sábado, 4 de novembro de 2023

 


 Os enamoramentos

 Javier  Marías_2011


A incerteza como bússola narrativa

por Manuela Pereira

                                                                 

 

Madrid, 2011, entre a Primavera e o Outono, acontece uma morte violenta e começa uma paixão.

___ Um Casal Perfeito, que parece não partilhar o dia-a-dia; Miguel  Desvernes ou Deverne,  de quem pouco se sabe, brutalmente assassinado; desconhecida a intenção de lhe provocar a morte a ele, a outro ou a um qualquer; uma morte ao acaso que coincide com o quinquagésimo aniversário do assassinado; Luísa Alday, uma viúva abalada que nunca fala do marido e de quem desconhecemos a verdadeira dimensão da sua dor e quanto tempo durará o seu desgosto; um encontro com Javier fruto do acaso (?!).

___ A incerteza da duração da relação passageira de Maria e Javier, o desconhecimento se ficarão juntos para sempre ou se tudo vai acabar; o romance de Balzac e a história de Chabert, um vivo que já tinha sido dado como morto; a história interrompida e que nos deixa na espectativa do final; uma conversa entre Diáz-Varela e Ruibérriz  deTorres só ouvida pela metade; a certeza de não voltar mais àquela casa.

___ De volta àquela casa; a ‘história de como tudo aconteceu’, verdadeira ou não, porque o único que a poderia confirmar está morto; a incerteza da própria morte, deixada nas mãos de um mendigo demente, que poderia concretizá-la ou não; Alexandre Dumas, o conde de La Fère e a história de Milady, o “anjo que era um demónio”, que foi morta mas não foi morta;

___ Ruibérriz que aparece a mando de Diáz-Varela ou com verdadeira intenção de conhecer Maria; com cadáveres no cadastro ou não; Javier apaixonado por Luísa mas que, nas palavras de quem o conhece bem, é o tipo de homem que não se apaixona por ninguém; a já não tanto viúva, apaixonada por quem lhe era indiferente. a intenção de desmascarar tudo…ou não.

São poucos os factos verificáveis, nada é concludente, muitas são as possibilidades e a incerteza é a única constante.

Javier Márias deixa-nos à deriva, entre os seus pensamentos e divagações, presos à narrativa de Maria Dolz ___ não Dols nem Dolç. Dolz.

Maria, que não deixa de questionar todas as situações, de nos propor inúmeras possibilidades e também os seus contrários, pois tudo reflecte com uma dúvida sistemática e perspicaz. Enamorada, fala-nos de amor e ódio, e do estado de insegurança de todos os enamorados: malmequer, bem-me-quer, muito. Faz-nos rir, com uma ironia fina, ___ enquanto narra a história de um assassínio cruel, as incertezas perante a morte e as incertezas da vida___ e consegue ainda rir de si própria.

E nunca perdemos o rumo certo ___ I – o encontro com Javier  II – o enamoramento e o aparecimento da dúvida  III – a luta entre a razão e a emoção  IV – o processo de atenuação e um novo amor.

A Jovem Prudente, que “não se mete em nada, não julga ter inimigos e se abstém”, que se interroga a cada momento sobre a verdade e em quem a dúvida se insinua em cada instante, é a bússola que nos deixa inseguros e ao mesmo tempo nos aponta o caminho através do desconhecido.  E conclui que “uma pessoa nunca sabe se o que lhe dizem é verdade, nunca há a certeza de nada que não  venha de nós mesmos”, se formos capazes de encontrar a verdade nas contradições dos nossos sentimentos.




‘A verdade é sempre um matagal’ 

                                                                                                                        Os enamoramentos, Javier  Marías_2011

Diálogo entre Luísa Alday e Javier Diáz-Varela no Asia Gallery  ---  restaurante chinês do Hotel Palace  --- depois de Maria Dolz se ter afastado, na direcção da mesa que oferecia aquela imagem de estrado flamenco.        

 

 

--- Meu querido, que pálido estás. Ficaste com um ar apavorado quando a viste aproximar-se da nossa mesa. 

--- Admiras-te, Luísa?  Não viste a forma determinada como ela se dirigiu a nós, com os olhos em brasa. Parecia decidida a denunciar-me, a arruinar o nosso casamento. De onde apareceu ela, afinal?

--- Há muito que os olhos dela não te largavam. Como quando o defunto e eu tomávamos o pequeno-almoço na Cafeteria da Príncipe de Vergara. Sentava-se num canto a observar-nos, atenta às nossas conversas. Nunca saía antes de nos separarmos, sempre depois dele e antes de mim.

--- É perigosa, esta Maria. Sabe demais.

