quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Uma História de Amor e Trevas

O pequeno Amos Klausner, o jovem Amos Oz

                                 

por Manuela Pereira


Durante a adolescência, o autor abandona o apelido do pai ‘Klausner’ e adopta o nome ‘Oz’, que significa ‘força’ em hebraico. A mudança do nome é pessoal ou política?

Não houve festa no dia da bar-mitzva de Amos Klausner. A mãe tinha-se suicidado havia apenas três meses.
O marco que assinalou a passagem da infância para a vida adulta de Amos foi a sua gargalhada durante o discurso de Menahem Begin, na sala Edison. A violência desse incidente fez o avô Alexandre sentir que o mundo à sua volta tinha desabado. A resposta foi igualmente violenta. E aconteceu a queda. As três bofetadas expulsaram Amos do paraíso. Da infância.
Ao descrever o incidente Amoz Oz refere-se a um pequeno nacionalista, um miúdo, como se não fosse dele próprio que falasse.
Até aí Amos tinha sido uma criança fácil, obediente, respeitadora do mundo dos adultos e dos valores da ordem estabelecida.
E um dia, graças a Menahem Begin, perdeu “de uma vez por todas a vontade de ‘sacrificar o sangue e a alma/pela glória escondida’”, “Deixei de considerar que ‘abjecta é a calma’. (p.516)
Foi “…enquanto o avô Alexandre me arrastava pela orelha para a rua, aos berros que mais pareciam gemidos loucos de horror, que comecei a fugir da ressurreição e da redenção.” (p.523)
“Não foi apenas delas que fugi, mas do sufoco da vida naquela cave entre a minha mãe e o meu pai e os milhares de livros, das ambições, das saudades censuradas e reprimidas de Rovno e de Vilna, de uma Europa que se materializava entre nós no carrinho preto do chá e nos guardanapos de musselina branca, da injustiça do fracasso da vida dele e das feridas da vida dela, fracassos que me cabia a mim transformar um dia em sucessos, todas essas coisas me pesavam tanto que eu só aspirava a desaparecer.”(p.523)
“À noite, errava durante horas pelas ruas ou terrenos baldios, fora da cidade. Por vezes ia até à barreira de arame farpado e aos campos de minas que dividiam a cidade, e uma noite penetrei inadvertidamente no no man’s land, … . Nos dias seguintes não pude impedir-me de lá voltar, como se quisesse acabar com tudo.”
“Queria fugir, libertar-me de uma vez por todas dos meus dois inimigos, o corpo e a alma. Queria ser uma nuvem. Uma pedra à face da lua.” (565)




Não é fácil ser filho único. Aos pais de Amos, como a outros pais, “Não lhes bastava que .. fosse inteligente, racional, bom, sensível, criativo, filosófico e dotado de um olhar sedutor de artista. Para além disso tudo, tinha de ser igualmente um vidente, um áugure, um oráculo das famílias, o profeta do pátio (..)”. (p.313)
 “Os meus pais colocaram em cima dos meus ombros tudo o que não conseguiram realizar na vida” (p.328).
“a partir dos três ou quatro anos, se não mesmo antes, já era um one-man-show. Um espectáculo sem interrupção.” (p.321) O menino modelo não podia fazer nada que pudesse estragar a boa opinião que tinham dele. A sua tarefa era não incomodar.” Ser inexistente. Transparente.” (p.506)
Amos sentiu-se desde a meninice “alvo de uma permanente lavagem ao cérebro: …… Mas a verdade é que renegara secretamente o desejo dos pais de o verem escritor e sonhou “durante anos … que abandonaria um dia aquela confusão de livros para ser bombeiro: o fogo, a água, os uniformes, o heroísmo, o capacete reluzente, o apito da sirene, a admiração das raparigas, os faróis de emergência, o pânico na rua, a velocidade de relâmpago do carro vermelho deixando atrás de si um rasto de horror.” (p.331)

 “…no início dos anos 1950, ‘o pólo oposto’ da opressão da casa dos pais era o kibutz.” E Amos queria ser como os pioneiros “…para não ser como o meu pai, a minha mãe e todos os intelectuais refugiados tristonhos que povoavam a Jerusalém judaica.” (p,523)
Já na adolescência foi para o kibutz e para começar uma vida nova decidiu mudar o apelido Klausner para o nome Oz, que significa força em hebraico.
 “…escrevi num bilhete uma série de metas que me coloquei a mim próprio como um teste que não podia falhar.” Para deixar deixar a vida acanhada dos seus pais, para deixar de sonhar acordado, para fugir aos sentimentos.
Queria ver-se livre, de uma vez por todas, do mundo académico e das discussões onde crescera.
No kibutz, “…porque sabia que o meu desenraizamento de Jerusalém e o meu renascimento era um processo doloroso…” aguentava todas as tentativas para o tornar igual e o libertar das excentricidades. “Considerava que os castigos e as humilhações se justificavam não porque sofresse de algum complexo de inferioridade, mas porque era realmente inferior.” (p.616)
Enquanto vivia com os pais sentia que “Estavamos separados por mil anos-luz. Não anos-luz, mas anos de escuridão.” (p.550)
Só mais tarde compreendeu quem era e de onde vinha. “…de um emaranhado de dor, fingimento, saudade, ridículo, pobreza, provincianismo, educação sentimental, ideais anacrónicos, medos asfixiantes, inveja e desespero.” (p.591)
“À volta do Kibutz havia apenas trevas profundas. Todas as noites, a dois metros dos círculos amarelos dos candeeiros, ao longo da cerca, começava um abismo escuro que se prolongava até aos confins da noite, até às estrelas longínquas do céu.” (p.618)
 Pensa no pai e diz “Foi sobretudo com a mudança do nome que o matei.” (p.560)
Nessa altura “A morte de todos os adultos continha um forte encanto secreto. E foi por isso que aos catorze anos e meio, cerca de dois anos após a morte da minha mãe, matei o meu pai e a cidade de Jerusalém toda, mudei de nome e fui sozinho para o kibutz Hulda, para aí viver sobre as ruínas.” (p.559)
E assim se realizava, como por milagre, o desejo recalcado do ethos sionista, e da criança que eu era: que morressem todos. Eram todos tão atrasados! Da diáspora! Da geração do deserto. Sempre a exigir e a dar ordens! Não nos deixavam em paz.” (p.559)
Manuela Pereira                                                        Clube de Leitura 18 Novembro 2011




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