sábado, 4 de novembro de 2023

 

    O Universo Editorial Espanhol


por Delfina Rodrigues

 

Em jeito de preâmbulo, um olhar em diagonal pelas pequenas maledicências e diatribes entre escritores.

 “Nadie es tan necio que admire a Miguel Cervantes”

  Assim falava Lope de Vega referindo-se ao aclamado escritor espanhol, que depreciativamente apelidava de “o manco de Lepanto”1

 Mais perto de nós, no que ao tempo e espaço diz respeito, António Lobo Antunes, o Nobel adiado, diz de si próprio e de Saramago, seu alegado rival de estimação: “Não vejo ninguém que escreva como eu …”; “Saramago é uma merda … Se me quiserem comparar a alguém ponham lá o Antero, o Herculano, ponham assim um escritor. Saramago não me agrada como escritor, mas claro que não é uma merda …”, acrescenta, temperando o destempero inicial. Entre um e outro, séculos de pérolas semelhantes alimentam e ensombram as relações entre oficiantes do mesmo ofício, de latitudes e longitudes diferentes, assim dessacralizando a visão idealizada do escritor e do artista tocado pela transcendência e imune aos vícios humanos, que tão frequentemente nos é inculcada pela própria literatura:

 “Ser poeta é ser mais alto é ser maior do que os homens”, na voz de Florbela Espanca.

 “Le Poète est semblable au prince / des nuages / Qui hante la tempête st se rit de l’archer”, na voz de Beaudelaire, entre outros.

 Estando em foco a literatura de língua espanhola, li, a propósito, “7 piques entre escritores para dessacralizar la literatura”, por Alberto Hernando, e o ensaio “Rivalidades y celos literários”3, pródigos em exemplos deste tipo.

  Não escapam Louis Aragón e Paul Eluard, Garcia Lorca e Rafael Alberti, Faulkner e Hemingway, Sartre e Camus,Vargas Losa e Garcia Marquez, Kerouac, de quem se diz que não é um escritor, mas sim um mecanógrafo, e o próprio Javier Mariás “bajó al barro para decir que la concecion del Nobel de Literatura al gallego le parecia uma noticia nefasta, porque significaba la entronización de la “novela más folklórica, castiza y rancia”4, referindo-se, obviamente, a José Cela.

  Aliás, essa posição crítica em relação aos galardoados do Nobel e ao Nobel em si, e a outros prémios, não é única. Também Lobo Antunes, no texto citado, afirmava displicentemente “quero que o Nobel se foda” e Carlos Drumond de Andrade afirmou que “as academias coroam com igual zelo o talento e a ausência dele”5.

 Em síntese, e reportando-me ao ensaio citado, “Inveja, egoísmo, vaidade, insegurança, as rivalidades e ciúmes no mundo artístico existiram sempre desde que o mundo é mundo”

 

 II 

 Também “Os Enamoramentos” nos confronta com uma visão disfórica do universo artístico, neste caso o mundo editorial. Não sendo um tema dominante na obra, é aflorado. na medida em que a personagem / narradora trabalha numa editora onde convive diariamente com escritores. O Universo que nos oferece não contradiz, antes reforça, o que deduzimos e inferimos da abordagem anterior, universo que, seguramente, o autor conhece muito bem. Assim, serve-se da voz narrativa para nos facultar a sua visão. Mordaz.

 Maria Dolz, a narradora, vive uma vida pautada por hábitos rotineiros, entre os quais o quotidiano pequeno almoço numa pastelaria perto do local de trabalho e o encontro “platónico” com um casal que observa à distância e cuja súbita e inesperada ausência introduz o desequilíbrio que faz o romance acontecer. Na monotonia parda dos seus dias, descreve esse hábito como: “o breve e modesto espectáculo que me punha de bom humor antes de entrar na editora e brigar com o meu megalómano chefe e os seus chatos autores”. Assim, sem mais, um verbo e dois adjectivos de valor pejorativo – brigar, megalómano e chatos – introduzem-nos no seu mundo profissional e definem um perfil de vida pouco estimulante, para nosso espanto, com alguma tendência para a mitificação dos circuitos da actividade criativa.

