domingo, 20 de novembro de 2022

O Som e a Fúria

 


 

O discurso de Benjy 


por Margarida Mouta



 

A abrir a narrativa, e ao longo das primeiras 80 páginas, ouvimos a voz de Benjy, o louco da família, a produzir um discurso linear, fragmentado e incompreensível, que espelha o seu desconjuntado espaço interior. É guiados por esta voz que penetramos na casa dos Compson, que o mesmo é dizer, no seio de um velho mundo em decadência, o de uma família aristocrática em declínio, vivendo no Sul dos Estados Unidos nas primeiras duas décadas do século XX. Será através da voz e do olhar deste homem de trinta e três anos cuja idade mental não ultrapassa os três, que nos aperceberemos de uma parte desse mundo e das teias que se tecem entre as personagens que o habitam.

Todavia, entrar nesse mundo guiados pela fala de Benjy não será tarefa fácil. Mesmo cientes, à partida, de que é intenção deliberada do Autor captar o fluxo da consciência, o pré-aviso não basta e as dificuldades surgirão de imediato. O artifício estilístico é por demais artificioso e leva-nos a tropeçar inúmeras vezes no pensamento irregular da personagem, no seu articulado confuso, fragmentário, incongruente e inconclusivo, para só citar alguns dos adjetivos que nos ocorrem quando lemos o texto. Quantas vezes voltei atrás? Quantas vezes dei comigo a ler em voz alta a ver se entendia? Percebi depois que não estava sozinha. Próximos de mim, havia alguns desabafos que revelavam o desconforto da leitura e não tão próximas nem no tempo nem no espaço, as vozes de todos aqueles que ousaram um dia confessar ao autor que não entendiam plenamente a sua escrita, mesmo depois de a lerem duas ou três vezes, todos esses, a quem Faulkner se limitava a responder: “Leiam uma quarta vez”[1].


Não descoroçoei. Fui resiliente, como agora se diz, e, seguindo o conselho do autor e as diretivas da nossa mestra, insisti na leitura. A dada altura, dei comigo a encontrar no discurso do Benjy uma poeticidade que me surpreendeu. Momentos houve em que me veio à cabeça o interseccionismo presente nos poemas de Fernando Pessoa, tal a correspondência que encontrava entre o eu fragmentado de um e de outro, entre os paradoxos visuais de um e de outro e sobretudo entre o cruzamento de planos posto em prática no discurso de ambos. Uma conexão talvez absurda, mas no meu entender legítima, pois de poetas e loucos todos temos um pouco. E se o primeiro, sendo poeta, tinha muito de louco, o segundo, sendo louco, também tinha inquestionavelmente, a sua quota-parte de poeta.  

Passei a andar com a personagem na cabeça o que em mim é um sinal de adesão ao texto. Apesar desta aproximação, a ideia de escrever sobre algo que continuava a ser inextricável surgia-me como um berbicacho insolúvel ou, pelo menos, de resolução duvidosa. Se está a ser difícil ler este discurso, mais difícil será analisá-lo – dizia de mim para mim. Se calhar, talvez não haja mesmo forma de chegar à compreensão. Ao fim e ao cabo, aceitar sem reservas a insanidade de um louco é sinal de sanidade mental. E se em vez de buscar o entendimento, me dispusesse a ver neste arrazoado de palavras apenas o espelho que me dá livre acesso ao espírito conturbado de um louco no remoinho das sensações que viveu num determinado instante de um determinado dia, o 7 de Abril de 1928? Mas se assim fosse, porque insistiria então o autor no conselho dado aos leitores frustrados para que não desistissem dos esforços até encontrarem a chave para o entendimento?[2]

Foi então que travei conhecimento, via net, com um artigo publicado por uma senhora chamada Lucie Tangy[3], uma análise a meu ver muitíssimo interessante que veio projetar uma vigorante luz sobre o texto só igualável à das lâmpadas LED. Na realidade, as explicações que encontrei neste artigo revelaram-se, tal como as lâmpadas LED, energeticamente eficientes. Foram preciosas pelo empurrão que deram à concretização deste textinho que agora vos leio. Devo-lhes muito.

