INFÂNCIA
Desde essa altura, pergunto-me sempre quais são as invisíveis relações que determinam a nossa vida e que fios as unem.
W.G. Sebald
Prefiro lembrar os momentos em que a minha infância foi só feliz.
Pensar no tempo em que me sentia protegido. Do tempo em que pensava ter um destino especial só para mim.
Do tempo em que vivia no paraíso.
Nascido em Bragança, a “minha terra” sempre foi, e é, Miranda do Douro.
Nesse tempo, há já muito tempo, os Setembros e os Natais eram esse tempo de felicidade absoluta. Mas, como sempre, eram tempos fragmentados pelos quais aguardava o resto do ano. Já nesse tempo tinha consciência da descontinuidade do estado de felicidade.
Menino da cidade, regressava à aldeia de toda a minha família (avós, pais, tios, primos) nesses dois períodos do ano. Regressava ao meu paraíso.
Na casa grande, aguardava-me sempre a minha avó, de quem sempre me lembro vestida de negro, com uma presença tão certa quanto a do grande rochedo que se situava nas traseiras da casa grande.
Eu era um pequeno príncipe no meu pequeno reino de abundância.
Os dias.
No verão os dias eram madrugadores. O sopro quente do vento de Castela rapidamente convidava a sair da cama e explorar veredas entre campos de pastagem e de cultivo, as vinhas de videiras baixas, os pastos do gado que se localizava ao longe pelo som dos chocalhos e das campainhas.
Já nessa altura me surpreendia a quantidade de muros de pedra sobreposta, cobertos de musgo, que, qual pequena Muralha da China, num trabalho gigantesco e secular separavam propriedades, atestando o sentimento de posse absoluta dos seus donos.
O canto de pássaros ocultos ou o som rápido e martelado do pica-pau eram o contraponto do som inquietante dos besouros.
De quando em vez o dia fazia-se noite com estranha rapidez, e desabavam trovoadas tão intensas que deixavam atrás de si um rasto de histórias trágicas de perdas e mortes.
Mas o momento que preferia era o fim da tarde, incendiado de cores quentes e já quase outonais, quando, no terreiro em frente à casa grande, via os animais regressarem dos pastos e os carros de bois a arrastarem-se lentamente, com um gemido de esforço nos eixos equivalente ao esforço dos animais que os puxavam.
Paravam para beber no tanque quase em frente, levantando uma nuvem de poeira que por vezes obscurecia o ar.
(Constable haveria de gostar).
As noites
Lembro-me do silêncio absoluto, quase opressivo, das noites de estrelas. Então, a Ursa Maior era o “Sete Estrelo”, a Via Láctea o “Caminho de Santiago”, e Vénus a “estrela boieira”.
Ao longe avistavam-se as luzes das aldeias de Espanha e o clarão luminoso da barragem acabada de construir na cidade.
Por vezes, nas noites de Inverno, ouvia-se o uivo dos lobos nas redondezes, e sentia um arrepio de frio ainda mais intenso.
Os pés faziam ranger a geada que não se desfizera ainda desde a noite anterior.
A luz escassa das candeias adensava os mistérios da noite e fazia de qualquer movimento um teatro de sombras chinesas. Por vezes ficava muito tempo a observar o movimento das línguas de fogo na lareira até se tornarem só cinzas. Era um tempo muito antigo.
Do outro lado, sentada no banco comprido, silenciosa, a minha avó balouçava repetidamente a perna cruzada, num gesto que eu herdei.
As minhas primas, bem mais velhas que eu, contavam-me com prazer histórias que sabiam que me assustavam (e que prazer eu tinha em ser assustado!).
Essas memórias persistem numa língua antiga, que percebia mas não falava:
o mirandês.
(mais tarde, e para surpresa minha, a avó já não estava, e a casa grande ficou maior, mais vazia, mais fria).
O olhar
Aos cinco anos a minha família mudou-se do Porto para Viseu.
Aos domingos, envergonhado, ia à missa na Sé. Não sentia vergonha pela missa, mas porque ia vestido de igual, ao lado do meu irmão gémeo.
Nesse tempo, a missa em latim era para mim um ritual misterioso. Sabia-a de cor sem saber o que dizia.
No largo fronteiro à Sé situa-se o Museu Grão Vasco.
Num desses domingos, depois da missa, o meu pai levou-nos ao Museu.
Era, nesse tempo, um edifício sombrio, quase lúgubre.
Não me lembro de nada do que vi a não ser de um único quadro, a pintura de que guardo a memória mais antiga: O “São Pedro” de Vasco Fernandes, o Grão Vasco.
E como me lembro!
O deslumbramento com a mestria técnica (parecia-me real e essa realidade inquietava-me), os panejamentos, as paisagens e personagens nos arcos laterais, a posição da mão direita com dois dedos estendidos e a esquerda sobre um livro.
Mas o que de mais intenso guardei foi o olhar. Aquele olhar que me seguia, que me esmagava, que me censurava (não sei porque me censurava, sei que me censurava).
Esse mistério do olhar do São Pedro de Grão Vasco persistiu para sempre.
Vi-o muitas mais vezes, com um olhar diferente, mas esse primeiro olhar ficou para sempre. Até hoje.
Quais são as invisíveis relações que determinam a nossa vida e que fios as unem?
Orlando Falcão
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