terça-feira, 1 de novembro de 2011

Uma História de Amor e Trevas

"Era uma vez uma aldeia abandonada por todos os seus habitantes.Até pelos cães e gatos.."

Leia a  primeira história já publicada em comentários (24/10/2011) .

6 comentários:

  1. "Era uma vez uma aldeia abandonada por todos os seus habitantes.Até pelos cães e gatos. Até os passarinhos a deixaram. E durante muitos anos a aldeia ficou assim silenciosa e deserta. A chuva e o vento arrancaram os telhados de colmo, a neve e o granizo abriram brechas nas paredes das cabanas, as hortas secaram e apenas as árvores e arbustos continuaram a crescer, mas como não havia quem as podasse foram ficando cada vez mais emaranhadas. Uma noite, chegou à tal aldeia um viajante que se enganara no caminho. Bateu à porta da primeira cabana e eis que ...queres continuar?"

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  2. cabana e eis que
    de dentro, uma voz perguntou:
    _ Quem é?
    Litas recuou horrorizado. Não! Não podia ser verdade! Aquela voz era…era…era a voz de Eugénia! Geninha como ela se chamava a si própria.
    Litas (odiava aquele petit nom que a mãe lhe dera em bebé por ter longos cabelos loiros que lhe caíam em caracóis. Isso e a mãe desejar intensamente uma menina que só nasceu quatro filhos mais tarde), Litas paralisado, de horror e espanto não conseguia articular uma palavra.
    _ Quem é? repetia a voz do outro lado da porta.
    Era ela! Era ela! Mas como? Seria possível que até ali Geninha o perseguisse? Ah! Mas a culpa era sua. Disso não tinha dúvidas. Fora um asno metido a galã e pagara bem caro a esperteza. Quem o mandara dizer aquelas palavras parvas que, aliás, aprendera com o primo numa matinée dançante no casino, uma daquelas matinées que o casino organizava durante a época balnear, não diria para adolescentes que era coisa que não havia na altura, nem para jovens, que também ainda não tinham nascido, mas matinées para os mais novos ou para a gente nova:
    _Olá, pestanuda!
    _ Eu não sou pestanuda. Sou Geninha!

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  3. Logo ali viu que estava tramado. E acertara. Para começar teve de aguentar, o resto do mês de Agosto, o gozo de todo o grupo que passou a tratá-lo por “Pestanudo”. Mas, pensando bem, isso foi o menos. O pior foi passar a temer o toque da campainha quando ficava em casa. Não era fácil ficar em casa. Era obrigatório ir para a praia. Nessa época havia o iodo que não se podia desperdiçar e ir para a praia era uma tarefa de verão que se cumpria com o mesmo sentido do dever e o mesmo rigor horário com que, no resto do ano, se ia para o liceu.
    _Mas, ó mamã, eu tenho o nariz a esfarelar. Não posso apanhar mais sol!
    _ O menino é um mariquinhas é o que é! Ponha um boné e pronto.
    Mesmo assim, por vezes, o seu estado era de tal forma lastimoso que lograva captar o olhar sempre distraído do pai que então decretava:
    _ O menino Litas hoje fica em casa. Com as criadas.
    E isto era dito com um desdém comedido. Algo como: um homem a sério não tem essas sensibilidades. Nem de pele nem nenhumas. Um homem a sério tem pele de cavalo! E quando não tem, apanha sol na mesma que é para aprender!

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  4. Era como se todos soubessem que a verdadeira razão por que não queria ir para a praia era outra: não encontrar Geninha. E ela que se fazia encontrada a cada passo! Nem o facto de ter barraca noutro banheiro, o nº 13, dez banheiros de diferença da sua, parecia impedir que o encontrasse a toda a hora.
    _ Vim ao banho aqui porque, no 13, a bandeira está vermelha.
    Mentia descaradamente e ele fazia-se desentendido sem coragem para lhe voltar as costas, e lá ia mergulhar com ela, ajudá-la nas ondas maiores quando ela fingia estar em apuros só para se lhe pendurar ao pescoço. E ele morto de vergonha a pensar “pestanudo”, “pestanudo”… Assim, se ficar em casa era bom porque podia tocar viola horas seguidas sem ouvir os irmãos a guinchar “Uma esmolinha para o ceguinho”, ou a pôr-lhe à porta do quarto um chapéu virado para cima, por outro lado, passara a comportar o risco de, supremo suplício!, ter de aguentar a presença de Geninha a sós. E no quarto. A primeira vez que tal aconteceu pensou tratar-se de mais uma partida dos irmãos quando Rosa, a criada mais nova, bateu à porta e anunciou: Está aqui a menina Eugénia. Mas logo em seguida viu a sua cabeça a espreitar, sorridente e segura de si com aquele ar despachado de enfermeira de unidade de cuidados intensivos: Vim fazer-lhe companhia. Tratava todos por você e ele não sabia se isso o irritava ou se lhe fazia bem. Atordoado, ouviu-se a si próprio a responder: obrigado. Senta-te aí. E indicava-lhe a cama onde ele próprio, sentado de pernas cruzadas com a viola nas mãos, tocava (arranhava dizia a mãe sempre amorosa) uma música dos Beatles.

