas 3 partes.
·        Quando termina a 2ª guerra mundial, a Inglaterra entrega a administração da Palestina à ONU. Esta, divide o território em 2 partes, entregues respectivamente a judeus e a árabes. A Liga Árabe não aceita essa resolução.

·        14 de Maio de 1947: David ben Gurion assina a Declaração de independência do Estado de Israel. Israel era até aí um “AM” – povo, tem um Heretz – território e passa a ter também um Medinat – Estado.

·        1949: 1ªs eleições e ben Gurion é nomeado 1º ministro. Mandato até 1953. É um sionista fervorosamente socialista, dirigente trabalhista, laico. Autoritário e com dificuldade em lidar com as várias correntes do judaísmo, perde as eleições em 53, voltando a ganhá-las em 55 para um mandato que termina em 63.

·        Sucede-lhe Levi Eshkol, também socialista, que inicia relações diplomáticas com a Alemanha, negoceia as indemnizações para as vítimas do holocausto e obtém da URSS autorização para os judeus soviéticos emigrarem para Israel. Importante para a negociação foi o facto de um prémio Nobel da Física e um campeão do mundo de xadrez da época serem judeus e Levi Eshkol acordar que tais glórias não seriam contabilizadas por Israel, mas pela URSS, onde nasceram os ditos emigrantes notáveis.

·        1967, com Levi Eshkol: guerra dos 6 dias, vitória de Israel sobre a Síria e o Egipto liderada por Moshe Dayan. Conquista do Sinai, Gaza, Cisjordâsnia e montes Golan. Jerusalém é unificada e os judeus passam a ter acesso ao Muro das Lamentações.    

·        1969 morre Levi Eshkol e sucede-lhe Golda Meir, também socialista. Inicia-se o grande período de realização de projectos agrícolas e de desdesertificação, dessalinização e projecção de Israel como potência científica e tecnológica.

·        1972: atentado de Munique.

·        1977: 1º ministro passa a ser Yitzak Rabin, também socialista (assassinado em 1995).

·        As eleições seguintes são ganhas pela direita (1º ministro Menahen Begin) e, com curtos períodos de intervalo, assim continua.

A personalidade de Shaltiel Abravanel só é entendível no contexto do movimento sionista. Os fundadores do Movimento eram socialistas, um pequeno número comunista teve grande importância no início do século XX, bem como militantes do movimento anarquista. Dos que emigraram para Israel, tiveram maior influência os socialistas, quer porque logo se organizaram em partido, quer porque tiveram a capacidade prática de realizar tudo o que foi sendo necessário para viver no território e governá-lo. Desde logo predominou a ideia de independência, de formação de um estado judaico no território para o qual se invocavam as referências bíblicas. 
A utopia de Shaltiel Abravanel era outra, fundamentada ideologicamente no anarquismo: o Estado é um estorvo resultante da afirmação da burguesia como classe e do capitalismo como doutrina, especialmente quando há que fazer coexistir dois ou mais povos de culturas, religiões, línguas e costumes diferentes, que se devem respeitar para viverem juntos. Ele próprio deu o exemplo, cultivando amizade com árabes e vivendo no seu meio. Discordou violenta e publicamente de ben Gurion e dos dirigentes do partido socialista, foi chamado profeta da desgraça quando futurou enormes e intermináveis conflitos entre judeus e árabes, foi expulso do movimento sionista nos anos 50 e ostracizado por toda a gente – judeus e árabes. Antes de morrer (na cozinha, a tomar o café da manhã) destruiu todos os seus escritos e o seu nome, sem o suporte dos textos e com a má vontade dos contemporâneos, foi sendo esquecido.

O paralelismo de Shaltiel Abravanel com Judas está na ambiguidade deste relativamente à relação com Cristo (ambiguidade criada pela tradição histórica), semelhante à ambiguidade daquele com o sionismo (ambiguidade criada pelo stablishment judaico que não aceita a não compartimentação do Estado, mesmo que seja necessário sacrificar os princípios utópicos). Não é por acaso que Wald chama sonhador a Abravanel. 

