quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Memórias I

Huzun  no Porto

Era assim todos os domingos: almoçar em casa dos  avós e ao fim da tarde regressar a casa. Esse regresso provocava-me sempre, e inexplicavelmente, um sentimento de tristeza que me levava a inventar todos os pretextos para retardar a hora da saída: uma boneca de quem não me despedira convenientemente, um livro de pintar que ficara esquecido no quarto dos brinquedos e que subitamente era indispensável para sobreviver a mais uma semana, uma última descida a cavalo do corrimão, brincadeira altamente reprimida e censurada por toda a família, mas que naqueles momentos de despedida, eu sabia, iria encontrar uma tolerância benevolente. Depois, cá em baixo, outra aventura se perfilava que me suavizava o momento de partir: saltar quatro degraus! Vovó fechava os olhos e rezava qualquer coisa entre dentes que terminava em Nª Senhora de Fátima.
A tristeza que eu me esforçava por retardar não era, no entanto, por deixar os mimos dos avós ou as brincadeiras mais liberais que me deixavam fazer. A tristeza estava lá fora. Na rua. Deixar aquele ambiente luminoso e quente e entrar na noite escura e fria era o que produzia esse sentimento. Primeiro, é claro, ainda havia uma última coisa interessante: ver “o fumo” sair de narinas e bocas. Mas depois disto, nada mais para evitar a melancolia. Havia a rua envolta em nevoeiro e os candeeiros a emergirem com uma auréola de luz, havia o frio, o desconforto e, pior do que tudo isso, o gemido lamentoso e soturno de um ardina a vender o vespertino com as últimas do futebol: Norte Desportivo! Olha o Norte! Ouço ainda, com uma nitidez surpreendente, esse regougar triste. Íamos apanhar o eléctrico, o 15, para as Antas,  mas antes eu exigia sempre um pequeno desvio para saltar nas soleiras salientes no passeio de umas casas pobres. Depois disto, apenas me restava a perspectiva da montra da loja das bicicletas que todas as semanas examinava para chegar sempre à mesma conclusão: nem um triciclo! Inútil pedir para descer a Sá da Bandeira e ver o Bazar Paris e o Bazar Londres: Isso era coisa garantidamente não concedida pelo que me conformava e esperava que, ao menos, os vidros do eléctrico estivessem embaciados. Por vezes, no entanto, os meus pais decidiam ir ao Palladium tomar café, antes de regressar a casa. Então, já nada me parecia triste ou melancólico. Os manequins das montras que se pareciam todos com meninos da Mocidade Portuguesa, (eu só reparava nos manequins infantis, não me lembro dos outros) eram seres que eu evitava encarar porque me aterrorizavam, mas nessas alturas olhava-os com superioridade e dizia-lhes: Vou brincar com a Rosinha! Vou brincar com a Rosinha! A Rosinha (onde estará ela agora?) era um conhecimento de café.
Ir ao café à baixa era, julgo, um hábito generalizado e, com aquela facilidade que as crianças têm em fazer amigos, tínhamo-nos tornado inseparáveis no Palladium, fazendo “grupo contra” outras eventuais crianças que quisessem brincar connosco. A brincadeira era, invariavelmente, jogar às escondidas e isso incluía as casas de banho das senhoras onde os meninos por natureza estavam impedidos de entrar. Azar! Mas o melhor era, sem dúvida, conseguir iludir os criados e escondermo-nos no andar dos bilhares, debaixo dos mesmos ou nas prateleiras de um balcão desactivado que lá havia. O risco de sermos retiradas, suspensas por uma orelha, da mão de um criado olimpicamente indiferente à questão dos maus tratos a crianças, era um risco real e várias vezes experimentado.
Os cafés da baixa da minha infância tinham, para mim, cada um o seu atractivo específico e o seu grupo de crianças próprio. O Rialto, por exemplo, era a seguir ao Palladium (e este lugar cimeiro devia-se, evidentemente, à Rosinha) o meu café preferido. Este segundo lugar ficava a dever-se ao cavalo de dentes arreganhados que estava à porta. Era um cavalo lustroso, castanho e pertencia a um painel cerâmico que se  encontrava  nas escadas da entrada. A prova de fogo que eu me obrigava a passar consistia em meter corajosamente a mão na boca aberta do cavalo! De todas as vezes, eu desconfiava que era desta que ele fechava a boca! Para além de uma tal atracção, o café possuía uma outra não menos interessante: um “artista” que fazia recortes em papel de lustro, retratando os presentes. Eu acompanhava-o por todas as mesas e assistia com admiração ao modo rapidíssimo como ele, manejando a tesoura, retratava um homem de chapéu, uma senhora de cabelo armado, um menino com gola de marinheiro… Um dia pedi aos meus pais para lhe encomendarem o meu retrato. Foi um dia memorável. Retratou-me de chávena na mão. Eu não podia estar mais orgulhosa. E, dizia ele, quer ver como o braço se mexe e se vê a menina a tomar o pingo? Acendeu um fósforo e agitando-o por trás da folha de papel em que colara o recorte, conseguia a ilusão óptica. Pelo menos para mim.
Para além do Palladium e do Rialto, ainda havia o Rivoli, o Flórida, a esplanada do Majestic nos dias de verão, todos eles magníficos  lugares para jogar às escondidas e todos bem providos  de parceiros de jogo. Haverá ainda tantos bandos de crianças nos cafés da baixa?
Mas o regresso a casa acabava por acontecer. Esperar o eléctrico em Santa Catarina significava enfrentar de novo a soturna melancolia da cidade. Consolava-me com a expectativa dos vidros embaciados. Tinha-me especializado em desenhar… eléctricos. Por vezes o desenho era tão grande que precisava de passar para a janela da frente e, gravemente, pedia ao passageiro que me emprestasse a sua janela para continuar o meu desenho. A princípio indiferentes ou até agastadas, invariavelmente as pessoas começavam a interessar-se e a sorrir quando descobriam que em cada janela desenhada estava o respectivo passageiro: a senhora gorda, o velhote de boné, o rapaz, etc.
A Praça Velasquez chegava, enfim, e toda a opressão e melancolia que povoavam a noite exterior, subitamente desapareciam. Nunca a Praça, nesse tempo “o jardim” me pareceu triste ou melancólica. Esquecida, então, do nevoeiro tristonho da baixa, corria para casa a saudar a Pitó, a paciente gata a quem fazia tranças com os bigodes, e sentava-me diante da televisão à espera de Mr. Ed.

Alexandra Azevedo
3 de Fevereiro de 2011

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