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  5. Passou a inventar desculpas. Mal ouvia a campainha, largava a viola, pegava na toalha de banho e quando Rosa batia à porta, seguida de Geninha, ele anunciava: Afinal, vou ao banho ou Vou à Avenida ou Rebentei uma corda. Mas a resposta era sempre a mesma: Vou consigo, Carlos. Vinha fazer-lhe companhia…
    Pelo menos não o tratava por Litas. Era a única pessoa que lhe chamava Carlos. Sem diminutivos. A avó também nunca dizia Litas, mas tratava-o por Carlitos e ele sentia-se uma personagem secundária de um filme sul-americano. Mas eu, depois, vou jogar futebol, arriscava, ainda. Onde? Aflito, a pensar e agora?, e agora?, atirava o nome duma praia longínqua para aqueles tempos de andar a pé: Costa Verde. Geninha fingia não compreender a incoerência e respondia com a mesma serenidade e firmeza de sempre: eu vou apoiá-lo. Gosto muito de futebol. E agora? e agora? Queres ouvir primeiro, uma música nova que aprendi? É dum conjunto português. Geninha franziu ligeiramente o sobrolho, mas sábia, logo acrescentou com um ar neutro: De quem? Dos Sheiks. Como se chama a música? Missing you. Ah! Que idiota! Mas agora era tarde. Geninha já sorria, já se instalara familiarmente na cama, dona já de tudo, firme e serena. Como sempre.

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  6. Litas sentiu qualquer coisa roçar-lhe as pernas. Um gato?! Naquele lugar tão abandonado?! À luz da lua cheia, o gato afastou-se, imperial, e dirigiu-se a um prato com leite, ao lado da porta da cabana. Odiava gatos. Sempre desdenhosos e indiferentes… sim, era inveja. Ele sempre inseguro, sempre incapaz de se afirmar, de contrapor uma opinião mais arrojada. Quem foi que disse isso? O LItas. Ora! Ninguém nunca lhe reconhecia autoridade. Só na presença de Eugénia se coibiam de ditos mordazes. Até os irmãos, invariavelmente implacáveis, preferiam dar meia volta se ela estava por perto, incapazes de encarar o seu olhar firme e levemente superior.

    Quem é?! Havia já alguma impaciência e irritação na voz que soava de dentro da cabana.
    O gato levantou o focinho do prato e olhou-o com desprezo.
    Quem é?! O tom era agora francamente exasperado.
    Então a porta começou a gemer, a maçaneta enferrujada a rodar aos soluços. Em pânico, Litas olhava-a paralisado. Um alçapão! Um alçapão! Nestas histórias fantásticas há sempre um alçapão! Olhou em redor. As copas das árvores prateadas pela lua projectavam sombras aterradoras no chão.
    O menino é um mariquinhas é o que é.
    Tenho de fugir daqui antes que a porta se abra. Mas as pernas estavam inesperadamente pesadas, o corpo hirto, a respiração suspensa.
    A porta abriu-se finalmente.
    _ Carlos!
    _ Carlos! Carlos! Era uma voz neutra sem surpresa, sem alegria.
    _ Carlos! Está aqui o Bernardo. Combinaram uma partida de ténis. Esqueceu-se? Já sabe que não é bom para a sua pele adormecer assim ao sol…
    Litas abriu os olhos. Deitado na cadeira de estender ao lado da sua, a cabeça meio soerguida, Ulisses olhava-o, enigmático, olhos semi-cerrados, levantando a cauda a intervalos.
    Carlos encarou-o um longo momento e, por uma vez autoritário, ordenou:
    _ Nem uma palavra!

    Alexandra Azevedo

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