domingo, 20 de novembro de 2022

O Som e a Fúria

 

                                       William Faulkner,  O Som e a Fúria

                                                            Água e sombras


por Maria José Marques

 

Ler O Som e a Fúria foi para mim um desafio e tanto! Se ao menos os editores tivessem seguido a sugestão do autor e imprimissem em cores diferenciadas os diversos tempos da narrativa parte do esforço do leitor para arrumar, ordenar a sequência do que é narrado estaria facilitado mas não resultaria na mesma experiência, seguramente.

As quatro secções em que está dividida a obra sobrepõem-se de muitas maneiras mas, no essencial contam a mesma história . Candace , Caddy, que estando no centro de toda a história na verdade não chega a aparecer nela .Ela é reconstruída a partir das memórias dos seus três irmãos ,e cada um a recorda à sua maneira.

Na primeira secção, a de Benjy, a água aparece como um leitmotiv associado a Caddy. Brincando no riacho em criança Caddy é inocente mas já infringe as regras molhando as roupas e muito mais quando se deixa enlamear e os irmãos lhe apontam os culotes sujos sem se intimidar com a ideia do consequente castigo. É o prenúncio da promiscuidade de Caddy. Mais tarde, quando Benjy fica perturbado ao cheirar o perfume da irmã pela primeira vez, e ela , virgem ainda, lava o perfume, do mesmo modo que lava a boca com sabão quando Benjy a apanha no baloiço com Charlie mesmo sabendo que não há água que a purifique. Nas memórias de Benjy a ligação carinhosa que tinha com Caddy  é reavivada pela imagem da filha dela, Miss Quentin, que, ao contrário da mãe, o repudia.

Na segunda secção, é Quentin que narra as suas memórias. Quentin orgulha-se do passado mais ou menos nobre da família, apesar de precisarem de vender terras para financiar a sua estadia em Harvard, tal era o declínio económico, mas parece ser o único que dá valor à honra, à justiça, ao amor. Ele ama a irmã, talvez excessivamente, e a sua obsessão com a virgindade dela representa o desejo de encontrar algo de puro e intacto. Embora a família o aconselhe a esquecer a desonra de Caddy, o seu casamento com um banqueiro estando grávida de outro homem,  Quentin não quer esquecer porque isso tornaria a sua dor, o seu desgosto, uma coisa sem sentido e quando já não há nada para dar um propósito à vida, o suicídio é o único caminho. Os preparativos para o suicídio, depois de escrever cartas, comprar ferros de engomar e simbolicamente cortar com o passado partindo o relógio herdado do avô, levam Quentin até Charles River Bridge de onde contempla a sua sombra na superfície da água. Tanto na secção de Benjy como na de Quentin ele se mostra sensível à presença de sombras que lembram de forma subtil a passagem do tempo à medida que mudam durante o dia, e têm associada a ideia de que a própria família Compson é uma sombra do que foi.

             “A sombra da ponte, as grades da balaustrada e a minha sombra estendida sobre a água, que eu tinha sabido aliciar tão bem que nunca mais me abandonara”

            “ Saltei para cima da minha sombra”

 A água é o destino que apaga, apazigua e purifica e guardará sua sombra.

  

 

 

Maria José Marques

Novembro, 2022




Os negros de “O Som e a Fúria”


por Delfina Rodrigues

 

Opto pela abordagem do tema proposto a partir da personagem Dilsey, a criada negra.

Referida em todos os capítulos, no fluxo natural do pensamento das diferentes vozes narrativas e no discurso direto das personagens, ela torna-se, no último capítulo, o foco do único narrador heterodiegético da obra, mais próximo, porventura, da voz do autor.

Atravessa, assim, todo o tempo narrativo e todo o tempo da história, ela própria afirmando, já próximo do fim, com uma carga ominosa que atravessa alguns momentos da narrativa, que viu o princípio e o fim.” Vi o começo e o fim”, afirma (p.267)[1].