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Judas de Amos Oz



Verba volant, scripta manent



Temas a desenvolver:

  • Atalia e os homens
  • Israel, anos 50 e 60 - contexto histórico
  • Shaaltiel Abranavel, o sonhador
  • Jesus e Judas - história de uma paixão
  • Samuel Asch - qual o caminho?
  • Árabes e judeus - inimigos inseparáveis
  • O espaço que os espaços,  interiores e exteriores, ocupam no romance
  • Gershom  Wald - o coro da tragédia grega 

sexta-feira, 17 de março de 2017

O Fim da Aventura




Henry Graham Green (Berkhamster 1904 – Vevey, 1991)

por Conceição Rocha

·       Licenciado em História por Oxford, foi editor do Times, jornalista, repórter de viagens, crítico de cinema, espião do MI6 durante a 2ª guerra (profissão inspiradora de vários romances de espionagem), romancista.
·       De família tradicional anglicana, converte-se com 25 anos ao catolicismo, influenciado pela sua 1ª paixão – Vivien Cayrell-Brown, católica, com quem vem a casar em 1927. O casamento dura formalmente até 1948.

              Constam 5 mulheres na sua vida amorosa: 
Vivien Cayrell-Brown
        Yvone Cloetta

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Anita Byork




Catherine Walston


Dorothy Glover


                                                                                      



·       Além das 5 mulheres da sua vida, das quais Yvonne Cloetta será talvez a mais significativa, pois dela resulta a personagem Sarah, constam nas agendas de Grahm Green os nomes e endereços de 47 prostitutas.

·       Catherine era católica e casada, Yvonne também casada, não consta que católica, mas com algumas inquietações metafísicas que gostava de discutir. Viajou por Itália e viveu com GG em Vevey durante algum tempo. Foi no hotel em que ficou com Yvonne, em Capri, 1948,que  iniciou o “Fim da aventura”.

·       O tema religioso em GG é complexo até pelo modo como em entrevistas e apontamentos autobiográficos é abordado. No “Fim da aventura”, a religião católica surge para Maurice Bendrix/Grahm Green com um peso de incomodidade, aversão, concorrência desleal, até algum ódio pelo espaço e tempo que ocupa na vida de Sarah. Os temas recorrentes dos seus romances – a perseguição, a obsessão, o desejo de estar onde não se está, de se ter o que não se tem para, uma vez obtido passar a tédio – encontram-se agora numa personagem sem materialidade física, mas efectivamente presente: Deus. David Lodge escreve que “o Fim da Aventura” é um romance policial em que o culpado é divino”.

·       O desaparecimento de Sara Miles da vida de Maurice pode ter ocorrido por razões várias, todas possíveis, mas não prováveis: o desejo de liberdade perante um amante possessivo e desconfiado, o conforto da vida doméstica (a propósito, GG diz no seu diário que uma das coisas que o irritava em Yvonne Cloette era o facto de ela, após uma tarde de paixão clandestina, ir calmamente fazer o jantar para o marido, passando pela mercearia e planeando a ementa sem a menor contrariedade, provando que, de facto, as duas vidas afectivas cabiam sem conflito, pacificamente, no seu quotidiano); mas, a razão mais sofrida, mais plausível é a necessidade dos espaços pacificadores que a igreja oferece, mesmo com imagens horrendas e o contacto com alguém que tem no centro da sua vida o debate religioso. No fundo, a religião católica nos seus aspectos mais atávicos vai ajudando Sarah a lidar com as suas emoções, a sua instabilidade afectiva, as suas fugas, a sua culpa. O interlocutor-pregador da não razão religiosa, que ocasionalmente encontra e a quem logo aprisiona, vai introduzir na narrativa o contraditório, o debate sobre a verdade, a necessidade, a culpa, as problemáticas que acompanham o romance desde o início e subjazem aos comportamentos do par amoroso (e que estão a milhas das preocupações do marido Henry)
.
·       Maurice Bendrix/Grahm Green tem um enorme talento para se descrever enquanto sujeito de paixão, ciúme, desconfiança, animosidade elegante para com o “outro”, Henry Miles; é um interessante interlocutor do Parkis e dos seus inestimáveis serviços, mas não é convincente quando procura comunicar-nos que lucrou com a ausência de Sarah por 2 anos, evitando o tédio, o fim de toda a relação pela secura da fonte emocional. O regresso dramático e intenso a uma  realidade trágica prova que a obsessão, a paixão, são presentes. Aí, claramente, a religião ou os seus atavismos, ganha um papel de protagonista: Deus, como o inimigo que exige o sacrifício do amor torna-se uma arma de arremesso entre os que amaram Sarah. Mas fazem-no por Sarah e não pela convicção religiosa; pelo dever de serem eventualmente coerentes com a presença de Deus na vida dela e na sua morte.    
·       Concluindo, a religião para Grahm Green no “Fim da aventura” é um pouco como o brexit para os britânicos relativamente à Europa comunitária: está e não está, quando está, está a mais, quando não está, descobre-se que não pode deixar de estar, mesmo não estando. Valha-me Deus.      





