domingo, 27 de fevereiro de 2011

Paraíso II



Expulsa do Paraíso

Tragédia em três actos numa dependência da Optimus

por Manuela Pereira

Personagens


Uma funcionária
Um funcionário
Uma rapariga
Uma aposentada
Uma trabalhadora
Uma mulher
Coro de homens
Um corifeu


É um dia de Fevereiro frio e muito chuvoso.
Ao meio da tarde as nuvens negras já se tinham vindo acumular sobre a dependência da Optimus. Anunciavam tempestade.
Lá dentro as pessoas aguardam numa atmosfera parada e quente continuamente rasgada por toques de telemóvel e por conversas privadas gritadas ao telefone.
O quadro electrónico com as suas letras A, B, C, D e E, respectivos números e caixas de atendimento, brilha, vermelho, destacando-se das luzes com reflexos amarelados.  


I Acto


Entra a rapariga.

(Desequilibra-se um pouco. Usa uns botins com tacão de 10cm, leggings pretas, duas ou três camisolas desencontradas e piercings nas orelhas.)

RAPARIGA
Desculpe, onde se tira o ticket?
APOSENTADA
Ali, debaixo daqueles números.
(Traz uma carteira pesada sobre o casaco de malha cinzento e tem o cabelo branco.)

RAPARIGA
Está muito demorado?
APOSENTADA
Não sei dizer, mas está aqui muita gente…Acabaram de chamar a letra C8.

RAPARIGA
Então… Obrigada.
FUNCIONÁRIO
E 7 !
(É jovem, magro, barbeado e vestido de preto e parece obcecado com o que se passa no écran do computador.)
APOSENTADA
Então isto não roda automaticamente?! O senhor passou à frente o D 5! Depois do C é o D, não é o E!

TRABALHADORA (ao telefone)

espera aí que já te digo, estou aqui na Optimus… Isto é uma pouca vergonha a gente tanto tempo aqui à espera! Só para  pagar uma factura, olha o tempo que aqui estou! É que a minha filha esqueceu-se de pagar , deixou passar o prazo…

(Tem um ar satisfeito e bem disposto e um corpo avantajado apertado dentro de um casaco com botões; está corada e atenta a tudo, enquanto faz má língua ao telefone.)

                                     MULHER
O aparelho está avariado e depois é isto… vão uns à frente dos outros que já aqui estavam ao tempo!

(Apesar de ser baixa, as jeans não cobrem totalmente as botas de plástico, a condizer com a carteira preta também de plástico; os seus cabelos ruços quase até à raiz, frisados há muito, estão apanhados num rabo de cavalo que lhe chega até meio das costas, por cima do Kispo almofadado.)


FUNCIONÁRIO
Minha senhora, aqui não vai ninguém à frente de ninguém! As pessoas são atendidas por ordem de chegada.

APOSENTADA
Se é por ordem de chegada não é preciso tanta letra! Ponham só os números: 1, 2, 3, 4… e assim as pessoas até ficam a saber quantas pessoas têm à frente! Desta maneira não se sabe nada. Nem se pode ir tomar um café enquanto se espera!

A rapariga olha para a aposentada, encolhe os ombros e sai.

II Acto


MULHER
Que pouca vergonha!
CORO
Oh senhora! Isto aqui vai cada um na vez que tem que ir!
(Os homens têm formatos e tipos variados: há altos com gabardina e olhar sádico, bonacheirões com casacão forrado a pêlo, cachecol por cima e boné também e ainda outros figurões. Formam uma mole humana que se desloca lentamente e se mantém em continuo movimento.)
TRABALHADORA
espera aí…Vai cada um na vez que tem que ir, não! Aquela senhora tem razão! Isto está avariado e eles chamam os que querem, à vontade deles!…diz
CORO
Não é assim, não é assim…
MULHER
É assim, é. Eu estou aqui há um ror de tempo e ainda não fui atendida… e quantas pessoas já chegaram depois de mim e já foram atendidas?!

CORO
É porque iam para outra secção…
MULHER
Mas qual secção, qual secção? Eles são dois. Estão a atender as secções todas! Não há um para cada secção…
CORO
Mas se é por hora de chegada…
MULHER
Então, se é por hora de chegada diga-me (mostrando o ticket) porque é que eu estou aqui desde esta hora e ainda não fui atendida e outros que chegaram depois de mim já se foram embora?
CORO
Isso é impossível, minha senhora!
MULHER
Impossível?! Olhe, impossível é eu carregar o telemóvel, na sexta ao fim da tarde, não fazer nenhuma chamada e tirarem-me dinheiro! Isso é que é impossível e aconteceu. Por isso é que eu aqui estou. Que eles hão de me devolver o dinheiro. Ai isso hão de…
CORO
Isso às vezes acontece.
MULHER
Mas não pode. Isso não pode acontecer.
FUNCIONÁRIA
A 21!

