sábado, 28 de maio de 2011

Na Tua Face _ Ângela

Ângela, a coragem de não ter ilusões

  Alexandra Azevedo

Que é que há mais numa face?

                                                                                                                                                                   

Tinha nome de anjo. Em latim. Ângela. Gosto imenso de dizer o teu nome. É amplo bastante para lá caber a minha vida inteira agasalhada. E era loura, branca e rosada  como os anjos devem ser. E como a estes compete, os olhos eram azuis. Celestes. Frios. E eu fiquei a olhá-la longamente na sua face branca e rosada, no cabelo solar, nos olhos frios de azul. E, porque não há anjos feios, pois nesse caso sofrem imediata despromoção a demónios, Ângela …era bonita à sua maneira, clara, correcta, feita por Deus em momentos de lazer. A sua natureza angélica tinha, ainda, a vantagem de lhe evitar os desconfortos humanos _ Nunca sinto calor nem frio, disse ela _ seria humana?
Sim. Ângela era humana, profundamente humana porque, melhor do que Daniel, tinha compreendido a verdadeira natureza das coisas. Aprendera com Lucrécio a lição epicurista que ensina que a felicidade exige admitir que se está só diante da natureza, e que apenas no reencontro com esta é possível evitar as necessidades não naturais que causam sofrimento. Entre elas o amor_ O amor é uma coisa mental e eu tenho de entregar amanhã o trabalho ao Dr. Lucas, preciso de o rever. ou a paixão_ sou contra isso da paixão, quantas vezes é preciso dizer-to?
Por isso, com a mesma eficácia com que controla a vida doméstica ou profissional_ o miúdo mamava para um lado e ela ia trabalhando o seu Homero para o outro_, Ângela controla o inconsciente, o animus que só serve para atrapalhar e para isso é preciso ter a alma nas mãos e dar-lhe educação. “Anima animus”. Ela fazia distinção, mas já não sei. Dava-se mais com o segundo, não sei, não quero saber
 Assim, é-lhe indiferente que Daniel ame Bárbara ou que ache que ama Bárbara. E do mesmo modo não perde tempo a analisar-se sobre esse aspecto. Portanto, devo admitir que você gosta de mim? disse eu. Acho que sim se isso lhe importa, disse ela. Há aqui uma transmutação de sentimentos, não estou interessada em entender.
Nem mesmo quando descobre a infidelidade do marido com a empregada do consultório Ângela se altera e acaba até por ser ela própria a encontrar-lhe a solução menos gravosa: Nem precisas de pôr a rapariga na rua. Estive mesmo a pensar, se quiseres de vez em quando procurar-me, podes afinal fazê-lo. Reflectindo bem, isso não tem para mim significação nenhuma.
 Nesta mesma linha, o casamento e a maternidade são para Ângela enquadráveis nas necessidades naturais que urge resolver sem dramas. Podemos casar-nos em Setembro, teremos logo dois filhos para arrumar o assunto, e é tudo. Não sei se acha bem tratarmo-nos já por tu. A intimidade que o tratamento por tu   pressupõe surge, assim, com naturalidade a suceder e não a anteceder   o casamento e os filhos porque, na realidade, Ângela nunca entra em intimidades desnecessárias. Não pede auxílio ao marido médico quando adoece, não partilha os seus objectos pessoais_ Não gosto de misturas, dizia_ e fazia questão de também não entrar na intimidade do marido_ ela tornava-me mesmo privado tudo o que era do meu domínio pessoal mas correntio_ posso tirar-te um envelope? perguntava-me.
A intimidade resumia-se à intimidade nocturna contratual, aceite apenas  enquanto necessidade natural, ou seja, correspondendo a um desejo naturalmente necessário e reclamado pela natureza.  Aliás, o casamento com o admirador silencioso da amiga só aparentemente é um acto de oportunismo da sua parte. Ângela age apenas em conformidade com o seu manual epicurista de felicidade. Desperdiçar aquela oportunidade seria disparatado porque em nada iria alterar o desencontro entre Bárbara e Daniel e, segundo a lição de Lucrécio, compete ao homem saber aproveitar adequadamente as potencialidades do mundo que o cerca.
Mas Lucrécio também ensinava que a natureza, definitivamente despida da sua aura mística, tinha de sofrer o destino de tudo o que não compartilha da centelha divina, isto é, ficar sujeita ao envelhecimento, à degenerescência, à morte.  E nada disto é injusto porque nada na natureza é justo ou injusto, assim como nada tem significado. Portanto, não vale a pena lamentarmo-nos. Ninguém tem memória de antes de nascer e depois de morrer também não. Lamentarmo-nos para depois da morte é supormo-nos vivos para então. Corpo e espírito têm nela o seu limite, ela pode ser assim não a maldição que se imagina mas a libertação do sofrimento. Por isso o suicídio não é um estigma mas o triunfo do homem sobre o destino.Non potius vitae finem facis atque laboris?” (não farias melhor em pôr fim à tua vida e aos teus trabalhos?). Ângela não se suicida, mas é esta a tremenda lição que ensina ao seu filho Lucrécio, lição que este porá em prática porque ele é o homem de amanhã, limpo de todas as ilusões e tranquilo.
Tendo deliberadamente renunciado a ver a beleza do mundo e do amor, os olhos de Ângela, sem serventia, vão cegando gradual e naturalmente. E, é à medida que a luz lhes falta, que Ângela vê, cada vez com mais precisão, aquilo que antes não conseguia  enxergar ocupada que estava com um destino de perfeição a cumprir. É ao marido que pede para lhe ver o mundo que durante toda a vida ignorou ou quis ignorar_ Dani, vê uma criança que já ande pelo seu pé.”, “Dani, vê também um barco”, “Ângela, queres que veja uma centopeia, uma toupeira? ou um grilo, um malmequer? Tudo, Dani, vai dizendo devagar. E uma intimidade desnecessária começa lentamente a desenhar-se na mesma medida em que a sua independência se reduz (Tão raro pensares-te em dependência, tão difícil), a sua auto-suficiência se vai desvanecendo e a sua fragilidade aumentando.
Então, pela primeira vez, Ângela tem um gesto de ternura e inesperadamente, com lentidão, subtilmente, tacteia os olhos, o queixo, o nariz, a face de Daniel. Que é que há mais numa face? 

Nota: o texto a azul e em itálico é de NaTua Face de Vergílio Ferreira

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