          O Fim da aventura – Um memorial de ódio?


por Margarida Mouta




Nesta obra, todas as personagens são desvendadas pelo olhar alternadamente cínico ou céptico, nostálgico ou apaixonado do sujeito/narrador. Também o ódio, porque indissociavelmente ligado ao tom da escrita nos é sempre apresentado sob a perspectiva de Maurice Bendrix, esse amante inquieto, obcecado e obsessivo que eternamente desconfia da autenticidade do amor humano. “Quando principiei a escrever este livro, declarei que era uma história de ódio, mas não estou convencido. Talvez em mim o ódio seja tão deficiente como o amor.” Esta atitude, assumida na página 83, permite confirmar o que já sabíamos desde o início, que esta é uma escrita percorrida pelo ódio, mesmo se em alguns momentos, como aqui, o sentimento surja encarado como uma deficiência ou, como uma fatalidade, como já antes o admitira, ao lamentar “esse azedume” que lhe escorre da caneta: “Que triste coisa sem vida é este azedume! Se eu pudesse escreveria com amormas se eu soubesse escrever com amor, seria outro homem: e nunca o teria perdido” (p. 25). Será esse irremediável apego ao seu ódio que, mesmo se acompanhado pela inteligência, limitará Maurice à superfície daquilo que constitui o objeto da sua atenção. Será esse sentimento que o levará a ocultar a amargura e o sofrimento numa máscara de cepticismo.  
Sarah Miles, que conhecera durante o Blitz, em Londres, terminara subitamente e sem aviso a sua ligação amorosa com ele. Dois anos depois, louco de ciúme, Maurice contrata um detetive privado para a seguir, procurando descobrir se foi apenas um dos seus amantes e se Sarah estaria novamente a enganar o marido, Henry. Nesse momento, Sarah já se lhe escapara, deixando de ser sua. E é porque Sarah já não é sua nem nunca o voltará a ser, que Maurice, consumido pelo ódio, precisará de escrever a sua história, desabafar, redimir-se (ou redimi-la) de tudo o que não fez nem pôde fazer.

 O questionamento de Deus, da religião, da crença numa entidade superior que atravessa todo o romance e se torna inextricável da resolução do enigma formulado desde o início, está também ele ligado ao sentimento de ódio que consome Maurice, opondo-se à supremacia do amor que o cristianismo/catolicismo preconiza. A dicotomia amor-ódio, os extremos, a impossibilidade de amar sem também se odiar, a descrença são sempre equacionados em função de si próprio, do outro e de Deus. Porque para Maurice, o conflito não parece estar tanto em crer ou não crer na existência de Deus, mas em poder ou não perdoar a esse rival tirano e injusto a tremenda exigência do sacrifício que impõe a Sarah e que o atinge a ele. Maurice reage, combatendo até ao fim. Sarah, atraída por algo que a excede, entrega-se aos desígnios de uma crença redentora, mesmo se, num repente de desespero, admite desejá-lo como desejava antes, sentindo o anseio do “vulgar e corrupto amor humano” caminhando lado a lado com o desejo de desejar a dor que Deus lhe oferece. “Amei alguma vez Maurice tanto, antes de amar-te? Ou foi a Ti quem de facto amei todo esse tempo? “ – interroga-se ela no seu diário. Sarah reconhece a presença de Deus na relação amorosa, colhendo aquilo que ela percepciona como uma lição: “Tu estavas presente ensinando-nos a dissipar, como ensinaste ao homem rico, para que um dia nada restasse senão este amor por Ti.” Maurice permanece amarrado às suas convicções, enredado na sua “rede inextricável de acontecimentos”, como refere Jorge de Sena. 
Quanto a mim, o que me ficou das três vezes que li o livro, foi a sensação de um amor poderoso que ressalta apesar do combate sem tréguas que opõe Maurice a Deus, a Sarah, a si mesmo e que acaba por se sobrepor a todo o ciúme e a todo o ódio que se entretecem na estrutura de superfície do romance.
“Ao principiar a escrever a nossa história, pensava eu que seria um catálogo de ódios; não sei como, porém, o ódio perdeu-se pelo caminho…”. Como se a Graça, que Maurice recusa, tivesse desabado sobre as páginas do seu relato. Como se o fim da aventura fosse apenas o princípio ou tão-só a aceitação da única oração que parece contentar a tristeza do inverno: “Ó meu Deus, já fizeste bastante, já me roubaste bastante, sinto-me por demais cansado e velho para aprender a amar, deixa-me em paz para sempre








O Fim da Aventura




Brevíssima Mixórdia Teológica

por Maria Amélia Correia


    “E ele (Richard Smithe) dizia: -Minha amiga não meta nisto a ideia de Deus. Trata-se apenas do seu amante e do seu marido. Não misture uma coisa concreta com fantasmas.”