Segundo o artigo, a estranheza advém sobretudo da sobreposição no discurso de Benjy de duas insularidades: a do monólogo interior e a do seu autismo. No entender de Tangy, a voz de abertura de “O Som e a Fúria” desconcerta o leitor pelo efeito conjunto causado por uma fala papagueada e nominativa e pelo fluxo infraconceptual[4] que leva o leitor a confrontar-se com um espaço hermético.

Mas, no entender da autora, se inicialmente o discurso insular de Benjy nos remete para a imagem de um espelho quebrado, de tal modo fragmentado que se torna uma afronta para o sentido -- a própria imagem da incomunicabilidade entre o louco e a as personagens que o rodeiam (entre as quais se encontra o leitor) – esse discurso irá afirmar-se, na realidade, como um espelho onde se reconstituem as unidades de sentido que permitirão ao leitor a reconstrução do discurso através da leitura. Sendo assim, o distúrbio mental da personagem justificaria a criação de um espaço literário específico, uma espécie de mimeses linguística de uma infralíngua[5] que esconde uma espécie de paradoxo, uma vez que o autor nos leva a aderir a uma convenção literária (relato de 1ª pessoa) que logo a seguir será posta em causa pela existência de um narrador louco (Tangy considera-o autista), estatuto que não admite o discurso autorreflexivo do eu.

Por outro lado, interrogar a permeabilidade do monólogo interior de Benjy enquanto ser portador de uma profunda deficiência mental, permite-nos refletir sobre a capacidade desta “ilha textual[6] de criar um espaço de comunicação com o leitor.

Seduzida pelo discurso esclarecedor de Lucie Tangy, decidi então penetrar nesse espaço de comunicação, fazendo uma análise do discurso de Benjy. E isto, tão só, tão só, com o modestíssimo propósito de tentar desvendar no texto (e nas suas margens) algo que pudesse, em certa medida, explicar as idiossincrasias deste narrador-personagem com que Faulkner abre o jogo.

Para isso, elegi quatro tópicos que me pareceram susceptíveis de fazer descer alguma luz tanto sobre a personagem como sobre o artifício de linguagem escolhido por W. Faulkner para caracterizar a voz que dá início ao romance. Desta forma, decidi dar uma atenção especial ao léxico, à construção sintáctica, aos efeitos sinestésicos e ao modo como é concebida no discurso a percepção do espaço e do tempo.   

 

1.        O léxico

“Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira e eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.” p. 19

Estamos aqui perante um discurso essencialmente atomista, sem espessura, que privilegia a literalidade, reservando lugar de destaque aos nomes. Nesta sequência inicial é visível a repetição do vocábulo “cerca” (5x), uma repetição que permite avaliar o caráter obsessivo do narrador e simultaneamente a sua incapacidade de variação no eixo paradigmático.[7] [Veja-se também: “um dava tacadas e o outro dava tacadas” em vez da síntese que seria expectável, “ambos davam tacadas.”]. Quanto à adjetivação, o único adjetivo presente, “encaracoladas” remete para uma imagética próxima dos sentidos que não indicia nenhuma apreciação crítica. Importa também referir que o discurso atribuído às outras personagens que surge no tecido monológico de Benjy se limita a uma reprodução em discurso direto, sem qualquer filtro ou mediação. Benjy apresenta-se aos olhos do leitor como um mero receptáculo do mundo exterior. O discurso dos outros é mais um elemento exterior percepcionado pelos sentidos.

 

2.        A sintaxe

Encontramos no discurso de Benjy o predomínio da parataxe, frases de estrutura simples reveladoras de mera justaposição ou simultaneidade temporal, facto que não é de estranhar se aceitarmos a sua notória incapacidade para relacionar objetos, factos e ações entre si ou para estabelecer mecanismos de causa/efeito entre as personagens e as suas ações:

Fomos para a biblioteca. O Luster acendeu a luz. As janelas ficaram pretas e o sítio alto e escuro da parede veio direito a mim e eu avancei e toquei-lhe.” [orações independentes; orações coordenadas].