--- Não te preocupes. Quase dois anos passados, onde iria encontrar provas para te acusar? A atitude dela seria, facilmente, interpretada como inveja e despeito. Mesmo ela tendo percebido que ---durante as cinco horas em que ele se debateu entre a vida e a morte --- ninguém encontrou qualquer metástase  generalizada no organismo ou melanoma metastático--- , como lhe contaste, não conseguiria provar nada. Até o Doutor Secanell está incapaz de dizer seja o que for, pobre homem, agora que piorou da demência senil e já nem consegue falar. Mas enfim, seria sempre a palavra dela contra a tua.

--- Não é bem assim. Não te esqueças que o Canella já andou por aí a falar o que não devia. O Ruibérriz também não gostou de saber --- quando ela o encontrou e conversaram --- que eu lhe tinha contado a história toda, sem o avisar. Sabes, é fácil criar a dúvida em qualquer pessoa.

--- Sim, o encontro com o Ruibérriz em tua casa foi um risco que não deverias ter corrido. A rapariga além de esperta é descarada. Aparecer assim despida à frente dele, logo dele, que não perde uma oportunidade. Mais cedo ou mais tarde iria procurá-la, e mal demorou uma semana. Mas também ele não teria coragem para te incriminar. Mais não faria do que virar as atenções sobre ele próprio. E não esqueças que ele ‘aprendeu’ com aquela velha história do Elvis; deve-te favores.

Encarregaste-o de tratar de tudo, a partir daí nada te pode atingir. Foi ele, por sua vez, que mandou outro comprar o telemóvel para o arrumador de carros e fazer-lhe os telefonemas. O mesmo com a navalha borboleta, de duplo cabo, com que o Canella lhe cravou uma data de navalhadas --- que devia estar sujíssima, aliás, se o falecido não tivesse morrido cozido à navalhada teria morrido da infecção. --- Além disso foi ao Ruibérriz e aos seus blusões de ‘cabedal negro Gestapo’ que o mendigo viu.

Nem ele, nem o terceiro, a ti não te conhecem, nem sequer o teu nome, nem a tua cara. Quando uma pessoa activa uma coisa e a entrega, é também como se a soltasse e se desfizesse dela. A partir daí, nada te pode atingir. E ninguém nunca poderá provar que foi o que foi. Distanciaste o caso de ti e do teu alcance, até já não teres nada a ver com ele. Sossega.         

--- A Jovem Prudente. Não conseguiu denunciar-me, continua apaixonada por mim.

--- Querido Javier, foi de génio teres-te envolvido numa relação superficial com ela. Teres-lhe dado a ler Balzac, para que a leitura a preparasse para o que estava para vir. Para que percebesse por si própria que os mortos estão bem assim, e nunca devem voltar. Delirante!, aquele erro de tradução em que trocaste goûts (gostos) por gouttes (gotas). Será que ela não sabe mesmo francês?

Sabes, aquela fixação dela em mim e no Miguel --- o Casal Perfeito ---, aquela paixão pelo amor, poderiam pô-la com ideias de investigar tudo. Penso na maneira como se insinuou junto de mim, na esplanada da cafetaria, e me fez convidá-la para vir a nossa casa. Apaixonada foi mais fácil afastá-la do homicídio. Percebi como ela se transtornou intimamente quando te viu. Assim, seria muito mais fácil acusá-la de ciúmes, caso fosse preciso.

--- Também achei de génio o sangue-frio com que te puseste logo de pé, mal se aproximou, e lhe deste dois beijos. Travaste, de repente, qualquer possível intenção que tivesse de perturbar o nosso bem-estar; de arruinar a minha vida, e por isso também a tua e tudo o que conseguimos. Ainda a convidaste a sentar. Tu, de verdade, nunca tiveste medo?

--- Eu?! E que fiz eu?

Simplesmente desejei poder ficar contigo para sempre e sem entraves. Talvez, em algum momento, tenha sugerido como seria bom para nós se alguma doença fatal o levasse. Mas nunca exprimi outros desejos. Tu próprio percebeste como seríamos mais felizes se o Miguel desaparecesse, deixando-me com os assuntos financeiros em ordem e com campo livre contigo.

Eu nunca te ordenei a morte, nunca te especifiquei nem como, nem quando, nem onde. Como poderia ser responsável por ela? Pelo contrário, sou uma vítima aos olhos do mundo e também aos meus… Só esperei que fizesses cumprir os meus sonhos e que delineasses tudo. Foste quase perfeito --- a sério que te inspiraste no assalto ao Professor Rico?

Eu nunca sujei as mãos, nem a língua, meu querido; com nada tive contacto. O que posso ter a temer?

--- …

--- Afinal, tratou-se apenas de um assassínio. Só isso.

 

 

                                 

                                                                                                                    

 

 

 

 

Manuela Pereira                                                                                                  Clube Leitura_00/ 10/ 2023

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