terça-feira, 5 de abril de 2011

Ainda a propósito de "O Paraíso na Outra Esquina"

                                                                                                                                                                                                                                      Familistério de Godin (1859-1968)

O Falanstério de Charles Fourrier

por Manuela Pereira

O universo material e cultural de Newton (1693-1727) e do Iluminismo (séc. XVIII) e os anteriores conceitos físicos e conceptuais do mundo são a base de onde acabariam por surgir os movimentos socialistas. O pensamento dos primeiros socialistas – Socialistas Utópicos – formulado, no início, por Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), Louis Blanc (1811-1882) e Robert Owen (1771-1858) – incluía os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa (1789) mas as suas tentativas para reformar a sociedade, com a ajuda e boa vontade de todos, não resultaram. Embora influenciassem alguns sectores da sociedade não alcançavam os operários propriamente ditos – mais tarde denominados “proletariado”.
O seu desejo de transformar o mundo, e a sua preocupação com a educação e com a garantia de emprego para todos, de forma a melhorar a sociedade, não ultrapassou uma tendência filantrópica e paternalista que propunha uma melhoria de alojamentos e higiene, a aposta na educação através da construção de escolas, o aumento dos salários e a redução das horas de trabalho.
A Revolução Industrial e o desenvolvimento do Capitalismo, com as consequentes condições económicas e a consciencialização dos antagonismos entre as classes existentes na sociedade moderna – assalariados e burgueses – a par com a anarquia existente, irão fazer emergir as ideologias políticas (séc. XIX) que se vão ocupar da Questão Social e serão designadas por Ideologias Socialistas – Comunismo Científico.
As críticas ao Liberalismo resultam da constatação de que a livre concorrência não trouxe o equilíbrio prometido e esperado instaurando, pelo contrário, uma ordem injusta e imoral.
A Revolução Industrial e o êxodo das populações rurais para as cidades aumentou o número de operários a trabalharem em condições desumanas, a receberem baixos salários e a viverem em condições degradantes.
A expansão crescente que a cidade conheceu no século XIX traduziu-se por elevadas densidades populacionais nos velhos burgos. O aumento contínuo da população originou uma subida vertiginosa do custo da habitação, devido à especulação de terrenos e imóveis, e tornou a oferta de alojamentos inacessível aos extractos sociais mais baixos. A consequência foi uma degradação acelerada do parque habitacional que Engels (1920-1895) descreve, em A situação da classe trabalhadora em Inglaterra (1845), sobre as condições de alojamento da classe operária em Inglaterra.
As condições habitacionais degradantes derivavam da falta de salubridade e higiene urbana ( inexistência de saneamento, abastecimento de água e instalações sanitárias), constituindo grande parte desses alojamentos focos de epidemias como a tuberculose ou a peste bubónica.
Como reacção às lamentáveis condições de vida em todas as grandes cidades industriais – às casas mal ventiladas e com escassa iluminação natural e à enorme povoação dos bairros urbanos –, que favoreceram a propagação de doenças e epidemias, começava a fazer-se notar uma preocupação com a saúde e o bem-estar.
Com o avanço da ciência e fruto de investigações das ciências naturais descobriu-se a relação entre as condições de vida e a saúde mental e física e exigiu-se a construção de novos modelos de urbanização para uma vida mais sã. “ A mecanização gradual e o processo crescente de industrialização da sociedade, (…) levaram ao combate dos efeitos nocivos da vida urbana.”[1]
Por outro lado, a mecanização da sociedade moderna vai produzir nos edifícios transformações espaciais, quer no edifício quer na sua localização urbana. O modelo organizativo de Taylor (1856-1915) – Organização Científica do Trabalho – e o ambiente tecnológico que se vivia na transição do séc. XIX  para o séc. XX adquire significado arquitectónico: a arquitectura, como coisa de utilidade publica, e o edifício, produto das técnicas industriais, implicam considerar a adequação e a economia como os meios que podem guiar o exercício desta arte, e  o seu ‘mecanismo de composição’ torna-se uma interpretação simbólica da máquina.
A atitude racional com que passou a ser encarada a arquitectura – espaço e estrutura construtiva – influenciou o desenvolvimento tipológico de novos edifícios  e conduziu a novas geometrias e tecnologias. Os projectos de prisões, hospitais e fábricas mostram formas geométricas elementares, seguindo critérios lógicos e extremamente funcionais.
Na arquitectura verificou-se uma liberdade na manipulação da forma ou da estrutura do edifício o que veio criar novos espaços, novas formas de abertura ao exterior, e acima de tudo trouxe outras formas de expressão arquitectónica. Houve uma enorme evolução dos materiais de construção e dos sistemas construtivos, influenciando as dimensões alcançáveis dos vãos. Surgiram o ferro e o betão associados, em grande parte dos casos, a uma estrutura pontual com pilares. O vidro vai permitir a exposição do edifício em toda a sua profundidade permitindo que a luz entre por todas as faces, tornando os interiores mais iluminados.

