sábado, 4 de novembro de 2023

Os Enamoramentos de Javier Marías

 


Os Enamoramentos

de

Javier Marías





Temas de reflexão:

·       O universo editorial espanhol

·       As referências literárias em Enamoramentos

·       A incerteza como bússola narrativa

·       Os olhos de Diaz-Varela

·       A opacidade humana

·       A lição do coronel Chabert

·       “O assassínio é algo que acontece e de que qualquer um é capaz






 

Os Enamoramentos

Javier Marías

por Alexandra Azevedo

 

A opacidade humana

Tudo é representação

“…é incrível que passados tantos séculos de incessantes conversas entre as pessoas não possamos saber quando nos dizem a verdade. «Sim», dizem-nos, e pode sempre ser «Não». «Não», dizem-nos, e pode ser sempre «Sim». Nem sequer a ciência nem os infinitos avanços técnicos nos permitem averiguá-lo com segurança.”(219)

Maria faz estas reflexões quando Diaz-Varela não resiste a interrogá-la para saber se ela teria ouvido a comprometedora conversa que acabara de ter com o seu amigo (ou cúmplice?) Ruibérriz, a quem encomendara a morte piedosa (ou o assassínio?) do seu amigo Desvern. O que sai da boca de Diaz- Varela? A verdade? Ou a mentira? De nada vale a Maria contemplar aqueles lábios que a tinham fascinado desde o primeiro momento,  ou percorrê-los lentamente com o dedo, aquela  “ boca carnuda e firme muito bem desenhada, de tal modo que os lábios pareciam de mulher transplantados para uma cara de homem, era muito difícil não os notar ,eram uma espécie de íman para o olhar, quer quando falavam quer quando estavam calados. Davam vontade de os beijar, ou de lhes tocar, de percorrer com o dedo aquelas suas linhas tão bem traçadas, como que feitas por um pincel fino, e, depois, de apalpar com a polpa do dedo o vermelho, ao mesmo tempo denso e fofo.”(103) De nada vale, pois,  a Maria esta contemplação  porque a dúvida permanecerá sempre no seu espírito. Ao longo do romance é recorrente esta referência aos lábios de Diaz-Varela como se, mesmo antes de fazer a terrível descoberta acerca da morte de Desvern,  intuísse a dúvida que se instalaria no seu espírito sempre que Diaz- Varela falasse. Do mesmo modo, também os olhos, “ nebulosos e indecifráveis que nunca conseguiam olhar fixos de todo” (312) envenenavam  a possibilidade de neles confiar. 

A ideia de que tudo é representação é, assim, a par com o poder do enamoramento, um dos fios condutores do romance. Impossível conhecer a realidade pois  apenas acedemos à sua representação. O próprio discurso de cada falante é sempre algo falseado porque “o outro” tem um controlo constante sobre o seu discurso. Todos medem as palavras consciente ou inconscientemente. Maria sabe que Diaz-Varela tem o mesmo problema em relação a ela. Também a dúvida o corrói. Estará ela a dizer a verdade  quando afirma que nada ouviu? “ Não ouviste nada do que ele me contou, pois não? Estavas a dormir quando ele chegou, não foi? Entrei para verificar antes de falar com ele e vi-te bem adormecida, estavas a dormir, não estavas?”” Que é que te acordou?” (220) E, naturalmente, ela mentiu “Não, não ouvi nada não te preocupes” (220) “Mas que perguntas são essas_ disse-lhe eu com desenvoltura_ Eu sei lá o que me acordou” (221)

Também em relação a  Ruibérriz, Maria não sabe se a reacção de surpresa  deste ao tomar conhecimento de que ela, de facto, ouvira a conversa comprometedora com Diaz-Varela , é uma reacção  genuína ou fingida “  O que acabava de saber inquietava-o, ou acertava-lhe em cheio, se é que não estava a fingir” (358) E quando Maria classifica como assassínio colectivo a morte de Desvern, Ruibérriz “Saltou como uma mola, transtornado”(359) o que a leva a pôr a hipótese de haver sinceridade nele “ Parecia convencido, parecia sincero (360) Mas esta é apenas uma hipótese que ela põe  entre outras “De modo que pensei: «Uma de três: ou o melodrama é verdade, não é uma invenção; ou o Javier também enganou este tipo com a história da doença; ou este tipo está a fazer comédia às ordens de quem lhe paga. E neste último caso é muito bom actor, há que reconhecê-lo” (360)

E nem mesmo quando, subitamente, ao recordar-se da notícia da morte de Desvern, tem a percepção clara  de que a doença deste nunca existira e que , portanto, se teria tratado de um assassínio,” «Cinco horas num quirófano « pensei. «Não é possível que depois de cinco horas não tenham detectado  uma metástase generalizada em todo o organismo, como disse o Javier que lhe havia dito Desvern”(373), nem mesmo assim a  a dúvida deixa de se instalar porque a própria notícia poderia, também ela, não ser verdadeira “, a não ser que o dado das cinco horas fosse falso ou errado, as notícias dos jornais não estavam de acordo nem quanto ao hospital para onde tinham levado o moribundo” (373)