E não conseguiria G. Greene escrever um romance apenas com estes três personagens? Claro que sim. Centenas dos seus pares o fizeram, alguns com muito êxito, outros nem tanto. Em todos, ou melhor em quase todos, a culpabilidade está presente, mas neste, ela é tratada duma forma exacerbada, quase histérica! (passo a hipérbole). A culpa ligada à figura de um Deus judaico – cristão colérico, que castiga sem dó nem piedade e que só é redimida com a morte, é terrível não há dúvida!...
Bendrix ainda no princípio do “affaire” afirma (págs. 79 e 80): “Sarah possuía artes extraordinárias para eliminar o remorso. Ao contrário de todos nós, não a perseguia qualquer consciência de culpa.”… “Diz-se dos católicos que no confessionário se libertam da hipoteca do passado – e sem dúvida que, sob este aspecto ela poderia ser classificada de católica nata, embora acreditasse em Deus tanto quanto eu”. Na pag.103 reitera “Tínhamos tão alegremente acordado em eliminar Deus do nosso mundo. ”
Como estava enganado Mr. Bendrix, a culpa é empurrada porta fora e quando menos se espera entra-nos pela janela. Não está Deus em toda a parte? Este olho divino não nos abandona. Pena é que por vezes seja tão desprovido de compaixão... Pobre Sara martirizada pelo silêncio ensurdecedor dum Deus que infunde temor e tremor como disse o filósofo. A certa altura queria ver-se livre Dele, mas qual quê, era como um visgo agarrado sua à pele.  
O Deus de Greene é o Pai severo e implacável do Velho Testamento, não o comove a dor terrível dos dois adúlteros, nem o sofrimento do marido enganado. Apetece dizer parafraseando o poeta: Mas aos mansos Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?  Pura hipocrisia do Altíssimo, porque o seu filho, ao que sabemos legítimo, veio pregar na montanha para quem o quis ouvir: Bem-aventurados os mansos porque eles pertencem ao reino dos céus.
Três almas dilaceradas a sofrer as penas do inferno cá na terra. Foi preciso castigá-los e levá-los a engolir a taça do fel para expiação das suas culpas. Não havia necessidade!...
Mas tentemos outra abordagem. Se acreditarmos que Deus escreve direito por linhas tortas, isto é, que os desígnios divinos são demasiado complicados para a pequenez da mente humana, podemos sempre pensar que este caminho das pedras deu belos frutos: Santificou a pecadora adúltera e pacificou o resto do pessoal. Eis um catolicismo de consolo mais maternal!
Enfim a salvação! Podiam pedir mais e melhor? Podia sair melhor na fotografia?
Como eu gosto de finais felizes! E esta hem?

Sarah Miles uma prostituta e uma impostora

por Maria José Marques

O Fim da Aventura é um romance em que Graham Green constrói magistralmente a narrativa de uma paixão avassaladora que prende um homem e uma mulher, Maurice Bendrix e Sarah Miles, e a descoberta de Deus no meio do desespero.

Ao imaginar que irá perder o homem amado para sempre durante um bombardeamento, Sarah promete renunciar a esse amor intercedendo pela vida dele perante um Deus que ela crê não existir. A graça é alcançada e é aí que reside o conflito de Sarah e do amante que não compreende a razão do fim do “ affair “ . Sarah passa por uma verdadeira Via Crucis e quanto mais tenta negar a veracidade do milagre, mais se sente tocada por Deus e imersa num Amor profundo. Porém, o que sente por Maurice, seu ex-amante, permanece vivo e cada vez mais intenso com a separação forçada.


