A viagem já começou.
Afinal, duas salas.
Nasci em Viana do Castelo e aí vivi até aos 10 anos num grupo familiar constituído pelos meus pais, avós maternos e tia Celeste, irmã solteira da minha Mãe.
Sou filha única.
Viver em Viana há mais de meio século significava ter um grande espaço vital: desde crianças passeávamos pela cidade com bastante liberdade, controlavam-nos as horas de chegar a casa, não os espaços por onde se andaria. Jogava-se na rua a macaca, o passará, o pilha e, no Campo da Agonia, as cordas e o mata, que requeriam maior largueza. Para casa ficavam os deveres da escola, as leituras, os desenhos e a costura de roupinha para as bonecas. Os rapazes, mesmo os meus primos e os irmãos das minhas amigas, não participavam em nada disto. Desprezávamo-nos mutuamente.
Vale esta introdução para organizar as minhas próprias ideias. Porquê? Se aceito descrever uma sala com significado na minha vida tenho que fazer alguma escolha mas, seja qual for a escolhida, ela será sempre um sucedâneo das grandes salas que foram o Campo da Agonia, o recreio escolar, o Largo de S. Domingos e o Jardim Público de Viana do Castelo nos anos 50.
Mas vamos ao que interessa, embora com outro pequeno preâmbulo, pois não posso dizer da sala se não contar um pouco do seu invólucro, a casa. Ela existe ainda hoje íntegra, mas vou falar no passado, pois a ele me remeto. Casa grande, muito grande, arquitectura “de brasileiro”, com mirante, jardins recortados a buxo e todos os ornamentos interiores que convinham a essas habitações oitocentistas – rabioscas de estuque nos tectos, retratos do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral pintados na parede da entrada, imensas portas cuja função era baterem com as nortadas, fios eléctricos retorcidos que terminavam numas tomadas de loiça branca. Na frente, um alpendre com uma escadaria de pedra permitia aos vaidosos uma saída de casa com pose à Tyrone Power[1].
As salas.
A minha avó, dona da casa e sua figura tutelar, fora professora primária até pouco antes de eu nascer. Após a reforma, ou seja, no meu tempo, preparava anualmente para o exame de admissão ao liceu um bom número de miúdos a cujos pais cobrava uma mensalidade. Tal missão era levada criteriosamente a cabo na primeira sala que vou descrever, a sala de aula lá de casa. Aí, desde que me conheço, desenhei primeiro letras e depois frases a giz de cores no quadro preto, aprendi onde ficava Lisboa e o Rio de Janeiro, tomei conhecimento de pesos e medidas e até de um ou outro subafluente que saía da sua pacatez de regato sempre que a minha avó se lembrava de fazer revisões.
Era uma sala luminosa, com duas grandes janelas de guilhotina e duas portas, ambas dando para o corredor, assim cumprindo o esbanjamento de portas que toda a casa exibia, sabe-se lá porquê. Dentro, duas mesas com cadeiras a toda a volta, a secretária da minha avó, um cabide de parede com vários ganchos de ferro para os casacos; o quadro preto com a sua prateleira para o giz e o ponteiro, este destinado a apontar para a lousa, para os mapas e para as regiões anatómicas dos alunos que nos momentos oportunos estivessem a jeito. De informação impressa, o mapa de Portugal, o planisfério e os pesos e medidas em três belos exemplares de cartazes, cada um suspenso na parede pelo seu prego. A miudagem chegava pelas duas horas, sentava-se à volta das mesas e começava a laborar nas tarefas do dia prescritas pela minha avó, que entrava e saía segundo os apelos de dona de casa ou de mestre-escola. A meio da tarde o recreio estabelecia uma espécie de risca ao meio pedagógica: brincados e lanchados durante uns minutos, passavam a prestar contas – nem sempre pacíficas – da ciência acumulada. Eu, livre de responsabilidades académicas até aos sete anos, aí ia treinando os ouvidos e os miolos para as provas dos nove, as linhas de caminho de ferro, as tabuadas e os cês de cedilha.
Desde sempre tive a convicção de que nessa sala se passava o que era verdadeiramente importante naquela casa, embora só muitos anos depois tenha sido capaz de o reconhecer, recordando-o. Alguém que eu muito amava – a minha avó – aí dominava pela imensidão de coisas que sabia[2], sucessivos grupos de rapazes e raparigas devotados à responsabilidade de demonstrar em exame não um qualquer saber, mas o saber que naquela sala, daquela casa, dia a dia se acumulava, segundo uma ordem que era para mim a própria ordem do mundo. Fora dali, o verbo passava a laico, material, prosaico, funcional, maravilhosamente caótico também.
Outra função daquelas duas portas da sala, estou agora a descobri-las: separar o sagrado do profano. Claro que, então, o profano, o recreio, o resto do mundo, enchia-nos de maior júbilo.
Por oposição a esta sala séria, laboriosa, exigente, austera não fosse a pequena desordem de pastas e cadernos por ali dispostos, havia lá em casa uma outra fútil, supérflua, com o seu quê da languidez de cenário teatral em peça de amores clandestinos.