Na impossibilidade de saber a verdade porque “A verdade nunca é nítida, é sempre um matagal”(361), Maria decide nada fazer, nada denunciar por não querer ser a flor-de-lis de Diaz-Varela “«Sim, eu não quero ser a sua maldita flor-de-lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o mais antigo delito desapareça” e, além disso, Desvern é um morto bem comportado, não um incómodo  Coronel Chabert e, por isso,   não voltará do reino dos mortos para repor a verdade ou para denunciar a sua inacção “Ao fim e ao cabo ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos” (381) Ninguém poderá acusá-la, portanto,  da verdadeira e inconfessável  razão de não fazer nenhuma denúncia “Esse teria sido certamente o meu propósito com qualquer outra pessoa, ou com ele mesmo se não me tivesse enamorado em tempos, estúpida e silenciosamente , e se ainda não gostasse um pouco dele, suponho eu, apesar de tudo, e tudo é muito”(381). Enamoramentos...

 

Alexandra Azevedo

Outubro 2023

 

 

Clube de leitura EASR  26/10/23

“Os enamoramentos”

Javier Marías”

 

Por  M.Amélia L.V.Correia

 

“O perfil moral de Díaz-Varela”

Antes de mais gostaria de pedir aos circunstantes, para aceitarem como verídica, a narrativa de Díaz-Varela (D.V.), sobre as razões que o levaram a urdir a trama que conduziu ao assassínio de Deverne.

Passarei a analisar o perfil moral de D V.

Usando as categorias Kanteanas de legalidade e moralidade, é óbvio que se trata de um acto ilegal. Em qualquer Estado de direito D.V. seria considerado culpado e sujeito a uma pena.

Kant não aceita a essencialidade do mal, isto é, não considera que a maldade seja inerente à natureza humana, e, como iluminista, define o homem como um ser que se caracteriza pela sua racionalidade. A razão prática, detentora da lei moral, pode agir moralmente ou não. 

Prosseguindo com este autor, o valor ético duma acção situa-se na intencionalidade (moral deontológica). D.V. afirma ter agido segundo o pedido do amigo para o livrar duma morte horrorosa. Mas esta acção era do seu interesse, pois abria-lhe caminho para uma ligação com Luísa, que desejava. Considerando que se sentiu no dever de ajudar o amigo, tinha interesse na acção, o que para este filósofo feria completamente a moralidade.  

Mas mais, os imperativos categóricos de Kant afirmam: “Age de modo que possas desejar que a máxima da tua acção se torne lei universal” e ainda “trata sempre as pessoas como fins em si, nunca como meios”. A conduta de D.V. foi, segundo estes princípios, imoral, sem apelo nem agravo. 

 Apesar desta condenação sumária, D.V. não parece ser um exemplar dum mal essencial ou diabólico, não é um Drácula, um Macbeth, ou um Annibal Lecter

Considerando a Ética Kanteana, fundamental, mas demasiado rigorosa, proponho uma outra abordagem.

Vou socorrer-me do conceito de “banalidade do mal” de Hanna Arendt embora flexibilizado. 

Este instrumento conceptual parece-me deveras útil, pois pode funcionar fora do contexto em que a autora o concebeu.

D.V. não é um assassino burocrata, um criminoso de escrivaninha como Eichmann, que serviu um regime totalitário. Pelo que nos é dado saber comporta-se como um individuo normal na sua vida quotidiana, tal como Eichmann, que era, ao que se sabe, bom marido e bom pai de família.

O comportamento de D.V .parece colocar-se de forma banal, cega perante o mal. Tal conduta  não parece resultar duma psicopatia, ou duma maldade extrema. Parece, no entanto, incapaz de se questionar, de exercer uma reflexão crítica sobre os seus atos, e sobretudo de se colocar no lugar do outro. Acresce que se trata dum homem inteligente, culto e até bastante sedutor, o que o torna potencialmente perigoso, capaz de comportamentos profundamente condenáveis e até extremamente cruéis, como nos foi dado conhecer.

 

              

 

 

 

Os Enamoramentos

Javier Marías

 

por Maria João Leite de Castro

 

Tema: a opacidade humana

 

O livro de Javier Marias é exemplar na descrição da opacidade humana, revelando as idiossincrasias da nossa condição que nos levam, muitas vezes, a não entender os nossos próprios sentimentos, pensamentos e comportamentos.

Essa opacidade vai-se manifestando em diferentes níveis de complexidade, mas está sempre presente, como se Javier Marías tentasse dissecar a alma humana sem qualquer intenção de suavizar aquilo que se vai revelando.

