sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Humor Judaico

Clube de Leitura EASR
A Conspiração contra a América, Philip Roth
28 de Julho de 2011

Humor judaico

por Margarida Mouta
                          ”Ria dos seus próprios problemas e nunca lhe faltará matéria para rir”
                                                                              Provérbio judaico

Na origem do humor que subjaz ao riso está o jogo intelectual, o trabalho sobre a ideia e sobre a palavra, a busca da sintonia na aproximação de sensibilidades e de formas de ver o mundo. Falar em humor pressupõe, pois, perspectivar o conceito no quadro de uma pluralidade de culturas, de vivências, de crenças religiosas…
No que diz respeito ao humor judaico (ou humor dos judeus, se preferirem) existe a convicção de que o humor tem funcionado ao longo dos tempos para o povo judeu como um mecanismo de defesa, nascido da necessidade de protestar, através da ironia, contra a opressão a que estava sujeito. Face à discriminação e às sucessivas migrações que caracterizam a sua história, as sucessivas adaptações à cultura do outro terá levado o povo judeu a querer superar a tragédia com o riso. Fazendo da auto-ironia a sua defesa, os judeus terão desenvolvido, assim, um duplo olhar sobre o mundo, um olhar que engloba, por um lado, o seu ponto de vista e, por outro, o das comunidades que os rodeiam.
Vladimir Jankélévitch, filósofo judeu do século XX, salientou num dos seus textos que o humor “é um
jogo, mas um jogo sério. O humor é a evasão da má consciência pela liberdade; é ele que
pacifica a insolúvel contradição; o humor preservava-nos do desespero quando sofríamos e
agora entretém-nos nessavivacidade que é também um dos traços que distingue a alma judaica."
Pensando nas formas de humor judaico que chegam até mim através das piadas disseminadas em
livros, filmes e séries da televisão, de imediato o associo à ausência de palhaçada, ao
discurso elaborado, perspicaz e inteligente, caracterizado pelo tom contido, em que a ironia
ou o sarcasmo estão presentes. A reacção que me provoca não é a gargalhada, mas antes um
sorriso melancólico, divertido e respeitoso por quem sabe rir dos seus próprios defeitos.
 Porque as piadas dos judeus reflectem sobretudo a sua capacidade de escarnecer das suas
próprias particularidades. Como subterfúgio para afirmar a sua identidade, o judeu ri de si mesmo
 e dos outros judeus, enfatizando os defeitos intra-muros. Dentro da comunidade, todos são alvos.
Nada nem ninguém escapa. São fustigadas personalidades, instituições (como a família e a
obsessiva omnipresença da “yiddish mama”), tradições e práticas religiosas e até mesmo Deus
surge como figura satirizada. Conjurando-se a existência dos tabus que rodeiam esses temas,
neste contexto muito particular, não existem objectos não risíveis:
Samuel encontra-se com o seu velho amigo Jacob 
- Olá Jacob! Há quanto tempo não te via! Como vai a vida?  
- Vai muito mal!  
- Porquê Jacob, o que foi que aconteceu?  
- A minha mãe morreu na semana passada!  
- Não me digas! Os meus sentimentos! O que é que ela tinha?  
- Infelizmente, pouca coisa. Uma casa, duas lojinhas no centro da cidade e uma pequena propriedade no interior!


Um velho rabino chega ao Céu. Uma vez lá chegado passa o tempo a discutir com toda a gente e a pôr questões a
Abraão, a Moisés e até mesmo a Deus. "Senhor, diz-me o que são para ti mil anos?" O Senhor responde pacientemente:
 "Para mim? Um minuto..." "E um milhão de dólares?", replica o rabino. "Uma simples moeda". "Então, Senhor, dá-me
uma moeda." "De acordo", diz o Criador, "espera só um minuto..."
Samuel passa à frente de uma montra de uma loja vazia, apenas com um relógio exposto. Entra na loja e pergunta:
 "Quanto tempo leva a consertar o meu relógio?" "Sei lá!" diz o dono da loja. "Eu não arranjo relógios - faço circuncisões.
" "Mas na montra está um relógio!" "E o que é que o senhor queria que eu lá pusesse?"

Até mesmo Kafka revelou sentido de humor em histórias verídicas como esta:
Franz Kafka vai passar férias a um hotel e, ao preencher a folha de registos, o gerente diz-lhe: "o seu nome é-me
familiar". "Impossível - diz Kafka - é a primeira vez que cá venho". Dirige-se para o quarto e acaba de se deitar quando
alguém bate à porta. É novamente o gerente do hotel. "Desculpe-me insistir, mas acho que o senhor é um escritor famoso".
Kafka responde: "E depois"? "E depois? O senhor mudou a minha vida ao ler “A Metamorfose". "Leu-a? replicou Kafka.
Onde a encontrou"? "Comprei-a". Kafka gritou: "Ah!... Então foi você?
  
“A minha mulher era muito imatura. Sempre que eu estava na banheira, ela vinha e afundava os meus
barquinhos” – Woody Allen

Há, em todas as sociedades, temas - tabu, interditos protegidos por uma espécie de “lei do
silêncio“, usando as palavras de O. Ducrot. Esses temas, abordados muitas vezes de uma forma
oblíqua, introduzem-se no discurso através de processos que assentam numa rede de inferências
e de saberes dificilmente controláveis e previsíveis. São processos que implicam não só a captação
 das conexões micro e macroestruturais estabelecidas no interior do discurso, mas também a
capacidade de utilizar o universo de conhecimento comum como elemento estruturador do
sentido. O humor não é alheio a este processo.
Se pensarmos que independentemente das formas que as suas dimensões culturais, éticas
ou axiológicas possam assumir, o humor está indiscutivelmente associado a uma dinâmica de
partilha que só se realiza no seio da relação dialógica que se estabelece entre os interlocutores,
coloca-se a questão: Estaremos nós, (Góis) preparados para entender o discurso humorístico dos
judeus ou precisaremos da palavra passe que nos dê acesso ao seu sistema de conotações e nos
faculte a entrada na rede de conivência cultural que se estabelece entre os membros da comunidade judaica?  
Embora seja voz corrente entre os judeus que uma boa piada judaica é aquela que nenhum goi
entende, eu confesso que, na parte que me toca, me deleito com aquelas cujo alcance consigo
descortinar. Na sua materialidade, o meu riso é então testemunho audível e visível de que a
mensagem humorística é compreendida e partilhada. O que não significa que não haja ocasiões em
que me sinto excluída. Sempre que o discurso recorre a uma linguagem cifrada e se oferece aos meus
ouvidos como um enigma, a reacção é a incompreensão.
Exigindo um acréscimo de trabalho na interpretação dos enunciados, essa formulação implícita vem a r
evelar-se bastante mais sugestiva na apresentação dos valores de natureza semântica e pragmática
que se inscrevem no enunciado. Mais do que nenhum outro, o jogo do implícito favorece a construção do
 humor pois, como todos nós sabemos, a explicitação destrói o riso e frustra a ideia de descoberta
contida nas incompatibilidades aparentes do enunciado que se ouve. É nesses momentos que me
surge a vontade de saber mais sobre esta gente, esta religião, esta cultura…
Será que hoje vou sair daqui a compreender melhor uma piada yiddish?

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