“O Quentin agarrou-me por um braço e fomos para o estábulo. Mas o estábulo não estava lá e tivemos de esperar que ele voltasse. Não o vi chegar. Veio por detrás de nós e o Quentin sentou-me na manjedoura das vacas. Agarrei-me a ela. Mas ela também ia a fugir e eu agarrado a ela.”[8]

Pelos mesmos motivos, não encontramos frases interrogativas ou quaisquer estruturas de caráter mais complexo (como a subordinação) que apontem para a possibilidade de conceptualizar hipóteses ou sintetizar as perceções que tem do real.  Esta construção demasiado simples, próxima do discurso infantil, pode indiciar a inocência, mas pode remeter também para as características do discurso do alienado mental.

 

3.        As Sinestesias

Cedo nos apercebemos que em Benjy, a enfermidade é compensada pela acuidade sensorial. O seu único modo de apreender o real é através do uso dos sentidos. Daí que o seu discurso se apresente como uma verdadeira “coreografia dos sentidos”[9].  Os efeitos sinestésicos pontuam o discurso, deixando nele a sua marca singular:

Ela cheirava como as árvores. No canto estava escuro, mas eu via a janela. Deixei-me lá ficar agachado com o chinelo na mão. Não o conseguia ver, mas as minhas mãos viam-no, e ouvia a noite a aproximar-se, e as minhas mãos viam o chinelo, mas eu não me via, mas as minhas mãos viam o chinelo, e eu estava ali agachado a ouvir a noite chegar. p. 79.

Associadas ou atuando de forma isolada, as sensações olfactivas, visuais, tácteis e auditivas presentes no discurso de Benjy permitem-nos dar forma a momentos cruciais da narrativa ou até mesmo perscrutar as suas fragilidades. Logo no parágrafo inicial, a sensação auditiva (o som da palavra caddie proferida pelos jogadores) dá-nos de imediato a possibilidade de perceber a forte ligação afetiva existente entre Benjy e a irmã.  Através do olfacto (o cheiro de Caddy) entendemos o modo como o narrador a identifica com o mundo natural (ela cheirava como as árvores) ou como reconhece o momento em que ela tem relações sexuais pela primeira vez. A sensação táctil contribui de forma decisiva para a tomada de consciência da relação intensa que une os dois irmãos. É através do seu abraço (na infância) ou do toque do seu chinelo (na idade adulta) que nos apercebemos do efeito calmante que Caddy exerce sobre Benjy.

 

4.      A percepção do espaço e do tempo

Da mesma maneira que a percepção do real surge muitas vezes associada ao irreal imaginário sem que haja um “como se” que autorize a interpenetração dos dois mundos, também as categorias de espaço e tempo surgem embrincadas de forma surreal. Reduzido àquilo que é susceptível de chamar a sua atenção, Benjy constrói para si um mundo onde se pode orientar e movimentar, percepcionando o passado e presente num mesmo plano. Isto é particularmente visível no modo como mistura as memórias da sua infância com o que está a vivenciar no presente, o que o leva, por vezes, a bruscos e dilatados saltos no espaço e no tempo, que confundem o leitor:

 – ‘Pere aí – disse o Luster. – Lá ficou outra vez preso no prego. Será que não é capaz de passa por aqui sem ficá preso nesse prego. A Caddy soltou-me e passámos de gatas para o outro lado. O tio Maury disse para não deixarmos que ninguém nos visse e por isso é melhor irmos agachados. Agacha-te Benjy (…) p. 20. Os verbos lembrar / recordar / evocar (porque verbos de pensamento) estão, naturalmente, ausentes do discurso.

Pensando bem, não será também, esta ausência de ancoragem num tempo e num espaço definidos (ausência de referência deíctica), este constante oscilar entre o passado da narrativa e a ação presentificada nos diálogos, um reflexo do próprio corpo de Benjy, sempre em movimento, sempre a brincar com as flores, ou a correr pela cerca, ou, mesmo quando parado, em luta com as “formas brilhantes” que não param de rodopiar?