Familistério de Godin (1859-1968)
Surgia um desejo de romper com a história e tradição e seguir o caminho, em direcção ao progresso, da modernização e emancipação do ser humano. Parecia não haver limites naturais ao progresso humano e sem eles vislumbrava-se superar a escassez e a miséria oferecendo maior conforto e felicidade a todos.

“Não sacrifiqueis a felicidade de hoje em nome da felicidade futura. Desfrutai do momento, evitai toda associação de matrimonio ou de interesse que não satisfaça vossas paixões no mesmo instante. Por que trabalhar pela felicidade futura, se ela se sobrepõe aos vossos desejos e, na ordem combinada, tereis apenas um desprazer: o de não poder dobrar a duração dos dias, a fim de que eles comportem o imenso círculo de gozos que tereis a percorrer.”[2]

Para permitir às pessoas realizar livremente suas inclinações ou paixões e produzir um estado de equilíbrio entre todos – harmonia – para estabelecer uma sociedade verdadeiramente justa, Fourier propôs a fundação de falanstérios (comunidades) onde os benefícios obtidos seriam repartidos entre os membros da falange e os capitalistas que tivessem investido dinheiro na sua construção.

A falange e o falanstério teriam as seguintes características:

“No lugar dos vastos centros que absorvem as populações, as aldeias, as casas, construídas ao azar no mapa, mal distribuídos, mal traçados seus limites, tão incoerentes em sua distribuição geral como em sua organização particular, a humanidade deve estar agrupada por comunidades, regulares pelo número de seus habitantes, por sua ordem interior e pelas condições de equilíbrio na relação com outras comunidades, obedecendo todas a lei análogas. Na ordem combinada ou societária estas comunidades recebem o nome de falange, palavra que significa uma ideia de conjunto, de unidade, de vontade e de objecto. A falange deve ser composta de 400 famílias (1.600 ou 1.800 pessoas, com uma média da densidade das famílias de 4,5). As bases desta associação são: 1º Todos os habitantes da comunidade, ricos e pobres, formarão parte da associação; o capital social o constituirão os imóveis de todos e os móveis e capitais investidos por cada um à sociedade. 2º Cada associado em troca de seus investimentos, receberá acções que representem o valor exacto do que haja investido. 3º Toda acção terá hipoteca sobre a parte dos imóveis que represente e sobre a propriedade geral da sociedade. 4º Todo associado (se é associado ainda quando não se possuem acções nem capital algum) deve concorrer à exploração do bem comum, com seu trabalho e com seu talento. 5º As mulheres e as crianças entram na sociedade com o mesmo título que os homens. 6º O beneficio anual, depois de satisfeitos os gastos comuns, será repartido proporcionalmente segundo as três faculdades produtivas: capital, trabalho e talento. Os fourieristas supõem que esta organização produzirá importantíssimas e fecundas consequências, pois, por exemplo, as 400 familias reunidas levariam grandes vantagens em substituir seus 400 lugares, que empregam a 400 mulheres, por uma boa cozinha dirigida por umas quantas pessoas hábeis na arte de cozinhar; seus 400 depósitos de grãos por um bom; suas 400 adegas por uma ampla e magnífica, &c., &c. A falange, ou seja a reunião de 400 casinhas, viria com o tempo a  reunir-se num só edifício; com 400 departamentos com dependências comuns e particulares, e este grande edifício unitário receberá o nome de falanstério.[3]