Passa então de espectadora passiva para personagem relevante, num interregno de dois anos – um encaixe na sua vida sem história - subsequentes à súbita ausência do casal e conhecimento do assassinato do homem, que alimenta a narrativa e as reflexões que a entretecem. Se consideramos relevante a sua convivência com os livros e a sua condição de leitora – lembremo-nos que há no romance evocações literárias diversas, que vão de Shakespeare a Alexandre Dumas e Balzac em diálogos que sustenta – não parece relevante para a economia da narrativa a imersão, durante um capítulo, nesse microcosmos povoado de autores e editores. Dir-se-ia ditada pelo propósito do autor de no-lo revelar. Nesse capítulo nos deteremos, com especial atenção à adjectivação e aos verbos utilizados.

 

 Dêmos voz a Maria Dolz:

 

 “Depois ausentei-me eu durante uma semana, enviada que fui pelo meu chefe a uma estúpida Feira do livro estrangeira para fazer relações públicas e sobretudo de parva em nome dele. (p. 23)

 

“Sentia mais preguiça para enfrentar as minhas tarefas, ver o meu chefe emproar-se e receber as pesadíssimas chamadas ou visitas dos escritores” (p.27)

 “… os mais presunçosos e exigentes e, por outro, os mais chatos e desorientados, os que viviam sós, os infelizes, ao que procuravam agradar de qualquer maneira, os que marcavam o nosso número de telefone para começar o dia e comunicar a alguém que ainda existiam, servindo-se de qualquer pretexto.” (p. 27)

 

“São uma gente esquisita na sua maioria” (p.27)

 

“… neste negócio há dinheiro, ao contrário do que se diz”. (p.27)

 

E ilustra algumas idiossincrasias que adensam o retrato: 

 

- de Cortezo, “presumido acerca dos seus escritos, que a crítica louvava e que a mim me pareciam tolices” (p. 29), que a consultava sobre a forma de se vestir;

 - de Gary Fontina, que procurava obter da editora uma série de favores domésticos, entre os quais arranjar um pintor ou levar um sobretudo à lavandaria, escudado no ascendente que construíra sobre o chefe, ao autoproclamar-se como um iminente galardoado com o Nobel.

 Afirmava que os seus “espiões nórdicos” lhe disseram que está na forja para este ano ou para o próximo e que já decorara em sueco o que ia dizer ao rei Carlos Gustavo na cerimónia, alimentando com esta ficção a cupidez do editor e tornando muito difícil contrariá-lo. Só com uma argumentação inteligente e astuciosa Maria Dolz se liberta do seu pedido de lhe arranjar uns gramas de coca para dar mais realidade e realismo à obra em curso. Como tantos outros, dizia, era chupista, sovina e sem orgulho e “Armava em anticonvencional e transcontemporâneo, mas no fundo era como Zola ou qualquer outro” (p.36). Mas ela sabia que Eugeni, o chefe, “levava demasiado a sério o seu autor mais presunçoso, é inconcebível como este tipo de gente convence muitos do seu quilate, é um fenómeno universal e enigmático” que me fez evocar Virgílio Ferreira: “Admiram-se às vezes certas pessoas de que um autor medíocre seja triunfador do seu tempo. Mas o autor medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade de melhor distribuído pelo mundo”.

 Reencontramos nova referência a Gary Fontina mais tarde, a acentuar os traços da personagem de que anda distraída porque imersa na sua própria história, quando ele acompanha à editora um outro semijovem que “tinha recomendado como prémio de adulação que ele lhe prodigalizava no seu blogue e na revista literária especializada que dirigia, isto é, pretensiosa e pode-se dizer marginal”.

 No fim, restabelecido novo equilíbrio, encerrado este capítulo da sua vida, Maria Dolz regressa “à parvoíce do mundo editorial” (p. 380). Deixa-nos a imagem de um universo onde gravitam autores inflamados, que pavoneiam egos, desfilam poses, exalam presunção, ostentam caprichos, enfim, “gente esquisita”, parafraseando a narradora.

 Ou não? Voltando a Virgílio Ferreira, poderemos considerar que “A vaidade do artista é uma defesa contra os que o negam”?

 

Atentos ao perigo das generalizações, admiremos a obra, dessacralizemos o homem que a criou.

 

 

 

 

 

 

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