sábado, 4 de novembro de 2023

 

Os Enamoramentos

Javier Marías

 

por Maria João Leite de Castro

 

Tema: a opacidade humana

 

O livro de Javier Marias é exemplar na descrição da opacidade humana, revelando as idiossincrasias da nossa condição que nos levam, muitas vezes, a não entender os nossos próprios sentimentos, pensamentos e comportamentos.

Essa opacidade vai-se manifestando em diferentes níveis de complexidade, mas está sempre presente, como se Javier Marías tentasse dissecar a alma humana sem qualquer intenção de suavizar aquilo que se vai revelando.

Haverá uma explicação racional, por exemplo, para que Maria iniciasse o dia com mais ânimo e com maior harmonia se partilhasse com Luisa e Miguel Desvern o pequeno almoço? (Confortava-me respirar o mesmo ar, ou fazer parte da sua paisagem das manhãs – uma parte em que não reparavam –(…), pág.13)

Em certa medida, sentia-me em dívida com eles, porque, sem o saber nem o pretender ajudavam-me quotidianamente, permitiam-me fantasiar acerca da vida deles, que imaginava sem mácula, tanto que me alegrava por não poder verificar nada a respeito dela, e, assim, não sair do meu encantamento passageiro (…), pág. 21).

De tal forma esse “contágio de optimismo” era importante para Maria que ela reconhece que, ao perdê-lo, se tornou mais intolerante com as fraquezas, as vaidades e as patetices (pág. 37), ao fazer frente e negar um dos caprichos de Garay Fontina, mesmo sem consultar o seu chefe.

As considerações que são feitas sobre a questão do luto e da morte de alguém que nos é querido, são também surpreendentes e inquietantes. Como se a grande questão fosse interromper o fluxo contínuo da nossa normalidade, mesmo quando essa normalidade não é a mais desejada: Num caso extremo, mesmo os indivíduos que vivem na ameaça de serem assassinados, por exemplo (refere o caso de um mafioso sanguinário ou o presidente dos Estados Unidos) desejam que nunca termine essa ameaça, essa tortura latente, essa inquietação insuportável. Não desejam que acabe nada do que há, do que têm, por muito odioso e gravoso que seja (pág.132).

Por outro lado, e ainda sobre a mesma questão diz: o que é assombroso é que quando as coisas acontecem, quando se dão as interrupções, as mortes, a maioria das vezes, passado um tempo, dá-se como bom o que aconteceu .(…) a vida acaba sempre por se impor, com tal força que pouco a pouco se nos torna quase impossível imaginar-nos sem aquilo, não sei como explicar, imaginar que uma coisa acontecida não tivesse acontecido (pag.133)

Como se a “nova normalidade” já não pudesse tolerar ou ser compatível com a situação anterior, tal como o presente não pode coexistir com o passado e o passado apenas existisse para definir esse presente que agora se impõe como absolutamente necessário…No romance de Balzac, Chabert não pode regressar ao mundo dos vivos, o seu reaparecimento é uma desgraça completa. O vazio que ele provocou na altura do seu desaparecimento, o abismo que parecia “engolir” Madame Ferraud, passou a fazer parte da sua vida, acomodou-se, e além do mais esse vazio tapou-se e portanto já não é o mesmo ou passou a ser fictício.(pag.152).

Mas aquilo que mais nos perturba é a forma como Maria reage ao descobrir que Javier (ou já Diaz- Varela?) orquestrara a morte de Miguel Deverne, seu melhor amigo mas simultaneamente aquele que o impedia de viver o seu enamoramento por Luísa. Ao ouvir a conversa incriminatória com Ruibérriz há um primeiro momento de pânico, uma vontade de fugir, de não ouvir mais, para que, pelo menos, ficasse a dúvida à qual se pudesse agarrar como uma tábua de salvação para a continuação do seu próprio estado de enamoramento. A seguir, há um momento de medo, de suspensão do amor : Notei que aquele amor guardado se suspendia, em qualquer das suas formas é incompatível com o medo; adiava-se para um melhor momento, o do desmentido ou do esquecimento, mas não me escapava que nenhum dos dois era possível (pag.190).

