quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Memórias VII



Istambul de Orhan Pamuck








Mapa de Portugal pregado na parede, eu recitava as estações e apeadeiros da linha do Douro (bem queria aqui dizê-las, mas só me lembro da Régua, Pocinho e Barca d’Alva) da linha do oeste (nem uma) e de todas as linhas de Angola e de Moçambique. Tentava depois situar na carta os sistemas montanhosos para ver se a minha memória visual ajudava a outra, aquela que eu tinha de ocupar com os rios e afluentes de todas as águas do Império.



São muito prosaicas as memórias que hoje partilho com todos, mas o livro que aqui nos trouxe e este espaço que é a escola fizeram avivar sensações passadas e resguardadas na memória dos afectos dos momentos mágicos de compreensão do mundo e dos saberes.
Eram muitas vezes, de inverno, sobretudo de inverno, os serões à volta de uma mesa na pequena sala em que, por vontade familiar, não havia televisão.
 Lembro-me do inverno, sobretudo do inverno que permitia uma sensação de aconchego bendito, quando, chegada da escola, do frio e da chuva, me sentava a fazer os deveres (tarefa com nome de safado, abrenúncio excomungado, nos dias de hoje!). Vinha da escola, sempre a pé e sozinha, não por falta de automóvel na garagem nem de quem me fosse buscar. Vinha a pé e sozinha porque era assim que acontecia, naturalmente, naquele tempo. A sala da costura era então, aos serões, a sala dos encontros, de conversas, de partilhas, de passagens de testemunho que eram aceites, confortáveis, saborosas.
A pequena sala tornava-se acolhedora pela presença da minha avó, da minha mãe, e da braseira (não recordo a ordem destes factores!) que crepitava na mesa redonda, sob a mantilha, essa instituição que recordava campos de batalha com os castelhanos, imagens construídas no meu imaginário com a ajuda das figuras sinistras do meu livro de História de Portugal.
Mapa de Portugal pregado na parede, eu recitava as estações e apeadeiros da linha do Douro (bem queria aqui dizê-las, mas só me lembro da Régua, Pocinho e Barca d’Alva) da linha do oeste (nem uma) e de todas as linhas de Angola e de Moçambique. Tentava depois situar na carta os sistemas montanhosos para ver se a minha memória visual ajudava a outra, aquela que eu tinha de ocupar com os rios e afluentes de todas as águas do Império.
(Recordo que mais tarde, o meu filho, perante outros saberes exigidos pelo seu livro de história, com esforço e vontade de estar a brincar em vez de, havia de me dizer com sabedoria de criança: Por que estás a querer que eu saiba isto, mãe, se tu também estudaste e já esqueceste?)
Mas nesse tempo havia a Glória. A Glória que me fazia parecer inteligente já que, com a minha cabecinha de menina instruída bem confortável, papagueava o que ela só sabia por conhecer o frio da água do rio da sua terra onde ia lavar alguidares de roupa, ou o comboio que a trouxe até à cidade, depois de calcorrear a pé a distância da sua aldeia até à estação mais próxima.
A presença da Glória acrescentava o meu aconchego, não sei se por avivar em mim a consciência da sorte que eu tinha em ter de estudar tudo aquilo, se por poder acrescentar alguma utilidade àquele esforço, ensinando à Glória o que ela não tinha aprendido. Fosse o que fosse, estes serões foram-me mostrando que era disto que lá em casa se falava quando, entre adultos, se diziam à boca pequena todas as injustiças da época.
A Glória chegou num dia de Inverno, vinda de uma aldeia sem electricidade, nos confins do interior do Concelho de Amarante. Chegou descalça, com uma saia de chita e um lenço de homem embrulhado como uma trouxa de roupa onde cabiam todos os seus pertences. Do arrepio que senti ao vê-la, ainda hoje tenho memória: naquele momento senti o frio que fazia na minha rua, o frio da glória e todos os frios do mundo. Foi um arrepio intenso que ficou marcado bem fundo, até hoje, para sempre.
Por onde andas tu, Glória?

Maria da Luz Rosmaninho
Escola Artística de Soares dos Reis, 3 de Fevereiro de 2011

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