(Usa óculos de marca e o cabelo escorrido pelos ombros tem reflexos de cobre. O vestido  preto, de manga curta, está debruado a cor-de-laranja Optimus. Tem uma cara aguçada e também ela parece não conseguir desviar os olhos do que se passa no monitor do PC.)

MULHER
Está a ver? Olhe, lá vão mais uns à minha frente!
CORO
É porque chegaram primeiro!
MULHER
Mas chegaram primeiro o quê? Então, eu não os vi chegar?
Só se o relógio também está avariado…

(Risos)

MULHER
Já agora… A senhora diga-me, por favor, que hora tem no seu papel?
APOSENTADA
16h05
MULHER
Vê, vê? Se eu não digo! O meu tem 16h07 e eu já aqui estava quando a senhora chegou!
Isto não pode ser, ó menina! Agora é a minha vez. Quero reclamar…
FUNCIONÁRIA
Se quer reclamar tem de ser por escrito. Nós somos funcionários só cumprimos ordens, não temos nada a ver com isso!
TRABALHADORA
espera só um momento… Por escrito! Não que isso agora é que nos vai adiantar alguma coisa!!! ´Ó menina, atenda lá a senhora que está aqui há muito mais tempo do que eu… isto é incrível

Saem as pessoas que estavam a ser atendidas.

 

III Acto


FUNCIONÁRIO
B 13! Faça favor de dizer.

MULHER
Olhe, eu estou aqui porque me tiraram dinheiro do telemóvel e isto assim não pode ser!
Então, eu carrego com 12 euros e meio, na sexta à noite, mais o que ainda lá tinha, que não era muito, e no sábado de manhã já só tinha 11 euros! Como é que é?
FUNCIONÁRIO
Nós aqui não tiramos dinheiro a ninguém. Deve ter feito uma chamada.


MULHER
Mas se eu lhe estou a dizer que não fiz chamada nenhuma! E se fizesse… olhe que chamada não havia de ter sido! Para aí mais de dez minutos, não?
FUNCIONÁRIO
Mais, mais!
Mas tem aqui uma chamada efectuada!
MULHER
Mas se eu lhe digo que não fiz nenhuma chamada! Nem tem aqui nada registado…
FUNCIONÁRIO
Se não tem registado é porque apagaram…Deixe cá ver o telemóvel.
(…)
E apagaram mesmo. Mas foi efectuada uma chamada.
MULHER
Ai! Só se foi a minha neta! Já há um tempo que eu ando a desconfiar dela… Ora veja lá para onde foi?…
CORO
Ó senhora, deixe lá a neta. Até pode nem ter sido ela.
MULHER
Não, não. É que já há um tempo que ando a desconfiar que ela…
CORO
Deixe lá a menina. Isto são coisas que acontecem…
UM CORIFEU
Um dia, num ginásio, deixei o telemóvel no vestiário e gastaram-me 40 euros em chamadas. São coisas que acontecem…
MULHER
Mas não pode! Não pode acontecer!
O senhor veja lá a que horas foi e para quem é que foi que marcaram que eu quero isso tudo, por escrito, muito direitinho.
Ela vai ver! Quando eu chegar a casa…

FUNCIONÁRIO
Não sei se posso dizer-lhe…
MULHER
O quê? Se não me disser tudo direitinho então tem que me pôr o dinheiro no telemóvel!
FUNCIONÁRIO
(após mais uns  minutos de olhar fixo no computador)
A senhora tem o BI consigo?
MULHER
Por acaso até tenho.

Mete o guarda-chuva de encolher entre as pernas e procura na carteira.

MULHER (entregando o BI)
Ora se faz favor.

O funcionário escreve num papel.

MULHER
Ainda vai demorar muito?
FUNCIONÁRIO (mostrando o papel)
É este o nome e o número. Sabe quem é?

Silêncio total. Todas as atenções concentradas na resposta.

                              MULHER (depois de uma pausa, balbuciando de lágrimas nos olhos)
Siiim.
Sei quem é… essa senhora!
Muito obrigada e desculpe.

Sai branca e de cabeça baixa. Sem ruído.
Mantém-se um silêncio  de consternação quebrado momentos depois pelo funcionário.

FUNCIONÁRIO
C 9 !


                                                              FIM



Manuela Pereira                                                                                            Fevereiro2011


Sem comentários:

Enviar um comentário