Haverá uma explicação racional, por exemplo, para que Maria iniciasse o dia com mais ânimo e com maior harmonia se partilhasse com Luisa e Miguel Desvern o pequeno almoço? (Confortava-me respirar o mesmo ar, ou fazer parte da sua paisagem das manhãs – uma parte em que não reparavam –(…), pág.13)

Em certa medida, sentia-me em dívida com eles, porque, sem o saber nem o pretender ajudavam-me quotidianamente, permitiam-me fantasiar acerca da vida deles, que imaginava sem mácula, tanto que me alegrava por não poder verificar nada a respeito dela, e, assim, não sair do meu encantamento passageiro (…), pág. 21).

De tal forma esse “contágio de optimismo” era importante para Maria que ela reconhece que, ao perdê-lo, se tornou mais intolerante com as fraquezas, as vaidades e as patetices (pág. 37), ao fazer frente e negar um dos caprichos de Garay Fontina, mesmo sem consultar o seu chefe.

As considerações que são feitas sobre a questão do luto e da morte de alguém que nos é querido, são também surpreendentes e inquietantes. Como se a grande questão fosse interromper o fluxo contínuo da nossa normalidade, mesmo quando essa normalidade não é a mais desejada: Num caso extremo, mesmo os indivíduos que vivem na ameaça de serem assassinados, por exemplo (refere o caso de um mafioso sanguinário ou o presidente dos Estados Unidos) desejam que nunca termine essa ameaça, essa tortura latente, essa inquietação insuportável. Não desejam que acabe nada do que há, do que têm, por muito odioso e gravoso que seja (pág.132).

Por outro lado, e ainda sobre a mesma questão diz: o que é assombroso é que quando as coisas acontecem, quando se dão as interrupções, as mortes, a maioria das vezes, passado um tempo, dá-se como bom o que aconteceu .(…) a vida acaba sempre por se impor, com tal força que pouco a pouco se nos torna quase impossível imaginar-nos sem aquilo, não sei como explicar, imaginar que uma coisa acontecida não tivesse acontecido (pag.133)

Como se a “nova normalidade” já não pudesse tolerar ou ser compatível com a situação anterior, tal como o presente não pode coexistir com o passado e o passado apenas existisse para definir esse presente que agora se impõe como absolutamente necessário…No romance de Balzac, Chabert não pode regressar ao mundo dos vivos, o seu reaparecimento é uma desgraça completa. O vazio que ele provocou na altura do seu desaparecimento, o abismo que parecia “engolir” Madame Ferraud, passou a fazer parte da sua vida, acomodou-se, e além do mais esse vazio tapou-se e portanto já não é o mesmo ou passou a ser fictício.(pag.152).

Mas aquilo que mais nos perturba é a forma como Maria reage ao descobrir que Javier (ou já Diaz- Varela?) orquestrara a morte de Miguel Deverne, seu melhor amigo mas simultaneamente aquele que o impedia de viver o seu enamoramento por Luísa. Ao ouvir a conversa incriminatória com Ruibérriz há um primeiro momento de pânico, uma vontade de fugir, de não ouvir mais, para que, pelo menos, ficasse a dúvida à qual se pudesse agarrar como uma tábua de salvação para a continuação do seu próprio estado de enamoramento. A seguir, há um momento de medo, de suspensão do amor : Notei que aquele amor guardado se suspendia, em qualquer das suas formas é incompatível com o medo; adiava-se para um melhor momento, o do desmentido ou do esquecimento, mas não me escapava que nenhum dos dois era possível (pag.190).

Minutos depois, quando se dispõe a entrar na sala para conhecer Ruibérriz , um homem sem escrúpulos, é já patente a sua necessidade de branquear a revelação que acabara de ter. Embora referindo que também Díaz- Varela tinha falta de escrúpulos, talvez até em maior grau do que Ruibérriz, escreve :mas não deixava de ser alguém que conhecia tudo o que do meu corpo é visível, alguém ainda amado, sentia uma mistura de incredulidade radical e de repugnância primária e irrefletida, era incapaz de assumir o que julgara saber (…).(pág. 195).

Esses sentimentos contraditórios vão-se adensando, mesmo quando já não é possível manter a dúvida  (não havia dúvidas que lhe tinha pago dinheiro ou que ainda lho pagava, pela mediação, pela orientação do crime, pelo acompanhamento das suas consequências – pág.209) sobre aquilo que Díaz-Varela orquestrara (por muito que se esforçasse por levantar questões sobre a sua real responsabilidade) e, mesmo sabendo que não podia refutar essa verdade, pensa (…)porque é que não podia obrigá-lo a abraçar-me sem mais demora nem hesitação, ali estavam os seus queridos lábios, como sempre desejava beijá-los e agora não me atrevia ou então qualquer coisa me repelia neles ao mesmo tempo que ainda me atraíam (…).Continuava a gostar dele e ele metia-me medo, continuava a gostar dele e o meu conhecimento do que ele fizera metia-me nojo; não ele, mas o meu conhecimento.(pág.221).