 Tentei tirá-las da minha cara, mas as formas brilhantes começaram outra vez a passar. Elas iam pela encosta acima, para onde ela caia para o outro lado, e eu tentei gritar. Mas quando metia ar, não conseguia fazê-lo sair para gritar, e tentava a todo o custo não cair da colina, mas caí da colina para o meio das formas brilhantes que não paravam de rodopiar.” p. 62.

Termino este textinho certa de que muito ficou por dizer. Principalmente no tocante ao segundo eixo explorado no artigo que me inspirou: o do convite à reconstrução do romance que deverá ser levada a cabo pelo leitor em simultâneo com a experiência de desconstrução operada pela linguagem de Benjy. Tarefa que pressupõe, obviamente, uma leitura no plano simbólico e que exigirá da minha parte o tal esforço de co-criação que a obra convoca. 

Confesso que me faltou tempo para reler o texto com olhos mais poéticos ou mais perscrutadores e para me embrenhar nos processos de inferência que essa reconstrução exige. Talvez num outro momento me volte a reaproximar da obra e consiga descobrir o som e a fúria no seu esplendor em tudo o que há de implícito no texto e que permanece por enquanto imerso no tecido do texto.

Por agora, despeço-me do livro com a sensação de ser aquele ser inacabado e imperfeito que a leitura de todas as grandes obras deixa em mim, mas acreditando que é possível lidar com os desafios que os textos que nos deixam inquietos nos colocam.



William Faulkner, O Som e a Fúria, trad. de Ana Maria Chaves, ed. Leya - Livros RTP, col. Essencial, 2017, p. 19


 

Margarida Mouta

Porto, 8 de novembro de 2022



[1]  Cf. Prefácio de Rui Vieira Nery, p. 14

[2] Sobre este ponto, não estou muito certa. Inclino-me mais a concordar com o que disse David Lodge numa entrevista à BBC: “A consciência é algo muito privado. Em parte, enveredamos pela literatura nas suas diversas formas para compensar ou inventar os solipsismos das nossas próprias vidas internas".

[3] Lucie TANGY, «Insularité et idiotie. Le monologue intérieur de Benjy dans Le Bruit et la Fureur », Tracés. Revue de Sciences humaines [En ligne], 3 | 2003, mis en ligne le 03 février 2009, consultado a 9 de setembro de 2022

 

[4] Tanto quanto me foi dado apurar, a noção de infraconceptual tem que ver com a forma indistinta como as percepções se apresentam, uma espécie de magma pré-existente aos processos de elaboração das representações que as transformam em entidades significativas. 

 

[5] Tangy é de opinião que a “insularidade discursiva” está, aliás, presente em toda a obra. “(…) o monólogo do idiota funciona, na economia do romance, como um lugar fechado, sinónimo de uma relação primitiva com o mundo de uma consciência balbuciante. Ele inicia a exploração progressiva da consciência esboçada em “O Som e a Fúria”. Nesta parte liminar, Faulkner apresenta a matéria prima do seu romance, os elementos ainda informes do seu universo, elementos que as partes seguintes irão desenvolver. A matriz do processo de criação do romanesco exibida de modo reflexiva” (Tradução minha).

 

[6] Termo roubado à autora do artigo.

[7] Por outro lado, é também impossível para nós leitores, não evocarmos, sob o efeito desta repetição, o simbolismo contido no vocábulo cerca que aponta de imediato para o fechamento da personagem num duplo espaço de clausura: o da casa, reduto da família e o da sua própria mente. Por outro lado, ainda, a reiteração anafórica autoriza-nos a aproximar este modo de narrar primário decorrente da sua linguagem de deficiente mental, ao discurso poético

[8] Aqui a sequência frásica segue o ritmo vertiginoso do delírio mental em que o estábulo e a manjedoura, (espaço e objeto inanimado) adquirem vida própria e se movimentam.

[9] Outra expressão pedida de empréstimo a Madame Tangy.

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