A acção do romance é muito limitada em termos de acontecimentos o que o torna tanto mais interessante a sua  arquitectura formal. O narrador,Bendrix,sente-se enredado” numa rede inextricável de acontecimentos” – o fim da aventura amorosa- que não provocou e, para reverter a situação actual procura no passado um indício, um sentido para a presente recusa de Sarah. Oescritor Bendrix / Graham Green, sente-se “enredado (…) numa rede inextricável de ciúme de imaginar-se substituido por outro amante , Bendrix chega a dizer de Sarah “entregava-se ao primeiro que lhe aparecesse” ( p.244),  leva-o a procurar Henry, marido de Sarah, e forjar com ele uma aliança para contratar um detective que lhes traga um relato da vida dela que lhes escapa.O diário de Sarah , a sua voz na arquitectura do romance, é obtido pelo detective contratado , Parkis, e assim Bendrix tem as respostas que procura embora não sejam as que deseja, os dilemas religiosos e morais de Sarah são expostos, e nele surge a figura de Smythe o homem que “ rebatia os argumentos da existência de Deus.”

Este é o triângulo amoroso que não chega a ser. Maurice Bendrix é o amante exigente e ciumento, escritor com poucos contragimentos no uso do seu tempo, Henry Miles funcionário ocupado com o seu trabalho em tempo de guerra, marido delicado, bom ,paciente que reconhece “ Fiz muito mal a Sarah quando casei com ela “ e tenta estar mais presente na vida dela quando já é tarde de mais  e Sarah a mulher que diz de si própria “ sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me”

De onde vem esta auto depreciação de Sarah ? O autor Graham Green não facilita, não oferece pistas no desenvolvimento da personalidade da personagem. A mãe de Sarah, Mrs Bertram, não terá sido o melhor modelo no que respeita à verdade e o facto de ter baptizado Sarah não por verdadeira convicção católica mas para despeitar o marido é revelador da sua personalidade. Por outro lado, na arquitectura do romance, este baptismo vem legitimar e certificar o catolicismo de Sarah para surpresa de alguns.

Mas não é só isto que explica que Sarah se diga ” uma prostituta e uma impostora “ tão repetidamente ao longo do romance , e que o próprio amante  Maurice a veja assim nos seus acessos de fúria ciumenta e noutros momento lamente que ela se sinta desse modo.  A minha leitura é de que Graham Green quer na verdade que o leitor veja Sarah  como uma alma perdida em contraste com a sua luta para amar Deus. “ nesta prostituta, nesta impostora, que encontras digno de amor ?” Escreve ela no seu diário: ( p. 139)
“ Os homens, se pensam que os apreciamos, apreciam-nos pelo nosso bom gosto,e, quando nos apreciam, temos a ilusão de que por momentos há que apreciar. Tenho procurado viver a vida inteira nesta ilusão, num analgésico que me permite esquecer que sou uma prostituta e uma impostora.” Sarah dá aos homens atenção e apreço numa troca  que é ao mesmo tempo recíproca e ilusória.

Sarah só encontra a definição da sua personalidade em função da sua relação com os outros. Na perspectiva da promoção profissional de Henry poder levar a que lhe chamassem “ Lady Miles “ Sarah imagina-se “Lady Miles- que não tem amantes, nem bebe, (…) e todo esse tempo onde estaria eu ? ( p.142 )” Portanto ela acha-se uma impostora por ter uma imagem pública de esposa  fiel enquanto vai traindo o marido com os seus colegas e superiores, prostituta por se envolver com vários homens , incluindo Maurice que nem precisou de a seduzir para se tornarem amantes. Mas a definição daquela que Sarah crê ser a sua identidade está patente quando, depois de estar a beber sozinha se interroga “Eu era alguém que amava Maurice, se entregava a diversos homens e gostava da sua pinga. Que fica, se abandonamos tudo aquilo que nos faz sermos nós ? “

Culpada, inocente é uma questão de perspectiva temporal e circunstancial “ Enquanto fui o que a lei considera a parte culpada podia contemplar ( Henry ) afectuosamente(…).Agora que eu passara à categoria de inocente fazia-me perder a cabeça “ Culpada enquanto amante de Maurice, inocente depois renunciar a ele para o salvar Sarah continua a entregar-se a outros homens que não faziam parte do acordo feito por ela com Deus.

“ Quero o vulgar e corrupto amor humano” escreve Sarah numa página do seu diário que Maurice há-de ler e reler o que, na magnífica arquitectura do romance facilita ao leitor captar  uma ideia central . Sem este amor humano há um deserto , encontrar Deus nesse deserto é outra questão.