Duas semanas depois, durante as quais Maria se continua a debater com sentimentos contraditórios – esperando avidamente um telefonema e simultaneamente desejando não ver o nome e o número dele no ecrã – Díaz Varela telefona e pede para se encontrarem. Na conversa que têm, Javier assume, num primeiro momento, aquilo que fez, de maneira fria e calculista.   (Compreendeste que para mim os meus anseios estão acima de qualquer consideração, de qualquer freio, de qualquer escrúpulo. E de qualquer lealdade, imagina. Tornou-se muito claro para mim desde há algum tempo que quero passar com a Luisa o que me restar da vida. (pag. 290).

Não posso viver sem ela, percebes? (…) Não queria mal nenhum ao Miguel, pelo contrário, era o meu melhor amigo: mas interpunha-se na minha única vida, na única que quero, pouca sorte, é preciso afastar o que nos impede de viver .(pág.304)

A história da doença de Miguel é apresentada num segundo momento e semeia, mais uma vez, a dúvida no espírito de Maria, dúvida essa que se vai adensando mesmo que corroborada por Ruibérriz.

Dois anos depois, quando encontra Javier e Luisa num restaurante chinês, a verdade parece desenhar-se no seu espírito de forma nítida – como seria possível uma metástase generalizada não ter sido detectada em 5 horas num quirófano? Essa verdade, ou essa momentânea crença ,foi talvez iluminada pela irritação de os ver juntos, porque à noite, em casa, essa nitidez tornou-se de novo nebulosa. Como ela própria refere (…) Não era indignação moral o que sentia, e também não era zelo justiceiro, mas algo muito mais elementar, porventura mesquinho. A justiça e a injustiça não me davam cuidado. Fui de certeza tomada de ciúmes retrospectivos, ou foi despeito, suponho que ninguém está livre disso.(pág.373).

Foram provavelmente esses ciúmes retrospectivos que a fizeram-se levantar-se num impulso e dirigir-se à mesa do casal com a ideia difusa de semear a dúvida e denunciar Javier. Mas a afabilidade dela travou de repente qualquer possível intenção de dizer a Díaz- Varela o que quer que fosse que virasse a Luisa contra ele (…) (pág.377).

Na despedida definitiva de Javier, Maria pensa: Sim, eu não quero ser a sua maldita flor-de- lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o mais  antigo delito despareça (…).E eu pergunto-me se o delito cometido por Anne de Breuil, ainda criança, julgada e condenada por Athos com 16 anos, sem qualquer dúvida ou interrogação, é comparável àquilo que Díaz- Varela orquestrou para o seu melhor amigo….

Ao fim e ao cabo, pensa Maria, ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos.

Será essa a teia perversa do enamoramento incondicional, como lhe chamou Javier e que, de alguma forma, Maria corroborou?

26-10-2023

Maria João Leite de Castro


 


 Os enamoramentos

 Javier  Marías_2011


A incerteza como bússola narrativa

por Manuela Pereira

                                                                 

 

Madrid, 2011, entre a Primavera e o Outono, acontece uma morte violenta e começa uma paixão.

___ Um Casal Perfeito, que parece não partilhar o dia-a-dia; Miguel  Desvernes ou Deverne,  de quem pouco se sabe, brutalmente assassinado; desconhecida a intenção de lhe provocar a morte a ele, a outro ou a um qualquer; uma morte ao acaso que coincide com o quinquagésimo aniversário do assassinado; Luísa Alday, uma viúva abalada que nunca fala do marido e de quem desconhecemos a verdadeira dimensão da sua dor e quanto tempo durará o seu desgosto; um encontro com Javier fruto do acaso (?!).

___ A incerteza da duração da relação passageira de Maria e Javier, o desconhecimento se ficarão juntos para sempre ou se tudo vai acabar; o romance de Balzac e a história de Chabert, um vivo que já tinha sido dado como morto; a história interrompida e que nos deixa na espectativa do final; uma conversa entre Diáz-Varela e Ruibérriz  deTorres só ouvida pela metade; a certeza de não voltar mais àquela casa.

___ De volta àquela casa; a ‘história de como tudo aconteceu’, verdadeira ou não, porque o único que a poderia confirmar está morto; a incerteza da própria morte, deixada nas mãos de um mendigo demente, que poderia concretizá-la ou não; Alexandre Dumas, o conde de La Fère e a história de Milady, o “anjo que era um demónio”, que foi morta mas não foi morta;

___ Ruibérriz que aparece a mando de Diáz-Varela ou com verdadeira intenção de conhecer Maria; com cadáveres no cadastro ou não; Javier apaixonado por Luísa mas que, nas palavras de quem o conhece bem, é o tipo de homem que não se apaixona por ninguém; a já não tanto viúva, apaixonada por quem lhe era indiferente. a intenção de desmascarar tudo…ou não.

São poucos os factos verificáveis, nada é concludente, muitas são as possibilidades e a incerteza é a única constante.

Javier Márias deixa-nos à deriva, entre os seus pensamentos e divagações, presos à narrativa de Maria Dolz ___ não Dols nem Dolç. Dolz.