A outra sala.
Ficava logo à entrada, a ela pertencia a primeira porta a dar para o hall do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral. Lá dentro, outra porta iniciava a enfilade desse corredor e o delírio de portas comum a toda a casa.
Era a sala de visitas segundo o seu nome de baptismo, estatuto e efectivo proveito. De dimensões, não era maior do que a sala de aula. A sua singularidade era feita de flores e esquadrias de estuque no tecto, de paredes forradas com papel de cor, de reposteiros de renda nas suas três portadas e outros luxos que passo a descrever, assim encontre as palavras de veludo que toquem sem ferir em tudo aquilo.
Por deficiente informação, não sei bem se toda ou só uma parte daquela mobília foi comprada com a casa. A verdade é que se distinguia de tudo o resto pelo seu luxo, estado físico e distância cerimonial. Enquanto os outros compartimentos se limitavam a albergar os objectos essenciais à vida quotidiana e estes eram todos sólidos, triviais, fracotes, sem estilo, os daquela sala transpiravam a elegância que, no espírito poupado da minha avó, devia durar até à eternidade.
Passo a descreve-los com a meticulosidade que merece a sua gravidade no espaço que lhes cabia: três portadas abertas sobre a varanda coavam a luz com os seus reposteiros de renda branca. Duas portas com bandeiras em vidro, papel de parede com florões verdes sobre fundo num tom mais claro. Um canapé de contornos de madeira e estofo aveludado vermelho escuro, estofo idêntico a dois cadeirões e várias cadeiras distribuídas com harmonias simétricas, pontificava na área principal. Frente ao canapé, uma mesinha cujo estilo se replicava em duas outras encostadas às paredes. Sobre estas, mas a elas ligados, dois espelhos iguais de grande dimensão, moldura dourada e talha na parte superior da esquadria. Há pouco soube que em língua de mobiliário essas peças se chamam tremós. Entre uma das portadas e a porta de passagem para o outro compartimento, uma espécie de cómoda, com um só gavetão de barriguinha, carregava um relógio de mesa ladeado por duas peças que poderiam ser jarras ou candelabros, a minha memória a claudicar perante esse adorno simétrico. O relógio batia horas, meias e quartos num tilintar fininho que o distinguia do do corredor, de voz engasgada. Pontificando no tecto, um lustre de braços, metal dourado e vidrinhos, com os fios eléctricos escondidos por uma passamanaria encarnada a terminar em borla. No chão, uma carpete cujos detalhes esqueci por completo. Sobre o canapé, uma grande gravura exibia um homem antigo discursando perante uma assembleia, em poses tão tristonhas que nunca me despertaram o desejo de saber de quem se tratava. Não me lembro de outros quadros, mas recordo que havia um cinzeiro, um par de jarras (hoje minhas) e uns quantos objectos a decorar.
Todo este cenário elegante estava mumificado debaixo de panos brancos a maior parte do ano. Quem tratava do asseio doméstico ia lá somente para arejar, limpar o pó, mimar a sua quietude de bela adormecida. O privilégio de aí penetrar era reservado àqueles raros cuja dignidade excedia as nossas pessoas e os que nos frequentavam habitualmente. E, mesmo entre esses, havia que distinguir os recebidos com os panos de guarda-pó e aqueles a quem era franqueada a sala em todo o seu esplendor de adamascados. Se me lembro, só cabia nesta última categoria o compasso da Páscoa, que aí começava beijos e bênçãos, antes de passar ao vinho do Porto e pão-de-ló na sala de jantar. Esse lapso de vida da nossa sala era preparado pelo menos uma semana antes com o laborioso ritual de purificação. Os panos brancos eram retirados dos móveis, lavados e expostos ao tempo num mal cuidado relvado, para o efeito despromovido à categoria de coradouro. Purificados e prontos para o eterno retorno iriam de novo cobrir os móveis daí a dias.
Ao contrário da sala de aula, ficou-me a impressão de que ninguém ligava muito a esta outra sala, tão retirada da vida quotidiana quanto um vestido de baile fechado num armário, no seu sono de naftalina. Os próprios panos brancos que mal deixavam adivinhar os contornos dos móveis encarregavam-se de transformar em fantasmas aqueles corpos mumificados. O seu mistério, afinal fruto da penúria e da inabilidade da minha família para lidar com o luxo, fê-la perdurar na minha memória com a nitidez das coisas excepcionais. Mais tarde, com outro desafogo financeiro e outros hábitos de consumo, esses móveis foram fazendo parte da vida de todos os dias desocultados, descobertos, revestidos à moda e ao gosto de quem os herdou.
De tudo aquilo, chegou até mim um par de jarras de vidro pintado, que sintetizam na sua decoração rebuscada o esplendor da sala de contos de fadas da minha infância. Conservo-as sobretudo pela memória que dela construí já na idade adulta, porquanto, na época, a sala de visitas, na sua respeitabilidade burguesa, grave e simbólica, ficava completamente fora do quotidiano de todos nós.
Conceição Rocha
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