Na morte de Sarah, alguns dos que a amaram em vida, o jovem Lance, o materialista Smythe, e mesmo Maurice sentem-se tocados pela santidade de Sarah e cada um beneficiário de um milagre operado por ela. Assim Sarah Miles, como tantas outras Madalenas, passa de pecadora a santa e Maurice trata de manter essa santidade que se tornaria muito inconveniente se fosse tornada pública.


A arte de comparar

por António Nabais

“El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había que señalarlas com el dedo.”
Gabriel García Márquez, Cien Años de Soledad
“Our ordinary conceptual system, in terms of which we both think and act, is fundamentally metaphorical in nature.”
George Lakoff and Mark Johnson, Metaphors We Live By

               Não podemos comunicar verbalmente sem comparar, porque, muitas vezes, uma palavra não chega, por si só, para explicar a um interlocutor aquilo que queremos dizer, porque não há explicações. Para que todos nos entendamos verdadeiramente somos, frequentemente, obrigados a usar, por exemplo, frases começadas por “É como se…”
                    É como se tivesse uma moto-serra dentro da cabeça, é como se me estivessem a arrancar um dente, é como se…
                    Entre a metáfora e a comparação vai um corte que é um avanço, como se (como se, estais a ver?) a coisa comparada se transformasse efectivamente na coisa a que é comparada. Costuma dizer-se que a metáfora é uma “comparação sem como”, mas, ao escolher uma metáfora, estamos a estreitar, a metáfora é o percurso mais rápido entre dois termos de comparação, uma recta entre duas realidades (olhai a metáfora metaforizada em recta). Se alguém é o sol da nossa vida, passa a ser mais do que uma coisa que queremos comparar com o sol, é como se (outra vez?) passasse a ter mais brilho e como se (sem comentários) isso fizesse de nós um planeta sem uma luz própria, um planeta que não teria vida sem esse sol a que(m) devemos tudo.
                    No fundo, no fundo (também isto é metáfora), não podemos explicar-nos verdadeiramente sem comparar, sem metaforizar, sem criar imagens mais ou menos complexas. Não vivemos sem isso, porque precisamos disso para viver, como fica patente no livro Metaphors we live by.
                    Por outro lado, a escolha do segundo termo de comparação, independentemente da sua extensão, não é apenas denotativa, misturando, muitas vezes, informação, sentimentos e estado de espírito.
                    Em O Fim da Aventura, Graham Greene mostra uma incomparável arte de comparar, como poderemos confirmar através da análise de alguns exemplos.
                    Na p. 36, para explicar que perdeu a noção da passagem do tempo, o narrador usa a pouco inventiva metáfora das “trevas”, em que a ausência de luz é reveladora da ausência de racionalidade, para a reforçar com a magnífica imagem “como a um cego notar as variações da claridade.”
Na mesma página, há uma longa imagem que serve para mostrar que sente “admiração e confiança nos preconceitos, assim à semelhança de quanto as aldeias, vistas da estrada onde os automóveis passam, tão sossegadas parecem com as suas pedras cobertas de colmo, e sugerem ideias de paz.” É o próprio narrador, como se vê, que explica o que pretende transmitir com a imagem, não fosse o leitor ficar sem perceber.
Diante das dificuldades que a relação com Sarah coloca ao trabalho de Bendrix, o amor entre ambos é alvo de uma outra imagem longa na p. 59: “O nosso amor era como uma criaturinha apanhada numa armadilha e esvaindo-se em sangue até à morte: eu tinha de fechar os olhos para torcer-lhe o pescoço.” Este período constituirá um indício daquilo que virá a acontecer. A fragilidade do amor está patente no diminutivo, ao mesmo tempo que a palavra escolhida pode revelar a clássica dificuldade em definir o sentimento. Além disso, a “armadilha” acentua as dificuldades da relação. O facto de se estar a esvair em sangue reforça o ferimento e antecipa a morte. Para matar esse amor, o narrador teria de fechar os olhos, neste caso, deixar de amar, uma metáfora nada usual de racionalidade, em que “abrir os olhos” é sinal de razão.
No final do acto amoroso, o cabelo de Sarah é “como licor entornado” (p.78): para além da textura do próprio cabelo, pode haver uma certa relação entre embriaguez e clímax; o adjectivo serve para ilustrar o desarranjo causado pelo próprio acto. As duas comparações que se seguem (“como se tivesse ganho uma corrida” e “qual jovem atleta”) colocam a tónica nos efeitos físicos e transmitem uma imagem eufórica.
Relativamente aos efeitos perniciosos da insegurança nas relações, o narrador utiliza a imagem de uma cidade cercada: “Numa cidade apertadamente assediada, qualquer sentinela é um traidor em potência.” (P. 86) Penso que, aqui, se pretende ilustrar que o excesso de vigilância pode causar a perdição da cidade, ou seja, do amor.
Na p. 88, o narrador afirma que “a pena que eu tinha de mim mesmo, mais a minha fúria, passeavam de mãos dadas pelas avenidas crepusculares como dois doidos sem enfermeiro.” A riqueza de recursos neste período é impressionante, começando com uma personificação da pena e da fúria, intimamente ligadas (“de mãos dadas”), passando pela adjectivação (“crepusculares”) que retoma a falta de luz como dificuldade de racionalização), terminando com a comparação que inclui a ideia de patologia descontrolada.