Maria, que não deixa de questionar todas as situações, de nos propor inúmeras possibilidades e também os seus contrários, pois tudo reflecte com uma dúvida sistemática e perspicaz. Enamorada, fala-nos de amor e ódio, e do estado de insegurança de todos os enamorados: malmequer, bem-me-quer, muito. Faz-nos rir, com uma ironia fina, ___ enquanto narra a história de um assassínio cruel, as incertezas perante a morte e as incertezas da vida___ e consegue ainda rir de si própria.

E nunca perdemos o rumo certo ___ I – o encontro com Javier  II – o enamoramento e o aparecimento da dúvida  III – a luta entre a razão e a emoção  IV – o processo de atenuação e um novo amor.

A Jovem Prudente, que “não se mete em nada, não julga ter inimigos e se abstém”, que se interroga a cada momento sobre a verdade e em quem a dúvida se insinua em cada instante, é a bússola que nos deixa inseguros e ao mesmo tempo nos aponta o caminho através do desconhecido.  E conclui que “uma pessoa nunca sabe se o que lhe dizem é verdade, nunca há a certeza de nada que não  venha de nós mesmos”, se formos capazes de encontrar a verdade nas contradições dos nossos sentimentos.




‘A verdade é sempre um matagal’ 

                                                                                                                        Os enamoramentos, Javier  Marías_2011

Diálogo entre Luísa Alday e Javier Diáz-Varela no Asia Gallery  ---  restaurante chinês do Hotel Palace  --- depois de Maria Dolz se ter afastado, na direcção da mesa que oferecia aquela imagem de estrado flamenco.        

 

 

--- Meu querido, que pálido estás. Ficaste com um ar apavorado quando a viste aproximar-se da nossa mesa. 

--- Admiras-te, Luísa?  Não viste a forma determinada como ela se dirigiu a nós, com os olhos em brasa. Parecia decidida a denunciar-me, a arruinar o nosso casamento. De onde apareceu ela, afinal?

--- Há muito que os olhos dela não te largavam. Como quando o defunto e eu tomávamos o pequeno-almoço na Cafeteria da Príncipe de Vergara. Sentava-se num canto a observar-nos, atenta às nossas conversas. Nunca saía antes de nos separarmos, sempre depois dele e antes de mim.

--- É perigosa, esta Maria. Sabe demais.

--- Não te preocupes. Quase dois anos passados, onde iria encontrar provas para te acusar? A atitude dela seria, facilmente, interpretada como inveja e despeito. Mesmo ela tendo percebido que ---durante as cinco horas em que ele se debateu entre a vida e a morte --- ninguém encontrou qualquer metástase  generalizada no organismo ou melanoma metastático--- , como lhe contaste, não conseguiria provar nada. Até o Doutor Secanell está incapaz de dizer seja o que for, pobre homem, agora que piorou da demência senil e já nem consegue falar. Mas enfim, seria sempre a palavra dela contra a tua.

--- Não é bem assim. Não te esqueças que o Canella já andou por aí a falar o que não devia. O Ruibérriz também não gostou de saber --- quando ela o encontrou e conversaram --- que eu lhe tinha contado a história toda, sem o avisar. Sabes, é fácil criar a dúvida em qualquer pessoa.

--- Sim, o encontro com o Ruibérriz em tua casa foi um risco que não deverias ter corrido. A rapariga além de esperta é descarada. Aparecer assim despida à frente dele, logo dele, que não perde uma oportunidade. Mais cedo ou mais tarde iria procurá-la, e mal demorou uma semana. Mas também ele não teria coragem para te incriminar. Mais não faria do que virar as atenções sobre ele próprio. E não esqueças que ele ‘aprendeu’ com aquela velha história do Elvis; deve-te favores.

Encarregaste-o de tratar de tudo, a partir daí nada te pode atingir. Foi ele, por sua vez, que mandou outro comprar o telemóvel para o arrumador de carros e fazer-lhe os telefonemas. O mesmo com a navalha borboleta, de duplo cabo, com que o Canella lhe cravou uma data de navalhadas --- que devia estar sujíssima, aliás, se o falecido não tivesse morrido cozido à navalhada teria morrido da infecção. --- Além disso foi ao Ruibérriz e aos seus blusões de ‘cabedal negro Gestapo’ que o mendigo viu.

Nem ele, nem o terceiro, a ti não te conhecem, nem sequer o teu nome, nem a tua cara. Quando uma pessoa activa uma coisa e a entrega, é também como se a soltasse e se desfizesse dela. A partir daí, nada te pode atingir. E ninguém nunca poderá provar que foi o que foi. Distanciaste o caso de ti e do teu alcance, até já não teres nada a ver com ele. Sossega.         

--- A Jovem Prudente. Não conseguiu denunciar-me, continua apaixonada por mim.

--- Querido Javier, foi de génio teres-te envolvido numa relação superficial com ela. Teres-lhe dado a ler Balzac, para que a leitura a preparasse para o que estava para vir. Para que percebesse por si própria que os mortos estão bem assim, e nunca devem voltar. Delirante!, aquele erro de tradução em que trocaste goûts (gostos) por gouttes (gotas). Será que ela não sabe mesmo francês?

