O Universo Editorial
Espanhol
por Delfina Rodrigues
I
Em jeito de preâmbulo,
um olhar em diagonal pelas pequenas maledicências e diatribes entre escritores.
Mais perto de
nós, no que ao tempo e espaço diz respeito, António Lobo Antunes, o Nobel
adiado, diz de si próprio e de Saramago, seu alegado rival de estimação: “Não
vejo ninguém que escreva como eu …”; “Saramago é uma merda … Se me quiserem
comparar a alguém ponham lá o Antero, o Herculano, ponham assim um escritor.
Saramago não me agrada como escritor, mas claro que não é uma merda …”,
acrescenta, temperando o destempero inicial. Entre um e outro, séculos de
pérolas semelhantes alimentam e ensombram as relações entre oficiantes do mesmo
ofício, de latitudes e longitudes diferentes, assim dessacralizando a visão
idealizada do escritor e do artista tocado pela transcendência e imune aos
vícios humanos, que tão frequentemente nos é inculcada pela própria literatura:
Maria Dolz, a
narradora, vive uma vida pautada por hábitos rotineiros, entre os quais o
quotidiano pequeno almoço numa pastelaria perto do local de trabalho e o
encontro “platónico” com um casal que observa à distância e cuja súbita e
inesperada ausência introduz o desequilíbrio que faz o romance acontecer. Na
monotonia parda dos seus dias, descreve esse hábito como: “o breve e modesto
espectáculo que me punha de bom humor antes de entrar na editora e brigar com o
meu megalómano chefe e os seus chatos autores”. Assim, sem mais, um verbo e dois
adjectivos de valor pejorativo – brigar, megalómano e chatos – introduzem-nos
no seu mundo profissional e definem um perfil de vida pouco estimulante, para
nosso espanto, com alguma tendência para a mitificação dos circuitos da
actividade criativa.
Passa então de
espectadora passiva para personagem relevante, num interregno de dois anos – um
encaixe na sua vida sem história - subsequentes à súbita ausência do casal e
conhecimento do assassinato do homem, que alimenta a narrativa e as reflexões
que a entretecem. Se consideramos relevante a sua convivência com os livros e a
sua condição de leitora – lembremo-nos que há no romance evocações literárias
diversas, que vão de Shakespeare a Alexandre Dumas e Balzac em diálogos que
sustenta – não parece relevante para a economia da narrativa a imersão, durante
um capítulo, nesse microcosmos povoado de autores e editores. Dir-se-ia ditada
pelo propósito do autor de no-lo revelar. Nesse capítulo nos deteremos, com
especial atenção à adjectivação e aos verbos utilizados.
Dêmos voz a
Maria Dolz:
“Depois
ausentei-me eu durante uma semana, enviada que fui pelo meu chefe a uma
estúpida Feira do livro estrangeira para fazer relações públicas e sobretudo de
parva em nome dele. (p. 23)
“Sentia mais preguiça
para enfrentar as minhas tarefas, ver o meu chefe emproar-se e receber as
pesadíssimas chamadas ou visitas dos escritores” (p.27)
“… os mais
presunçosos e exigentes e, por outro, os mais chatos e desorientados, os que
viviam sós, os infelizes, ao que procuravam agradar de qualquer maneira, os que
marcavam o nosso número de telefone para começar o dia e comunicar a alguém que
ainda existiam, servindo-se de qualquer pretexto.” (p. 27)
“São uma gente
esquisita na sua maioria” (p.27)
“… neste negócio há
dinheiro, ao contrário do que se diz”. (p.27)
E ilustra algumas
idiossincrasias que adensam o retrato:
- de Cortezo,
“presumido acerca dos seus escritos, que a crítica louvava e que a mim me
pareciam tolices” (p. 29), que a consultava sobre a forma de se vestir;
- de Gary
Fontina, que procurava obter da editora uma série de favores domésticos, entre
os quais arranjar um pintor ou levar um sobretudo à lavandaria, escudado no
ascendente que construíra sobre o chefe, ao autoproclamar-se como um iminente
galardoado com o Nobel.
Afirmava que os
seus “espiões nórdicos” lhe disseram que está na forja para este ano ou para o
próximo e que já decorara em sueco o que ia dizer ao rei Carlos Gustavo na
cerimónia, alimentando com esta ficção a cupidez do editor e tornando muito difícil
contrariá-lo. Só com uma argumentação inteligente e astuciosa Maria Dolz se
liberta do seu pedido de lhe arranjar uns gramas de coca para dar mais
realidade e realismo à obra em curso. Como tantos outros, dizia, era chupista,
sovina e sem orgulho e “Armava em anticonvencional e transcontemporâneo, mas no
fundo era como Zola ou qualquer outro” (p.36). Mas ela sabia que Eugeni, o
chefe, “levava demasiado a sério o seu autor mais presunçoso, é inconcebível
como este tipo de gente convence muitos do seu quilate, é um fenómeno universal
e enigmático” que me fez evocar Virgílio Ferreira: “Admiram-se às vezes certas
pessoas de que um autor medíocre seja triunfador do seu tempo. Mas o autor
medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade de melhor
distribuído pelo mundo”.
Ou não? Voltando
a Virgílio Ferreira, poderemos considerar que “A vaidade do artista é uma
defesa contra os que o negam”?
Atentos ao perigo das
generalizações, admiremos a obra, dessacralizemos o homem que a criou.
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