A ideia de sociedade criada por Charles Fourier, embora utópica, enquadra-se numa tentativa de urbanismo[4] – a sua cidade prevê uma salubridade impecável, a valorização da paisagem e da sua beleza, e um espaço onde o homem possa viver  confortavelmente – e simultaneamente propõe um projecto de imóvel de habitação social plurifamiliar.
Fourier concebeu seus falanstérios como construções simétricas de seis andares, com forma de U,  ocupando um espaço de terra de 2.300 hectares. Abrigariam 1.600 a 1.800 pessoas (idealmente 1.620) subdividas numa hierarquia de grupos, os menores dos quais seriam “séries” de seis a nove indivíduos.
Os falanstérios, complexos arquitectónicos de habitações, podiam localizar-se em áreas rurais e eram cercados por casas de camponeses manufacturas e fábricas ligadas por galerias e avenidas. Inspiravam-se na construção dos grandes castelos dos reis de França, como por exemplo o Château de Vincenne ou de Versailles, e eram um verdadeiro palácio para o povo. 


          
“No centro o ‘Palácio do Povo’ abarcaria os alojamentos dos operários e trabalhadores, as salas colectivas para reuniões de todo o tipo, cerimonias religiosas, actividades de trabalho, ensino e jogo para as crianças e jovens.
No piso térreo ficariam os ateliers, as creches e dormitórios das crianças, o refeitório e as cozinhas colectivas. As refeições colectivas tinham a vantegem de economizar espaços, tempo de trabalho e mão-de-obra. Com isso imaginava-se poupar dinheiro para a comunidade e reduzir os acidentes.
Neste grande palácio a circulação far-se-ia por galerias fechadas, de vidro, aquecidas durante o Inverno e refrescadas durante o Verão. Os pedrestes não sujariam os pés na lama e não se molhariam em dias de chuva, tendo o máximo de conforto.
O familistério de Godin, na região de Guise, no norte da França foi o único projecto utópico realizado com sucesso. Trata-se de um Fmilistério, como Godin (1817-1889) preferiu chamá-lo, inserido num terreno com 18 hectares com terras agrícolas, manufacturas e prédios industriais. A sua construção teve início em 1859 e tanto a sua arquitectura como os seus conceitos de higiene e aspectos políticos e sociais estavam de acordo com os princípios enunciados por Fourrier. Mais tarde foram acrescentados berçários, pátios de recreio, escolas, teatro, lavabos e salas de banho. No seu interior abrigava padarias, açougues, queijarias, etc. Nele também funcionava a cozinha e o refeitório colectivos. Havia água canalizada, esgoto e todo o conforto das ruas galerias, aquecimento e refrigeração, com os quais havia sonhad Fourrier. Este falanstério passou a abrigar 900 pessoas, na sua maioria operários, que se auto administravam por intermédio de uma Associação eleita pelos próprios moradores – Association du Capital e du Travail. Funcionou até 1968 e actualmente está sob o mecenato da União Europeia, funcionando como Museu.”[5]


Marx (1818-1883) e Engels (1920-1895) criticaram a utopia de uma união entre trabalho e capital e outros críticos denunciaram a ‘compaixão’ pelos operários como sendo uma tentativa de acalmar os ânimos da classe operária e afastá-la de possíveis acções revolucionárias.