Ela é a matriarca de uma família de criados negros que servem os Compson, família da aristocracia sulista dos Estados Unidos em inexorável degradação e trágico declínio e, simultaneamente, uma espécie de alma mater da própria família que serve. Ela é, em 1928, diria, suporte de vida dos Compson: suporte material/funcional, emotivo, afectivo.

Sendo figura omnipresente ao longo da obra, em movimento perpétuo — cozinha, serve as refeições, enche sacos de água quente, conforta, deita as crianças, sobe escadas, desce escadas, aconchega, acolhe, mima, admoesta, censura, opina — é na última parte do livro, no dia de Páscoa de 1928, que ganha uma centralidade nova. A imagem vivifica-se, vemo-la assomar à porta do casebre, a avaliar o estado do tempo, antes de iniciar as tarefas e ir à igreja. Surge descrita na sua indumentária, tão esvaída e esfiapada quanto a figura: ergue ”para o ar o rosto milenário e encovado e uma mão descarnada de palma mole como a barriga de um peixe…”; “o vestido caia-lhe…sobre os peitos descaídos”; ” Outrora de fartas carnes, o seu esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico, como se tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força…”

Mais tarde, já na igreja: “Dilsey estava sentada muito hirta com a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas lágrimas rolavam-lhe pelas faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos”.

Também o terreno em torno do casebre que habitava era ”pelado”, ”coberto de uma espécie de pátina do pisar de gerações de pés descalços”.

Esta era a Dilsey que já não subia as escadas, antes se” arrastava “pelas escadas acima, ou descia a escada “com uma lentidão dolorosa e aterradora” (p.242), tão sujeita à erosão do tempo quanto tudo o que a rodeava, mas sem o correspondente direito ao descanso, já que, como afirma, os brancos ficam cansados por qualquer coisa, enquanto ela continuava a fazer todo o trabalho.

Todavia, não se lhe adivinha hostilidade rácica, antes aceitação inelutável de uma condição herdada, que não discute.

Apesar dos anos de convívio estreito e mesmo do acesso silencioso a segredos da família, Dilsey, Roskus, Versh, Fronny, TP e Luster não deixam de ser personagens do background e de downstairs, espaços que ultrapassam apenas no estrito cumprimento das suas tarefas.

As relações são naturalmente marcadas pelos diferentes estatutos, apesar das censuras, conselhos, quase ordens que Dilsey se permite, mesmo in presentiae, ciente de que de si depende a organização do caos que progressivamente se instala à sua volta.

É, contudo, perceptível a imagem que tinha da família que servia: “Pois sempre te digo uma coisa, negrinho duma figa, tens tanta ruindade dos Compson nesse corpo como qualquer deles” (p.248); “O menino é um homem muito duro, Jason, s’é que chega a ser um homem-diz ela-Dou graças ò Sinhô por me ter dado mais coração qu’a si, mesmo qu’o meu seja negro.”

 A alteridade, o racismo, a dualidade do mundo branco e do mundo negro e diferentes cosmovisões são expostas em diversos momentos da obra e na voz de diferentes personagens.


Não é possível desligar o livro do seu contexto histórico. Sublinhe-se que a abolição da escravatura nos EUA era relativamente recente e que a lei não extingue, per se, as suas raízes mais profundas.

Deixemos o texto falar:

“…procurar os 25 cêntimos antes qu’os negros os encontrem” —7 de abril

Oh-disse Caddy - Isso é os negros. Os brancos não fazem prantos” (p.37)

Sempre gostava de sabê porquê - disse a Fronny. Os brancos também morrem. A sua avó tá tão morta como qualquer negra pode tá, acho eu” (p37)

Onde é que arranjaste 25 cêntimos, rapaz. Nos bolsos de algum branco quando ele não tava a ver.” (p.21)

O dinheiro dos negros é tão bom como o dos brancos, acho eu” (p.21)

Os brancos dão dinheiro aos negros porque sabem qu’o apanham de volta outra vez mal aparece um branco a tocá c’uma banda, e depois os negros têm de ir trabalhá mais para arranjarem mais dinheiro “(p.21)

Que tens tu contra os brancos.

