domingo, 20 de novembro de 2022

 

O Som e a Fúria: os negros


por Conceição Rocha

 

Como será previsível, falar de negros numa quinta do sul dos Estados Unidos na década de 20 será falar já não de escravos (em 1863 Lincoln publica “The imancipation proclamation”, documento que põe fim estatutariamente à escravatura), mas de pessoas servas, exploradas pelos patrões  e desprezadas por toda a comunidade  branca.

No Som e a Fúria, os negros aparentemente não diferem daquilo que conhecemos das narrativas de época, sobretudo daquelas em que não se notam revolta e resistência a um estatuto de servidão. Um dos debates em torno de Faulkner é justamente sobre o seu possível racismo, ou seja, se a força da sua narrativa que envolve negros está no facto de descrever com extraordinário realismo os comportamentos tidos como padrão ou se, utilizando linguagens e comportamentos padrão, faz sobressair as contradições sociais e as debilidades da sociedade branca decadente, dependente, vulnerável e, no fundo, não respeitada pelo círculo negro do seu ambiente doméstico e local, este sim inteligente, sagaz e capaz de ir sobrevivendo e dando a volta às circunstâncias em seu proveito.

Não vale a pena aqui descrever as passagens em que os criados dos Compson intervêm, pois toda a gente leu a obra. Além disso, surgem não como um enredo contínuo, mas como um somatório de episódios narrados por diferentes narradores. Recordo só quem são:

·       Dilsey, a cozinheira e personagem central do romance, mulher com autoridade baseada na sensatez e capacidade de agir e reagir e, assim, ascender sobre os outros. È quem põe ordem no caos sempre que este ocorre;

·        Frony, filha de Dilsey;

·       Luster, neto de Dilsey e filho de Frony, cuidador de Benjy;

·       Versh, criado jovem;

·       Roskus, criado velho;

·       TP, criado velho.

·       Roskus, o pacificador

Assim, este pequeno apontamento referirá sobretudo o contexto em que O Som e a Fúria se passa, para compreender a acção e a época em que ela decorre no que diz respeito à população negra do sul agrário e racista.




Faulkner é contemporâneo de novas políticas raciais nos Estados Unidos, sem que tal melhorasse significativamente o estatuto dos negros nos estados do sul. O decreto de Lincoln de 1863, que já mencionei, dá origem a partir do início do século XX a um grande movimento migratório dos ex-escravos das plantações para os guetos das periferias urbanas industriais. Os que permaneceram de algum modo ligados às famílias agrárias em situação de servidão mais ou menos explícita, não experimentaram qualquer dignificação do seu estatuto ou melhoramento da sua respeitabilidade. A religião metodista e a baptista, que professava a maioria dos brancos aceitava o esclavagismo e encarava os negros com paternalismo racial – crianças intelectualmente débeis, carenciadas de tutela. No pós-esclavagismo postulava-se um proteccionismo brando, mas autoritário, sem agressão física mas dureza moral e consciência da subalternidade.

O romance situa-se na década de 20, menos de um século após a guerra civil (1861 – 1865) e a derrota do Sul esclavagista e considerado pelo Norte como bárbaro, conservador, inculto e violento, desestruturará muitíssimo as famílias ora poderosas, depois empobrecidas, com personagens frequentemente enlouquecidos e com dificuldade em interiorizar a nova realidade (e identidade).


Nesta família Compson que Faulkner faz reproduzir os padrões do início do século XX sulista, Dilsey adquire um protagonismo especial, é a voz do juízo no meio da loucura decadente da família.

Na 4ª parte do romance especialmente, o seu esforço  em manter a ordem na propriedade, apesar dos insultos de Jason que diz serem os negros parasitas, mentirosos, preguiçosos e arruaceiros, é notável. Acredito que essa força anímica assenta na consciência da sua própria vulnerabilidade estatutária: se o mundo que conhece e em que se move ruir, vive ela própria a crise de identidade que os patrões experimentam e lhes cria enormes dificuldades de sobrevivência. A crença cristã tem também nela o seu papel: sente na mensagem do sermão da ressureição de Cristo a esperança de redenção, do fim dos tempos em que haverá igualdade entre os homens e extrapula até para a família Compson a convicção de que a fuga e o suicídio do Quentin representarão essa redenção.

Nessa 4ª parte, que foca mais do que nas 3 outras a importância dos criados, não só Dilsey é uma referência decisiva na narrativa, como Luster, o companheiro de Benjy, que o entende e ampara e Roskus, que silencia humilhações sucessivas, pois filosoficamente considera que “coisas de brancos são coisas de brancos”.

Interessante é sabermos que Faulkner tirou o título do romance do Macbeth, que diz que a sua é “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”.

 Senti que um dos aspectos geniais do romance é a sua forma caótica e por vezes confusa de nos apresentar uma família disfuncional, fruto do tempo e do espaço em que se situou, mas mais ainda do que isso: um microcosmos cheio de som e fúria, mas uma fúria geralmente sem as lutas sangrentas, assassínios, emboscadas, as grandes crueldades que com a questão racial nos revoltamos. Um quotidiano de fúria controlada que adivinha um trajecto dramático, com as suas erupções, como ainda hoje testemunhamos. A realidade é muito complexa.

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