Sabes, aquela fixação dela em mim e no Miguel --- o Casal Perfeito ---, aquela paixão pelo amor, poderiam pô-la com ideias de investigar tudo. Penso na maneira como se insinuou junto de mim, na esplanada da cafetaria, e me fez convidá-la para vir a nossa casa. Apaixonada foi mais fácil afastá-la do homicídio. Percebi como ela se transtornou intimamente quando te viu. Assim, seria muito mais fácil acusá-la de ciúmes, caso fosse preciso.

--- Também achei de génio o sangue-frio com que te puseste logo de pé, mal se aproximou, e lhe deste dois beijos. Travaste, de repente, qualquer possível intenção que tivesse de perturbar o nosso bem-estar; de arruinar a minha vida, e por isso também a tua e tudo o que conseguimos. Ainda a convidaste a sentar. Tu, de verdade, nunca tiveste medo?

--- Eu?! E que fiz eu?

Simplesmente desejei poder ficar contigo para sempre e sem entraves. Talvez, em algum momento, tenha sugerido como seria bom para nós se alguma doença fatal o levasse. Mas nunca exprimi outros desejos. Tu próprio percebeste como seríamos mais felizes se o Miguel desaparecesse, deixando-me com os assuntos financeiros em ordem e com campo livre contigo.

Eu nunca te ordenei a morte, nunca te especifiquei nem como, nem quando, nem onde. Como poderia ser responsável por ela? Pelo contrário, sou uma vítima aos olhos do mundo e também aos meus… Só esperei que fizesses cumprir os meus sonhos e que delineasses tudo. Foste quase perfeito --- a sério que te inspiraste no assalto ao Professor Rico?

Eu nunca sujei as mãos, nem a língua, meu querido; com nada tive contacto. O que posso ter a temer?

--- …

--- Afinal, tratou-se apenas de um assassínio. Só isso.

 

 

                                 

                                                                                                                    

 

 

 

 

Manuela Pereira                                                                                                  Clube Leitura_00/ 10/ 2023

 

    O Universo Editorial Espanhol


por Delfina Rodrigues

 

Em jeito de preâmbulo, um olhar em diagonal pelas pequenas maledicências e diatribes entre escritores.

 “Nadie es tan necio que admire a Miguel Cervantes”

  Assim falava Lope de Vega referindo-se ao aclamado escritor espanhol, que depreciativamente apelidava de “o manco de Lepanto”1

 Mais perto de nós, no que ao tempo e espaço diz respeito, António Lobo Antunes, o Nobel adiado, diz de si próprio e de Saramago, seu alegado rival de estimação: “Não vejo ninguém que escreva como eu …”; “Saramago é uma merda … Se me quiserem comparar a alguém ponham lá o Antero, o Herculano, ponham assim um escritor. Saramago não me agrada como escritor, mas claro que não é uma merda …”, acrescenta, temperando o destempero inicial. Entre um e outro, séculos de pérolas semelhantes alimentam e ensombram as relações entre oficiantes do mesmo ofício, de latitudes e longitudes diferentes, assim dessacralizando a visão idealizada do escritor e do artista tocado pela transcendência e imune aos vícios humanos, que tão frequentemente nos é inculcada pela própria literatura:

 “Ser poeta é ser mais alto é ser maior do que os homens”, na voz de Florbela Espanca.

 “Le Poète est semblable au prince / des nuages / Qui hante la tempête st se rit de l’archer”, na voz de Beaudelaire, entre outros.

 Estando em foco a literatura de língua espanhola, li, a propósito, “7 piques entre escritores para dessacralizar la literatura”, por Alberto Hernando, e o ensaio “Rivalidades y celos literários”3, pródigos em exemplos deste tipo.

  Não escapam Louis Aragón e Paul Eluard, Garcia Lorca e Rafael Alberti, Faulkner e Hemingway, Sartre e Camus,Vargas Losa e Garcia Marquez, Kerouac, de quem se diz que não é um escritor, mas sim um mecanógrafo, e o próprio Javier Mariás “bajó al barro para decir que la concecion del Nobel de Literatura al gallego le parecia uma noticia nefasta, porque significaba la entronización de la “novela más folklórica, castiza y rancia”4, referindo-se, obviamente, a José Cela.

  Aliás, essa posição crítica em relação aos galardoados do Nobel e ao Nobel em si, e a outros prémios, não é única. Também Lobo Antunes, no texto citado, afirmava displicentemente “quero que o Nobel se foda” e Carlos Drumond de Andrade afirmou que “as academias coroam com igual zelo o talento e a ausência dele”5.