Na p. 133, no diário de Sarah, confirmar-se-á a dificuldade que qualquer autor terá em encontrar uma voz que não seja a sua, pois a imagem utilizada pela amante de Bendrix é própria do narrador: “Tudo é como se estivéssemos esculpindo a mesma estátua, talhando-a cada um na miséria do outro. Mas nem sequer sei que imagem é.” A estátua é a “mesma”, ou seja, uma única, isto é, a relação entre ambos. Tendo em conta o sofrimento dos amantes, a matéria-prima é a “miséria” (poderá haver aqui uma má tradução de “misery”). O período final retoma a impossibilidade de definir a relação.
Ainda no diário de Sarah, há uma extraordinária e cruel de comparação entre a cara de um superior de Henry e “um engano de cerâmica” (p. 140). Na página seguinte, para que o leitor perceba a ausência de desejo sexual, os corpos de Sarah e do marido são “como estátuas jacentes.”
Na p. 204, na carta que Sarah escreveu, encontra-se uma comparação que poderá definir o grande problema de Graham Greene ou de muitos crentes: “Apanhei a fé como quem apanha uma doença.” Não há dúvidas quanto ao sentido pejorativo que se pretende exprimir. Ao mesmo tempo, de acordo com esta frase, a fé é algo que acontece e que não se domina. Aliás, imediatamente antes disso, Sarah afirma que não haveria nada que a pudesse impedir de ter fé, como se fosse uma doença incurável.
Na p. 242, aas respostas do Padre Crompton são “como árvores atravessadas na estrada.” Na realidade, esta comparação confirma a antipatia da personagem: a “estrada” corresponderá à comunicação entre as pessoas, tornada impossível pela dureza das respostas.
No final do romance, Maurice e Henry tornam-se inseparáveis, unidos pela mulher que os tinha desunido. Na p. 253, o primeiro espreita o sono do segundo e, depois de ter descoberto que é “apenas um homem”, compara-o ao “primeiro soldado inimigo que um homem encontra num campo de batalha, morto e indistinguível, nem Branco, nem Vermelho, um ser humano à sua própria semelhança.” A infelicidade é uma das várias maneiras de morrer estando vivo e é essa espécie de morte que une estes dois antigos inimigos, dois rivais tão semelhantes na sua humanidade. Num romance de um católico tão revoltado com Deus, é curioso notar o eco do Génesis, com a divindade a ser expulsa, porque o homem é feito à sua “própria semelhança.”










sábado, 4 de fevereiro de 2017

O Fim da Aventura




E porque  

                                              VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT



são estes os temas a desenvolver:


O Fim da Aventura
Graham Greene

Temas de reflexão:

·      A “Arte de Comparar” em “O Fim da Aventura”

·      Graham Greene vs Maurice Bendrix

·      A arquitectura do romance

·      Graham Greene: o romancista católico, não o católico que escreve romances

·      Bendrix e Henry: “Éramos companheiros de viagem”

·      Richard Smythe: “a ofensa de ter nascido assim”

·      “O Fim da Aventura”: um memorial de ódio?

·      Sarah Miles: “uma prostituta e uma impostora?”