Não tenho nada contra eles. Eu sigo o meu caminho e os brancos que sigam o deles

Quando as pessoas se comportam como pretos” (p.168)

 

Continuando:

Foram andando. Pela rua tranquila, os brancos, em grupos resplandecentes, dirigiam-se para a igreja…” (p.260)

“E ela: eu sei quais são os que falam-disse Dilsey-Escumalha branca. Esses é que falam. Acham que ele não serve pa entrá na igreja dos brancos, mas qu’é bom de mais pa entrá na dos negros. Ninguém qué sabê disso, só os brancos.” (p.260)

“…e as crianças, com roupas compradas aos brancos em 2ª mão…”

Quando…parecia um branco” (p.263)

Nem notaram que a entoação e a pronúncia se haviam tornado negras…” (p.265)

Não por acaso, presuma-se, as afirmações mais racistas encontram-se na voz da personagem mais odiável da obra — o filho Jason:

O que eu lhes digo é Já a minha família era dona de muitos escravos e vocês não passavam de uns reles comerciantes e lavradorzecos de pedaços de terra para quem nem um negro olharia duas vezes” (p.217)

É o que eu digo, o lugar deles é no campo, a trabalharem do nascer ao pôr do sol. Não suportam nem a prosperidade nem o trabalho leve. É deixá-los privar com os brancos e já não valem nem o trabalho de os matarmos… (p.227)

Quando as pessoas se comportam como pretos, seja lá quem for, a única coisa a fazer é trata-los como pretos”.

E são recorrentes as referências aos negros, seis negros, que tem em casa para sustentar, como se de um fardo se tratasse.

A atmosfera do tempo, no que a esta questão diz respeito, é captável também na voz de Quentin, o mais sensível e inteligente dos filhos, em 1910:

Não o encontrei em lado nenhum. Mas também nunca vi um funcionário preto que fosse fácil de encontrar quando precisamos dele, e ainda mais se vive dos rendimentos,” (p.81)

O único lugar vago era ao lado dum negro…Eu costumava pensar que era dever de todo o sulista mostrar sempre consideração pelos negros. Achava que era isso o que os do Norte esperavam deles” (p.84)

Foi nessa altura que percebi que ser-se negro não é tanto o ser-se uma pessoa, é mais um comportamento, uma espécie de reflexo dos brancos com quem convivem

A Dilsey dizia que era por a mãe ter vergonha dele. É assim que eles entram na vida dos brancos sem mais nem menos, infiltrações negras…” (p.159)

 

Concluo, afirmando não ser possível ler “O Som e a Fúria” sem valorizar a dimensão racial, que emerge, aqui e ali, em diferentes tons e contextos. As relações são estabelecidas com base em persistentes pressupostos de alegada supremacia branca, mas também de afirmação da identidade negra, as duas irmanadas, afinal, na sua indesmentida e sublinhada finitude, na voz de Fronny:

 Os brancos também morrem. A sua avó tá tão morta como qualquer negra pode tá

Porto, 8 de novembro de 2022

Delfina Rodrigues

 

P.S. Quando recebeu o prémio Nobel, em 1949, no seu discurso Faulkner terá afirmado: “Acredito que o homem não vai apenas resistir. Ele vai sobreviver. É imortal porque tem uma alma, um espírito capaz de sentir compaixão”[i][2]

Encarnará Dilsey, para o autor, esse símbolo de sobrevivência e de humanidade, assim se explicando o relevo que lhe é dado no último capítulo da obra?

 



[1] Toas as referências a páginas se referem a edição das Publicações D. Quixote, 10.ª edição de fevereiro de 2018.

 

[2] Youtube: Literatura Fundamental 55 – O Som e a Fúria - Munira Mutran



 

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