 Em síntese, e reportando-me ao ensaio citado, “Inveja, egoísmo, vaidade, insegurança, as rivalidades e ciúmes no mundo artístico existiram sempre desde que o mundo é mundo”

 

 II 

 Também “Os Enamoramentos” nos confronta com uma visão disfórica do universo artístico, neste caso o mundo editorial. Não sendo um tema dominante na obra, é aflorado. na medida em que a personagem / narradora trabalha numa editora onde convive diariamente com escritores. O Universo que nos oferece não contradiz, antes reforça, o que deduzimos e inferimos da abordagem anterior, universo que, seguramente, o autor conhece muito bem. Assim, serve-se da voz narrativa para nos facultar a sua visão. Mordaz.

 Maria Dolz, a narradora, vive uma vida pautada por hábitos rotineiros, entre os quais o quotidiano pequeno almoço numa pastelaria perto do local de trabalho e o encontro “platónico” com um casal que observa à distância e cuja súbita e inesperada ausência introduz o desequilíbrio que faz o romance acontecer. Na monotonia parda dos seus dias, descreve esse hábito como: “o breve e modesto espectáculo que me punha de bom humor antes de entrar na editora e brigar com o meu megalómano chefe e os seus chatos autores”. Assim, sem mais, um verbo e dois adjectivos de valor pejorativo – brigar, megalómano e chatos – introduzem-nos no seu mundo profissional e definem um perfil de vida pouco estimulante, para nosso espanto, com alguma tendência para a mitificação dos circuitos da actividade criativa.

Passa então de espectadora passiva para personagem relevante, num interregno de dois anos – um encaixe na sua vida sem história - subsequentes à súbita ausência do casal e conhecimento do assassinato do homem, que alimenta a narrativa e as reflexões que a entretecem. Se consideramos relevante a sua convivência com os livros e a sua condição de leitora – lembremo-nos que há no romance evocações literárias diversas, que vão de Shakespeare a Alexandre Dumas e Balzac em diálogos que sustenta – não parece relevante para a economia da narrativa a imersão, durante um capítulo, nesse microcosmos povoado de autores e editores. Dir-se-ia ditada pelo propósito do autor de no-lo revelar. Nesse capítulo nos deteremos, com especial atenção à adjectivação e aos verbos utilizados.

 

 Dêmos voz a Maria Dolz:

 

 “Depois ausentei-me eu durante uma semana, enviada que fui pelo meu chefe a uma estúpida Feira do livro estrangeira para fazer relações públicas e sobretudo de parva em nome dele. (p. 23)

 

“Sentia mais preguiça para enfrentar as minhas tarefas, ver o meu chefe emproar-se e receber as pesadíssimas chamadas ou visitas dos escritores” (p.27)

 “… os mais presunçosos e exigentes e, por outro, os mais chatos e desorientados, os que viviam sós, os infelizes, ao que procuravam agradar de qualquer maneira, os que marcavam o nosso número de telefone para começar o dia e comunicar a alguém que ainda existiam, servindo-se de qualquer pretexto.” (p. 27)

 

“São uma gente esquisita na sua maioria” (p.27)

 

“… neste negócio há dinheiro, ao contrário do que se diz”. (p.27)

 

E ilustra algumas idiossincrasias que adensam o retrato: 

 

- de Cortezo, “presumido acerca dos seus escritos, que a crítica louvava e que a mim me pareciam tolices” (p. 29), que a consultava sobre a forma de se vestir;

 - de Gary Fontina, que procurava obter da editora uma série de favores domésticos, entre os quais arranjar um pintor ou levar um sobretudo à lavandaria, escudado no ascendente que construíra sobre o chefe, ao autoproclamar-se como um iminente galardoado com o Nobel.

 Afirmava que os seus “espiões nórdicos” lhe disseram que está na forja para este ano ou para o próximo e que já decorara em sueco o que ia dizer ao rei Carlos Gustavo na cerimónia, alimentando com esta ficção a cupidez do editor e tornando muito difícil contrariá-lo. Só com uma argumentação inteligente e astuciosa Maria Dolz se liberta do seu pedido de lhe arranjar uns gramas de coca para dar mais realidade e realismo à obra em curso. Como tantos outros, dizia, era chupista, sovina e sem orgulho e “Armava em anticonvencional e transcontemporâneo, mas no fundo era como Zola ou qualquer outro” (p.36). Mas ela sabia que Eugeni, o chefe, “levava demasiado a sério o seu autor mais presunçoso, é inconcebível como este tipo de gente convence muitos do seu quilate, é um fenómeno universal e enigmático” que me fez evocar Virgílio Ferreira: “Admiram-se às vezes certas pessoas de que um autor medíocre seja triunfador do seu tempo. Mas o autor medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade de melhor distribuído pelo mundo”.

 Reencontramos nova referência a Gary Fontina mais tarde, a acentuar os traços da personagem de que anda distraída porque imersa na sua própria história, quando ele acompanha à editora um outro semijovem que “tinha recomendado como prémio de adulação que ele lhe prodigalizava no seu blogue e na revista literária especializada que dirigia, isto é, pretensiosa e pode-se dizer marginal”.

