domingo, 6 de fevereiro de 2011

Memórias III

OLEIROS, AQUELA CASA GRANDE…

« As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras
nem delas careço.»
(Carlos Drummond de Andrade, Antologia)

Creio que já o disse uma vez: o mundo que herdámos de crianças, na sua miscelânea de imagens, sons, cheiros, sabores, cores e formas, configurando uma "gestalt" muito domesticada pela nossa subjectividade reflexiva, passou a fazer parte da nossa memória autobiográfica. E se Umberto Eco afirma, em entrevista dada à revista "Ler"( nº.65), que das várias memórias, conforme estudou, esta é a única que se perde, eu penso que é exactamente ao contrário e é esta que vive connosco, nos alimenta os sonhos e os desejos e nos reconforta a alma, a partir desse longínquo e agora pouco acessível paraíso de pássaros e de ninhos que é sempre o lugar da infância. A partir do seu ponto do horizonte de onde se traçam todos os nossos fios de azul.

E foi assim que o meu sabor a fado, ao gosto particular por aquela voz magoada que me tolhe o ser de uma tristeza linda ou "lindica", como por cá se usa quase cantar, me foi trazido lá de longe, da voz de um tanque onde uma mulher lavava solitária, ao longo de toda a minha meninice, a roupa triste dos seus e a sua saudade. Assim eu por lá passasse agora, a provar a melhor água do mundo, água de Froia, saída de debaixo de um penedo grande, e a mulher lá continuava a bater os lençóis, esfregando a sua brancura na pedra do lavadoiro, como que a justificar as palavras de Pedro Homem de Mello pela voz imortal da Amália: "Povo que lavas no rio". E este poeta, que nasceu há mais de cem anos, que eu depois conheci pessoalmente, sempre esticadinho e vaidoso, impecavelmente vestido, penteado e beato, de missa diária, fumando incessantemente cigarros pelas Boavistas, nas minhas portuenses andanças
estudantis de pobre aprendiz da vida e dos estudos foi-me trazido pela canseira de um mestre – o saudoso e bom padre Soares – esse homem bom que me ensinou a amar as letras e a gostar de literatura, a escrever com observância daquela velha máxima “Le style c’est l’homme”. Propunha-nos, por exemplo, que em vez de falarmos no vale verde que se espraiava à nossa frente, poderíamos escrever que, “nessa planura onde o divino pintor se distraiu e entornou a malga do caldo verde”…E, quanto mais não fosse – e foi-o de uma forma indelével -, levava-nos a decorar as listas completas das obras dos autores coevos. E lá estava o "homem do folclore" com os seus "Jardins Suspensos", o seu "Segredo", o seu "Pecado", até à sugestiva "Grande, Grande Era A Cidade". De que trataria este misterioso título? A quem encantaria assim um tal fascínio urbano, se outro grande poeta desses tempos imaginava, de modo apocalíptico, no meio daquilo que “Havia Na Cidade” um grande incêndio que a “purificasse de vez” de todos os seus males? (José Régio, in “Cântico Suspenso”).
Pois Oleiros foi aquela primeira universidade que eu tive. Quase definitiva. Não lhe chamo a minha "manhã submersa" ou espécie de reclusão para onde era costume atirar os meninos que, por razões várias, quase sempre sociais, teriam que "estudar para padres", "escolhendo" aquela "vida bonita", em alternativa à condição natural de párias de um tecido social pré-estabelecido pelo destino "salazarento" e imobilista, ou "por Nosso Senhor". O seminário deu-me a erudição do latim, a prosápia desta escrita mais ou menos escorreita, um ouvido musical que… mais ou menos desafinado em bandolins que serviram de iniciação a uma aprendizagem que se finou no meio das declinações, em colcheias e semifusas, numa grande dificuldade na aprendizagem das físicas e das matemáticas, e o mundo todo, cheio, compacto das humanidades, da poesia, esta janela aberta para o imenso vale dos afectos, da abertura aos outros e à comunicação, à necessidade de compreensão e à solidariedade. E as aventuras, as maroteiras arrapazadas que tanto exaltavam as brincadeiras inocentes, como fosse o jogar aos "cow-boys" na imensa mata, com pistolas à Kit Carson, em busca do Búfalo Bill, em todos os intervalos das aulas, "instruídos" pela "pedagogia" de uns livrinhos que se alugavam, à semana, no primeiro andar do felgueirense café Belém e que valiam todos os compêndios das aulas, ou fosse a assimilação dos pequenos prazeres iniciáticos da vida, saltando para os Eças e até para os Balzacs, lidos às escondidas, por entre as baforadas "laicas" e demasiado precoces dos primeiros cigarros, marca Sintra, e outros pecadilhos juvenis.
Passei um destes dias precocemente primaveris à frente de Oleiros, estrada fora, de carro. Estremeci. Uma grua anunciava-me obras. E logo deparei com paredes nuas e céu aberto por detrás. Depois me serenaram: que não há razões para temer o desditoso fim do camartelo. Afinal tratava-se apenas de um restauro, porque o velho casarão da nossa infância estava a ameaçar ruína. Não, não estou a revisitar Freud e as metáforas da vida. A verdade é que precisamos de Oleiros. Da comunidade vicentina que por lá mora e que exerce o seu trabalho apostólico, tão criterioso quanto exigente, compondo a geometria das almas dessas paróquias vizinhas, a partir da regra do santo dos camponeses de além Pirinéus que revolucionou a sociedade aristocrática parisiense do século XVII (S. Vincent de Paul), sobretudo pela Palavra Evangélica que tão carenciada se torna nestes tempos de descrença e de crise social instalada. Da traça bretã e afrancesada do seu edifício amarelado e preto, com imensas janelas. Ali implantado, de súbito, no verde da encosta. Tão só porque ele é património da nossa memória autobiográfica, como que a escrever com ele, um a um, todos os nossos sonhos feitos fios dessa complexa teia com que se constrói a vida.
José Melo (de Filosofia)

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