Comunidade New Lanark, Escócia, de Robert Owen (1798)

Em Portugal, no final do séc. XIX e princípio do séc. XX, o desenvolvimento da indústria trazia também a questão da habitação social nos grandes centros urbanos. Populações insolventes habitavam alojamentos que não ofereciam as condições mínimas de higiene e salubridade.
“Em 1937, os Serviços Técnicos da Câmara Municipal do Porto projectam, na rua de Duque de Saldanha, um imóvel de 4 pisos, com uma planta em U, formando um largo pátio que se abre sobre a rua, com 115 apartamentos e uma galeria exterior. A este primeiro projecto irá ser acrescentado um novo edifício implantado à face da rua fechando o conjunto e tendo um arco central, por onde se acede ao pátio.
Este bloco irá contudo causar forte polémica, já que entrava em conflito com a ideologia que, sob a influência do regime nazi, o Estado Novo e o próprio Salazar começam a defender, que era contrária à tipologia do Bloco de habitação colectiva e ainda, por se localizar junto das ilhas que pretendia demolir, ou seja, no centro da cidade.
O próprio Salazar, retomando alguns conceitos que exprimira em 1933, diz:
"...Eis porque não nos interessam os grandes falanstérios, as colossais construções para habitação operária, com os seus restaurantes anexos e a sua mesa comum...para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada nós desejamos antes a casa pequena, independente, habitada em plena propriedade pela família."
Seguindo este "programa" de Salazar e na sua visão pequeno burguesa da casa e da habitação, o Estado Novo irá, a partir de 1938, publicar o Decreto n.º 28 912 e realizar alguns bairros destinados agora a funcionários públicos - não resolvendo o problema das populações então mais carenciadas - com soluções de casas isoladas ou geminadas, "aninhadas sob o campanário da Igreja" e/ou da Escola, numa reprodução de pequenas aldeias dentro da cidade.”[6]
 
 A solução inicial com o pátio aberto para a rua

 
 A solução final fachada para a rua Duque de Saldanha, vendo-se o arco de acesso

Concluindo:
“Aquilo que desde meados do século XIX estava sendo procurado com ansiedade, uma nova arquitectura para a nova sociedade industrial, pôde ser alcançado com plenitude. Uma radical mudança ocorreu em poucos anos; da esgotada e anacrónica linguagem Beaux-Arts  e académica, incapaz de gerar tanto uma nova arquitectura como uma nova cidade – e de resolver os problemas tecnológicos, formais, higiénicos e sociais relacionados à arquitectura – passou-se a uma arquitectura com tendência à abstracção.”
 “Com as vanguardas do princípio do século XX e a sua posterior expansão em um movimento de alcance internacional, a arquitectura  - a cultura e a arte em geral – deram um salto sem precedentes na história.”[7]




 
Owen
                        
                        Familistério de Godin

                       
                        Interior dos apartamentos dos operários


Manuela Pereira, Clube de Leitura_ 26 Mar.2011    O Paraíso na Outra Esquina, Mário Vargas Llosa_2003


[1] Gideon, Siegfried, Mécanisation au Pouvoir
[2] Fourrier, Charles, Aviso aos civilizados a respeito da próxima metamorfose social
[3] Dicionário Enciclopédico Hispano-Americano,  Fourierismo
[4] Segundo G. Bardet, a palavra Urbanismo parece ter sido usada pela primeira vez em 1910 no Bulletin de La Société.
[5] in  www. Utopias. com
[6] in www.doportoenaoso.com
[7]  Montaner, Josep Maria,  Después del Movimiento Moderno. Arquitectura de la segunda mitad del siglo XX, Gustavo Gili, Barcelona, 1999. (Depois do movimento moderno, Arquitectura da segunda metade do século XX, Gustavo Gili, Barcelona, 2001) p.7

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