 No fim, restabelecido novo equilíbrio, encerrado este capítulo da sua vida, Maria Dolz regressa “à parvoíce do mundo editorial” (p. 380). Deixa-nos a imagem de um universo onde gravitam autores inflamados, que pavoneiam egos, desfilam poses, exalam presunção, ostentam caprichos, enfim, “gente esquisita”, parafraseando a narradora.

 Ou não? Voltando a Virgílio Ferreira, poderemos considerar que “A vaidade do artista é uma defesa contra os que o negam”?

 

Atentos ao perigo das generalizações, admiremos a obra, dessacralizemos o homem que a criou.

 

 

 

 

 

 

 

Os Enamoramentos

Javier Marías

 

Por Ana Teixeira

 

A problemática da eutanásia não é um tema central no livro “Os enamoramentos” de Javier Marías. Foi todavia a parte que mais me impressionou embora me tenha tocado profundamente a forma como o autor  explora os temas do amor, enamoramento e o seu contrário, a amizade e o seu oposto, a morte, a moralidade e a metafísica através , essencialmente dos pensamentos da personagem María Dolz.  

A questão da eutanásia não é diretamente abordada. Não há uma discussão explícita sobre a possibilidade de utilizá-la como uma opção para a personagem Miguel e Javier Marías não explora a complexidade deste tema nem as contradições que do mesmo decorre. Preferiu ir para a banalidade do mal ao por

 

Ao longo da narrativa, Javier Marias explora o tema da morte, o reflexo da mesma na vida dos que sobrevivem , o amor e o destino numa abordagem filosófica e existencial. O autor questiona as motivações e os limites das relações humanas, mas não entra especificamente no campo da eutanásia ou aborda a escolha do personagem Miguel.

Apesar da eutanásia me parecer surgir no livro como um acto de liberdade que deve ser concedida a cada um, não se podendo impedir alguém, que está em grande sofrimento, de exercer o seu direito de escolha e, no caso presente, de escolha da morte. Contudo, essa mesma escolha não foi explorada pelo autor que em outras áreas dos sentimentos humanos explorou de forma intensa e filosófica.

A mim pareceu-me que associou esta autonomia e liberdade humana não ao medo mas aos reflexos que a mesma teria na sua família em especial na mulher Luísa. Assim levantou o problema de esta autonomia podendo ser garantida a cada um esteja ela própria também condicionada pela comunidade próxima condicionando e podendo impedir alguém, que está em grande sofrimento, de exercer o seu direito de escolha da morte.

Cada um de nós, com efeito, não somos individualidades que coexistem na total indiferença relativamente às opções dos outros com que nos relacionamos e amamos, mesmo quando o sofrimento se sobrepõe a qualquer outro sentimento.

A Eutanásia foi aprovada em Espanha em 18 de março de 2021, para entrara em vigor em 25 de Junho desse ano. Desde essa data até ao momento actual já praticaram a Eutanásia em Espanha 180 pessoas.

A Espanha foi o quarto país europeu a descriminalizar a eutanásia, depois de Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo.  Em Portugal a lei que descriminaliza a eutanásia foi promulgada em 16 de Maio deste ano.

Ana Teixeira


 Pedaço do meu sofrimento

por Elsa Viegas

        Muito me custou iniciar este pequeno texto sobre Os Enamoramentos,

romance de Javier Marias com 1ª edição em português em Outubro de

2012 altura em que o li pela 1ª vez não tendo então ficado deveras

impressionada.

        No entanto, um dos temas da recente leitura que me suscitou alguma

curiosidade inicia se com um diálogo, a sós, entre Diaz Varela e a

narradora Maria Dolz; nele, Diaz Varela reflecte em voz alta sobre a ideia

dos sentimentos e comportamentos mesquinhos e egoístas do ser

humano que frequentemente surdem perante o objecto de cobiça; Diaz

Varela tenta aí menorizar o seu próprio comportamento; integrando-o

num comportamento mais vasto do ser humano e contando a propósito o

conteúdo do romance de Balzac, O Coronel Chabert.

        Neste romance são descritos os sentimentos da viúva do Coronel, Mme

Chabert, no período da sua viuvez; sentimentos de tristeza mágoa e

solidão pela perda do marido julgado morto, e, paradoxalmente, o

aparecimento de sentimentos de desgosto, ansiedade e receio quando o

marido, em tempos amado, regressa. Esta incómoda e inesperada

situação acarretaria como consequência a reviravolta na actual vida

familiar e financeira/social da antiga Mme Chabert. Agora, Mme. Ferraud

não pretende voltar a um passado tanto tempo outrora ansiado.


        Neste diálogo, Diaz Varela pretende mostrar a Maria Dolz que os

sentimentos humanos são perecíveis e mudam consoante as

circunstâncias de vida. Questiona- se se o amor de Luísa renasceria pelo

seu marido mas, perante o velado receio da possibilidade do regresso do

seu amigo morto, tranquiliza se com “a evidência de que os mortos não

devem regressar porque os vivos já não os querem”.

        “Há que matar bem os mortos”, dizia Ortega e Gasset.


Elsa Viegas