Minutos depois, quando se dispõe a entrar na sala para conhecer Ruibérriz , um homem sem escrúpulos, é já patente a sua necessidade de branquear a revelação que acabara de ter. Embora referindo que também Díaz- Varela tinha falta de escrúpulos, talvez até em maior grau do que Ruibérriz, escreve :mas não deixava de ser alguém que conhecia tudo o que do meu corpo é visível, alguém ainda amado, sentia uma mistura de incredulidade radical e de repugnância primária e irrefletida, era incapaz de assumir o que julgara saber (…).(pág. 195).

Esses sentimentos contraditórios vão-se adensando, mesmo quando já não é possível manter a dúvida  (não havia dúvidas que lhe tinha pago dinheiro ou que ainda lho pagava, pela mediação, pela orientação do crime, pelo acompanhamento das suas consequências – pág.209) sobre aquilo que Díaz-Varela orquestrara (por muito que se esforçasse por levantar questões sobre a sua real responsabilidade) e, mesmo sabendo que não podia refutar essa verdade, pensa (…)porque é que não podia obrigá-lo a abraçar-me sem mais demora nem hesitação, ali estavam os seus queridos lábios, como sempre desejava beijá-los e agora não me atrevia ou então qualquer coisa me repelia neles ao mesmo tempo que ainda me atraíam (…).Continuava a gostar dele e ele metia-me medo, continuava a gostar dele e o meu conhecimento do que ele fizera metia-me nojo; não ele, mas o meu conhecimento.(pág.221).

Duas semanas depois, durante as quais Maria se continua a debater com sentimentos contraditórios – esperando avidamente um telefonema e simultaneamente desejando não ver o nome e o número dele no ecrã – Díaz Varela telefona e pede para se encontrarem. Na conversa que têm, Javier assume, num primeiro momento, aquilo que fez, de maneira fria e calculista.   (Compreendeste que para mim os meus anseios estão acima de qualquer consideração, de qualquer freio, de qualquer escrúpulo. E de qualquer lealdade, imagina. Tornou-se muito claro para mim desde há algum tempo que quero passar com a Luisa o que me restar da vida. (pag. 290).

Não posso viver sem ela, percebes? (…) Não queria mal nenhum ao Miguel, pelo contrário, era o meu melhor amigo: mas interpunha-se na minha única vida, na única que quero, pouca sorte, é preciso afastar o que nos impede de viver .(pág.304)

A história da doença de Miguel é apresentada num segundo momento e semeia, mais uma vez, a dúvida no espírito de Maria, dúvida essa que se vai adensando mesmo que corroborada por Ruibérriz.

Dois anos depois, quando encontra Javier e Luisa num restaurante chinês, a verdade parece desenhar-se no seu espírito de forma nítida – como seria possível uma metástase generalizada não ter sido detectada em 5 horas num quirófano? Essa verdade, ou essa momentânea crença ,foi talvez iluminada pela irritação de os ver juntos, porque à noite, em casa, essa nitidez tornou-se de novo nebulosa. Como ela própria refere (…) Não era indignação moral o que sentia, e também não era zelo justiceiro, mas algo muito mais elementar, porventura mesquinho. A justiça e a injustiça não me davam cuidado. Fui de certeza tomada de ciúmes retrospectivos, ou foi despeito, suponho que ninguém está livre disso.(pág.373).

Foram provavelmente esses ciúmes retrospectivos que a fizeram-se levantar-se num impulso e dirigir-se à mesa do casal com a ideia difusa de semear a dúvida e denunciar Javier. Mas a afabilidade dela travou de repente qualquer possível intenção de dizer a Díaz- Varela o que quer que fosse que virasse a Luisa contra ele (…) (pág.377).

Na despedida definitiva de Javier, Maria pensa: Sim, eu não quero ser a sua maldita flor-de- lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o mais  antigo delito despareça (…).E eu pergunto-me se o delito cometido por Anne de Breuil, ainda criança, julgada e condenada por Athos com 16 anos, sem qualquer dúvida ou interrogação, é comparável àquilo que Díaz- Varela orquestrou para o seu melhor amigo….

Ao fim e ao cabo, pensa Maria, ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos.

Será essa a teia perversa do enamoramento incondicional, como lhe chamou Javier e que, de alguma forma, Maria corroborou?

26-10-2023

Maria João Leite de Castro


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