sábado, 4 de novembro de 2023

 

Os Enamoramentos

Javier Marías

por Alexandra Azevedo

 

A opacidade humana

Tudo é representação

“…é incrível que passados tantos séculos de incessantes conversas entre as pessoas não possamos saber quando nos dizem a verdade. «Sim», dizem-nos, e pode sempre ser «Não». «Não», dizem-nos, e pode ser sempre «Sim». Nem sequer a ciência nem os infinitos avanços técnicos nos permitem averiguá-lo com segurança.”(219)

Maria faz estas reflexões quando Diaz-Varela não resiste a interrogá-la para saber se ela teria ouvido a comprometedora conversa que acabara de ter com o seu amigo (ou cúmplice?) Ruibérriz, a quem encomendara a morte piedosa (ou o assassínio?) do seu amigo Desvern. O que sai da boca de Diaz- Varela? A verdade? Ou a mentira? De nada vale a Maria contemplar aqueles lábios que a tinham fascinado desde o primeiro momento,  ou percorrê-los lentamente com o dedo, aquela  “ boca carnuda e firme muito bem desenhada, de tal modo que os lábios pareciam de mulher transplantados para uma cara de homem, era muito difícil não os notar ,eram uma espécie de íman para o olhar, quer quando falavam quer quando estavam calados. Davam vontade de os beijar, ou de lhes tocar, de percorrer com o dedo aquelas suas linhas tão bem traçadas, como que feitas por um pincel fino, e, depois, de apalpar com a polpa do dedo o vermelho, ao mesmo tempo denso e fofo.”(103) De nada vale, pois,  a Maria esta contemplação  porque a dúvida permanecerá sempre no seu espírito. Ao longo do romance é recorrente esta referência aos lábios de Diaz-Varela como se, mesmo antes de fazer a terrível descoberta acerca da morte de Desvern,  intuísse a dúvida que se instalaria no seu espírito sempre que Diaz- Varela falasse. Do mesmo modo, também os olhos, “ nebulosos e indecifráveis que nunca conseguiam olhar fixos de todo” (312) envenenavam  a possibilidade de neles confiar. 

A ideia de que tudo é representação é, assim, a par com o poder do enamoramento, um dos fios condutores do romance. Impossível conhecer a realidade pois  apenas acedemos à sua representação. O próprio discurso de cada falante é sempre algo falseado porque “o outro” tem um controlo constante sobre o seu discurso. Todos medem as palavras consciente ou inconscientemente. Maria sabe que Diaz-Varela tem o mesmo problema em relação a ela. Também a dúvida o corrói. Estará ela a dizer a verdade  quando afirma que nada ouviu? “ Não ouviste nada do que ele me contou, pois não? Estavas a dormir quando ele chegou, não foi? Entrei para verificar antes de falar com ele e vi-te bem adormecida, estavas a dormir, não estavas?”” Que é que te acordou?” (220) E, naturalmente, ela mentiu “Não, não ouvi nada não te preocupes” (220) “Mas que perguntas são essas_ disse-lhe eu com desenvoltura_ Eu sei lá o que me acordou” (221)

Também em relação a  Ruibérriz, Maria não sabe se a reacção de surpresa  deste ao tomar conhecimento de que ela, de facto, ouvira a conversa comprometedora com Diaz-Varela , é uma reacção  genuína ou fingida “  O que acabava de saber inquietava-o, ou acertava-lhe em cheio, se é que não estava a fingir” (358) E quando Maria classifica como assassínio colectivo a morte de Desvern, Ruibérriz “Saltou como uma mola, transtornado”(359) o que a leva a pôr a hipótese de haver sinceridade nele “ Parecia convencido, parecia sincero (360) Mas esta é apenas uma hipótese que ela põe  entre outras “De modo que pensei: «Uma de três: ou o melodrama é verdade, não é uma invenção; ou o Javier também enganou este tipo com a história da doença; ou este tipo está a fazer comédia às ordens de quem lhe paga. E neste último caso é muito bom actor, há que reconhecê-lo” (360)

E nem mesmo quando, subitamente, ao recordar-se da notícia da morte de Desvern, tem a percepção clara  de que a doença deste nunca existira e que , portanto, se teria tratado de um assassínio,” «Cinco horas num quirófano « pensei. «Não é possível que depois de cinco horas não tenham detectado  uma metástase generalizada em todo o organismo, como disse o Javier que lhe havia dito Desvern”(373), nem mesmo assim a  a dúvida deixa de se instalar porque a própria notícia poderia, também ela, não ser verdadeira “, a não ser que o dado das cinco horas fosse falso ou errado, as notícias dos jornais não estavam de acordo nem quanto ao hospital para onde tinham levado o moribundo” (373)

Na impossibilidade de saber a verdade porque “A verdade nunca é nítida, é sempre um matagal”(361), Maria decide nada fazer, nada denunciar por não querer ser a flor-de-lis de Diaz-Varela “«Sim, eu não quero ser a sua maldita flor-de-lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o mais antigo delito desapareça” e, além disso, Desvern é um morto bem comportado, não um incómodo  Coronel Chabert e, por isso,   não voltará do reino dos mortos para repor a verdade ou para denunciar a sua inacção “Ao fim e ao cabo ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos” (381) Ninguém poderá acusá-la, portanto,  da verdadeira e inconfessável  razão de não fazer nenhuma denúncia “Esse teria sido certamente o meu propósito com qualquer outra pessoa, ou com ele mesmo se não me tivesse enamorado em tempos, estúpida e silenciosamente , e se ainda não gostasse um pouco dele, suponho eu, apesar de tudo, e tudo é muito”(381). Enamoramentos...

 

Alexandra Azevedo

Outubro 2023

 

Sem comentários:

Enviar um comentário