Os Enamoramentos
Javier Marías
por Alexandra Azevedo
A opacidade humana
Tudo é
representação
“…é incrível que passados tantos séculos de incessantes
conversas entre as pessoas não possamos saber quando nos dizem a verdade. «Sim»,
dizem-nos, e pode sempre ser «Não». «Não», dizem-nos, e pode ser sempre «Sim».
Nem sequer a ciência nem os infinitos avanços técnicos nos permitem averiguá-lo
com segurança.”(219)
Maria faz estas reflexões quando Diaz-Varela não resiste a
interrogá-la para saber se ela teria ouvido a comprometedora conversa que
acabara de ter com o seu amigo (ou cúmplice?) Ruibérriz, a quem encomendara a
morte piedosa (ou o assassínio?) do seu amigo Desvern. O que sai da boca de
Diaz- Varela? A verdade? Ou a mentira? De nada vale a Maria contemplar aqueles
lábios que a tinham fascinado desde o primeiro momento, ou percorrê-los lentamente com o dedo,
aquela “ boca carnuda e firme muito bem
desenhada, de tal modo que os lábios pareciam de mulher transplantados para uma
cara de homem, era muito difícil não os notar ,eram uma espécie de íman para o
olhar, quer quando falavam quer quando estavam calados. Davam vontade de os
beijar, ou de lhes tocar, de percorrer com o dedo aquelas suas linhas tão bem
traçadas, como que feitas por um pincel fino, e, depois, de apalpar com a polpa
do dedo o vermelho, ao mesmo tempo denso e fofo.”(103) De nada vale, pois, a Maria esta contemplação porque a dúvida permanecerá sempre no seu
espírito. Ao longo do romance é recorrente esta referência aos lábios de
Diaz-Varela como se, mesmo antes de fazer a terrível descoberta acerca da morte
de Desvern, intuísse a dúvida que se
instalaria no seu espírito sempre que Diaz- Varela falasse. Do mesmo modo,
também os olhos, “ nebulosos e indecifráveis que nunca conseguiam olhar fixos
de todo” (312) envenenavam a
possibilidade de neles confiar.
A ideia de que tudo é representação é, assim, a par com o
poder do enamoramento, um dos fios condutores do romance. Impossível conhecer a
realidade pois apenas acedemos à sua
representação. O próprio discurso de cada falante é sempre algo falseado porque
“o outro” tem um controlo constante sobre o seu discurso. Todos medem as
palavras consciente ou inconscientemente. Maria sabe que Diaz-Varela tem o
mesmo problema em relação a ela. Também a dúvida o corrói. Estará ela a dizer a
verdade quando afirma que nada ouviu? “
Não ouviste nada do que ele me contou, pois não? Estavas a dormir quando ele
chegou, não foi? Entrei para verificar antes de falar com ele e vi-te bem
adormecida, estavas a dormir, não estavas?”” Que é que te acordou?” (220) E,
naturalmente, ela mentiu “Não, não ouvi nada não te preocupes” (220) “Mas que
perguntas são essas_ disse-lhe eu com desenvoltura_ Eu sei lá o que me acordou”
(221)
Também em relação a
Ruibérriz, Maria não sabe se a reacção de surpresa deste ao tomar conhecimento de que ela, de
facto, ouvira a conversa comprometedora com Diaz-Varela , é uma reacção genuína ou fingida “ O que acabava de saber inquietava-o, ou
acertava-lhe em cheio, se é que não estava a fingir” (358) E quando Maria
classifica como assassínio colectivo a morte de Desvern, Ruibérriz “Saltou como
uma mola, transtornado”(359) o que a leva a pôr a hipótese de haver sinceridade
nele “ Parecia convencido, parecia sincero (360) Mas esta é apenas uma hipótese
que ela põe entre outras “De modo que
pensei: «Uma de três: ou o melodrama é verdade, não é uma invenção; ou o Javier
também enganou este tipo com a história da doença; ou este tipo está a fazer
comédia às ordens de quem lhe paga. E neste último caso é muito bom actor, há
que reconhecê-lo” (360)
E nem mesmo quando, subitamente, ao recordar-se da notícia da
morte de Desvern, tem a percepção clara
de que a doença deste nunca existira e que , portanto, se teria tratado
de um assassínio,” «Cinco horas num quirófano « pensei. «Não é possível que
depois de cinco horas não tenham detectado uma metástase generalizada em todo o
organismo, como disse o Javier que lhe havia dito Desvern”(373), nem mesmo
assim a a dúvida deixa de se instalar porque
a própria notícia poderia, também ela, não ser verdadeira “, a não ser que o
dado das cinco horas fosse falso ou errado, as notícias dos jornais não estavam
de acordo nem quanto ao hospital para onde tinham levado o moribundo” (373)
Na impossibilidade de saber a verdade porque “A verdade nunca
é nítida, é sempre um matagal”(361), Maria decide nada fazer, nada denunciar
por não querer ser a flor-de-lis de Diaz-Varela “«Sim, eu não quero ser a sua
maldita flor-de-lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o
mais antigo delito desapareça” e, além disso, Desvern é um morto bem
comportado, não um incómodo Coronel
Chabert e, por isso, não voltará do
reino dos mortos para repor a verdade ou para denunciar a sua inacção “Ao fim e
ao cabo ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos” (381)
Ninguém poderá acusá-la, portanto, da
verdadeira e inconfessável razão de não
fazer nenhuma denúncia “Esse teria sido certamente o meu propósito com qualquer
outra pessoa, ou com ele mesmo se não me tivesse enamorado em tempos, estúpida
e silenciosamente , e se ainda não gostasse um pouco dele, suponho eu, apesar
de tudo, e tudo é muito”(381). Enamoramentos...
Alexandra Azevedo
Outubro 2023
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