quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Memórias VI







OÇLACSED RADNA ODIBIORP É


São poucas e vagas as recordações dos anos anteriores à minha vinda para Portugal em 1961. Lembro-me do grande quintal da nossa casa, da celha onde se lavava a roupa e onde eu gostava de molhar os pés, das pratinhas de chocolate que eu olhava fixa e intensamente até trocar os olhos, das histórias que a minha irmã Mimosa contava aos mais novos… (A minha preferida era a que começava por: “Conta, conta, Vó Capinha, a história daquela moça que numa noite de lua, toda nua, toda nua, o jacaré engoliu.” Eu repetia vezes sem conta o estribilho inicial, deleitando-me nas palavras que provocavam em mim simultaneamente o encantamento e o temor).

Mas todas essas memórias são vagas e não consigo descortinar se as imagens que chegam hoje até mim se constituem efectivamente como memórias ou se, à força de terem sido sucessivamente evocadas nas conversas em família, eu não terei acabado por me autoconvencer que de memórias se tratavam.
O que eu recordo mesmo, com grande acuidade visual a que se junta a memória do cheiro das mangas, era o descampado que havia ao lado da nossa casa e para onde nós, os mais novos, livres de escola e de obrigações corríamos sempre que podíamos. Aí, longe de sentimentos adultos incompreensíveis, eu a minha irmã Calina e o meu irmão Quim, sentindo a terra nas plantas dos pés, penetrávamos na “densa mata” e brincávamos em liberdade, embora sob o olhar vigilante da mãe ou do Pedro (o nosso criado, como então se dizia) que de vez em quando nos iam espreitar. Um dia, um amigo do meu pai – surpreendendo-nos em plena brincadeira, descalços e felizes – não resistiu a tirar-nos uma fotografia. Pediu-nos que posássemos para o retrato, mas foi um instantâneo, bem diferente das fotografias de pose que tirávamos regularmente no estúdio do fotógrafo, para mandar à família da metrópole: “Para a avó Carolina /tia Maria /tia Amélia /tia Margarida (consoante o caso), com beijinhos dos netinhos / sobrinhos Carolina Maria, Margarida Amélia e Joaquim José.”
Perante o pitoresco dos “três da vida airada” captados em plena aventura na selva, o meu pai, achando-lhe graça, apreciou os dotes artísticos do amigo e enviou a foto à nossa avó para que visse os netos, sem artifícios, numa manhã de brincadeira. O episódio, porém, deu lugar a um grande desaguisado familiar cujos contornos só mais tarde vim a conhecer, por conversas que ouvi dos mais velhos. Na verdade, essa foto fora motivo de grande desgosto para a minha avó que, na volta do correio, em guisa de resposta à ofensa, nos enviou uma encomenda com três pares de sapatos.

Estava-se em 1961. No Portugal de Salazar era proibido andar descalço. Como poderia ela mostrar às suas amizades um retrato dos netos em contravenção, numa postura de gente pobre, sem recursos? A minha avó era uma daquelas “almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século” que tinha encontrado no discurso do ditador o conforto das grandes certezas. Nunca discutiria a autoridade ou o seu prestígio. Queixando-se às minhas tias, lastimava-se: “Como pôde o vosso irmão fazer-me isto? Tivessem ao menos os meninos umas alpercatas como as leiteiras ou as padeiras…”
Cerca de dois anos depois da data assinalada na foto da contenda, tive o “privilégio” de ser escolhida, juntamente com a minha irmã Calina para entregar o ramo de flores ao Presidente Américo Tomaz no dia da inauguração da nossa escola, a Escola Primária nº 38, na rua de Costa Cabral. A directora, a D. Gilda, que era também a nossa professora, a pretexto de que éramos ambas boas alunas, escolheu-nos a nós as duas. Só mais tarde percebi (não sem uma pontinha de orgulho ferido), que a escolha se prendia mais com o facto de nós sermos as únicas meninas escurinhas da escola (selecção ideal para ilustrar que Portugal era um país multicultural e pluricontinental) do que propriamente com as notas que obtínhamos nas provas. Por causa dessa escolha, viria eu, mais tarde, no fervor das convicções da adolescência, a lamentar essa mancha, afirmando “ não ter passado, mas cadastro”.
Valha a verdade, porém, que esse acto solene teve o mérito de nos reconciliar em fotografia com a nossa avó. O seu orgulho inchava cada vez que exibia às pessoas amigas um retrato em que surgíamos irrepreensivelmente calçadas com uns bonitos sapatinhos de verniz, numa postura absolutamente conforme às normas decretadas pela Nação.

                                                                                                              Margarida Mouta

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