A Arquitectura do Romance

por Alexandra Azevedo



     A história de “O Fim da Aventura” começa em Fevereiro de 1946, nove meses depois do fim oficial da Segunda Guerra Mundial, mas o narrador tem o cuidado de esclarecer que Uma história não tem princípio ou fim: escolhemos arbitrariamente um momento da experiência, de onde olhar para trás ou para diante.(19) E o momento escolhido, uma  negra e chuvosa noite de Fevereiro (19) instaura, desde logo, o clima sombrio que irá envolver todo o romance. Aliás, o narrador apressa-se a informar o leitor de que este livro “é um memorial de ódio”, ódio a Sarah, sua ex-amante e a Henry, o marido desta e, mais do que tudo e ainda que não explícito, o inconfessável ódio a si próprio.
   Tendo escolhido “olhar para trás”, o narrador regride ao Verão de 1939, um desses Verões já condenados que precederam a guerra, mais precisamente, ao dia em que viu Sarah pela primeira vez e reparou nela porque ela era feliz e nesse tempo o sentido da felicidade ia desaparecendo na tormenta que se aproximava (42). As referências à guerra são sempre, no entanto, aparentemente casuais: desci cuidadosamente as escadas bombardeadas em 1944 e nunca reparadas (20), diz sobre o prédio em que mora, ou, num contraste dificilmente fortuito: aguardando o momento em que Sarah desceria os degraus sólidos que os bombardeamentos haviam poupado (34) Os próprios bombardeamentos apenas são referidos na medida em que interferem ou não com a sua aventura amorosa: “As bombas, entre os primeiros ataques diurnos e as V1 de 1944, mantiveram-se nos convenientes hábitos nocturnos”  (54) e nem o seu trabalho enquanto  romancista  foi perturbado: muito do trabalho do romancista se desenvolve no inconsciente; (…) A guerra não perturbou essas cavernas submarinas (55) De resto, é o próprio a afirmar: A  própria guerra nunca  me afectou (53)
   Mas, porque o romancista pode também escolher “olhar para diante”, o passado e o presente sobrepõem-se constantemente.
    E é assim que, logo no Livro Primeiro, acompanhamos, no presente da narrativa, as diligências do detective que Bendrix, o narrador/romancista, contrata para seguir Sarah e averiguar se ela tem um novo amante.
   O ciúme é, sem dúvida, o grande protagonista deste livro: o ciúme do marido de Sarah que o confidencia a Bendrix o ex-amante da mulher, obviamente sem saber da relação que ambos tinham mantido tempos antes; o ciúme de Bendrix não só  em relação ao marido, mas também relativamente à possibilidade de Sarah ter um novo amante;  e o ciúme que o mesmo Bendrix  experimentará face ao próprio Deus católico que Sarah tardiamente descobre e a quem se entrega. Aliás, é o próprio narrador a classificar o seu romance como “um extenso registo de ciumeira”:   Eu sou um ciumento – parece estúpido escrever isto, no que é, ao que julgo, um extenso registo de ciumeira (79)
     Muitas são, por isso, as referências que o narrador faz a esse sentimento que, mais do que tudo, o atormenta: Nada há de inferior no ciúme, senhor Bendrix. Sempre o saúdo como sinal de verdadeiro amor. (38) Impossível não ver, nestas palavras, uma tentativa de legitimação de um sentimento que o próprio intimamente considera indigno. Talvez por isso escolha para as pronunciar, uma personagem como o Sr. Savage, o dono da agência de detectives, na medida em que o intuito interesseiro de não perder um cliente, de imediato lhe retira credibilidade numa espécie de argumento de autoridade a contrario. Bendrix sabe que o ciúme não é um sinal de verdadeiro amor. O ciúme, ao que sempre supus, existe apenas quando há desejo (63) – afirma e O meu desejo era então muito mais afim do ódio que do amor (63) Na verdade, Bendrix sabe que é de si mesmo e, não de Sarah, que não está seguro_ bastava-me olhar para um espelho e logo via a dúvida com os traços de um rosto enrugado e uma perna coxa – eu, porquê? (72)
    Perdido entre raros  momentos de paz e confiança e numerosos momentos de ciúme infernal, o narrador tem consciência da permanente errância da narrativa: Se este livro não consegue desenvolver-se rigorosamente, é porque estou perdido numa região ignota, e não tenho mapa. (75)
     De facto, de narrativa de uma vulgar aventura extra-conjugal, o romance transforma-se numa reflexão sobre a transcendência numa perspectiva religiosa, a “região ignota” onde “sem mapa”, isto é, sem Fé, se sente perdido, uma região que fica num mundo religioso que não é o seu: a Bíblia (…) pertencia a outro mundo de ideias que não o meu – o mundo do amor. (181). Por isso,  é esta a única oração que consegue fazer -  Ó meu Deus (…) sinto-me por demais cansado e velho para aprender a amar, deixa-me em paz para sempre. (258) -  palavras com que termina o último dos cinco livros que compõem o romance. Como o Pentateuco.


8 de Fevereiro de 2017