Os
Enamoramentos
Javier
Marías
por Maria
João Leite de Castro
Tema: a opacidade humana
O
livro de Javier Marias é exemplar na descrição da opacidade humana, revelando
as idiossincrasias da nossa condição que nos levam, muitas vezes, a não
entender os nossos próprios sentimentos, pensamentos e comportamentos.
Essa
opacidade vai-se manifestando em diferentes níveis de complexidade, mas está
sempre presente, como se Javier Marías tentasse dissecar a alma humana sem
qualquer intenção de suavizar aquilo que se vai revelando.
Haverá
uma explicação racional, por exemplo, para que Maria iniciasse o dia com mais
ânimo e com maior harmonia se partilhasse com Luisa e Miguel Desvern o pequeno
almoço? (Confortava-me respirar o mesmo ar, ou fazer parte da sua paisagem
das manhãs – uma parte em que não reparavam –(…), pág.13)
Em
certa medida, sentia-me em dívida com eles, porque, sem o saber nem o pretender
ajudavam-me quotidianamente, permitiam-me fantasiar acerca da vida deles, que
imaginava sem mácula, tanto que me alegrava por não poder verificar nada a
respeito dela, e, assim, não sair do meu encantamento passageiro (…), pág. 21).
De tal
forma esse “contágio de optimismo” era importante para Maria que ela reconhece
que, ao perdê-lo, se tornou mais intolerante com as fraquezas, as vaidades e
as patetices (pág. 37), ao fazer frente e negar um dos caprichos de Garay
Fontina, mesmo sem consultar o seu chefe.
As
considerações que são feitas sobre a questão do luto e da morte de alguém que
nos é querido, são também surpreendentes e inquietantes. Como se a grande
questão fosse interromper o fluxo contínuo da nossa normalidade, mesmo quando
essa normalidade não é a mais desejada: Num caso extremo, mesmo os indivíduos
que vivem na ameaça de serem assassinados, por exemplo (refere o caso de um
mafioso sanguinário ou o presidente dos Estados Unidos) desejam que nunca
termine essa ameaça, essa tortura latente, essa inquietação insuportável. Não
desejam que acabe nada do que há, do que têm, por muito odioso e gravoso que
seja (pág.132).
Por
outro lado, e ainda sobre a mesma questão diz: o que é assombroso é que
quando as coisas acontecem, quando se dão as interrupções, as mortes, a maioria
das vezes, passado um tempo, dá-se como bom o que aconteceu .(…) a vida acaba
sempre por se impor, com tal força que pouco a pouco se nos torna quase
impossível imaginar-nos sem aquilo, não sei como explicar, imaginar que uma
coisa acontecida não tivesse acontecido (pag.133)
Como
se a “nova normalidade” já não pudesse tolerar ou ser compatível com a situação
anterior, tal como o presente não pode coexistir com o passado e o passado
apenas existisse para definir esse presente que agora se impõe como
absolutamente necessário…No romance de Balzac, Chabert não pode regressar ao
mundo dos vivos, o seu reaparecimento é uma desgraça completa. O vazio
que ele provocou na altura do seu desaparecimento, o abismo que parecia
“engolir” Madame Ferraud, passou a fazer parte da sua vida, acomodou-se, e
além do mais esse vazio tapou-se e portanto já não é o mesmo ou passou a ser
fictício.(pag.152).
Mas
aquilo que mais nos perturba é a forma como Maria reage ao descobrir que Javier
(ou já Diaz- Varela?) orquestrara a morte de Miguel Deverne, seu melhor amigo
mas simultaneamente aquele que o impedia de viver o seu enamoramento por Luísa.
Ao ouvir a conversa incriminatória com Ruibérriz há um primeiro momento de
pânico, uma vontade de fugir, de não ouvir mais, para que, pelo menos, ficasse
a dúvida à qual se pudesse agarrar como uma tábua de salvação para a
continuação do seu próprio estado de enamoramento. A seguir, há um momento de
medo, de suspensão do amor : Notei que aquele amor guardado se suspendia, em
qualquer das suas formas é incompatível com o medo; adiava-se para um melhor
momento, o do desmentido ou do esquecimento, mas não me escapava que nenhum dos
dois era possível (pag.190).
Minutos
depois, quando se dispõe a entrar na sala para conhecer Ruibérriz , um homem
sem escrúpulos, é já patente a sua necessidade de branquear a revelação que
acabara de ter. Embora referindo que também Díaz- Varela tinha falta de
escrúpulos, talvez até em maior grau do que Ruibérriz, escreve :mas não
deixava de ser alguém que conhecia tudo o que do meu corpo é visível, alguém
ainda amado, sentia uma mistura de incredulidade radical e de repugnância
primária e irrefletida, era incapaz de assumir o que julgara saber (…).(pág.
195).
Esses
sentimentos contraditórios vão-se adensando, mesmo quando já não é possível
manter a dúvida (não havia dúvidas
que lhe tinha pago dinheiro ou que ainda lho pagava, pela mediação, pela
orientação do crime, pelo acompanhamento das suas consequências – pág.209) sobre
aquilo que Díaz-Varela orquestrara (por muito que se esforçasse por levantar
questões sobre a sua real responsabilidade) e, mesmo sabendo que não podia
refutar essa verdade, pensa (…)porque é que não podia obrigá-lo a abraçar-me
sem mais demora nem hesitação, ali estavam os seus queridos lábios, como sempre
desejava beijá-los e agora não me atrevia ou então qualquer coisa me repelia
neles ao mesmo tempo que ainda me atraíam (…).Continuava a gostar dele e ele
metia-me medo, continuava a gostar dele e o meu conhecimento do que ele fizera
metia-me nojo; não ele, mas o meu conhecimento.(pág.221).
Duas
semanas depois, durante as quais Maria se continua a debater com sentimentos
contraditórios – esperando avidamente um telefonema e simultaneamente desejando
não ver o nome e o número dele no ecrã – Díaz Varela telefona e pede para se
encontrarem. Na conversa que têm, Javier assume, num primeiro momento, aquilo
que fez, de maneira fria e calculista.
(Compreendeste que para mim os meus anseios estão acima de qualquer
consideração, de qualquer freio, de qualquer escrúpulo. E de qualquer lealdade,
imagina. Tornou-se muito claro para mim desde há algum tempo que quero passar
com a Luisa o que me restar da vida. (pag. 290).
Não
posso viver sem ela, percebes? (…) Não queria mal nenhum ao Miguel, pelo
contrário, era o meu melhor amigo: mas interpunha-se na minha única vida, na
única que quero, pouca sorte, é preciso afastar o que nos impede de viver .(pág.304)
A
história da doença de Miguel é apresentada num segundo momento e semeia, mais
uma vez, a dúvida no espírito de Maria, dúvida essa que se vai adensando mesmo
que corroborada por Ruibérriz.
Dois
anos depois, quando encontra Javier e Luisa num restaurante chinês, a verdade
parece desenhar-se no seu espírito de forma nítida – como seria possível uma
metástase generalizada não ter sido detectada em 5 horas num quirófano? Essa
verdade, ou essa momentânea crença ,foi talvez iluminada pela irritação
de os ver juntos, porque à noite, em casa, essa nitidez tornou-se de novo
nebulosa. Como ela própria refere (…) Não era indignação moral o que sentia,
e também não era zelo justiceiro, mas algo muito mais elementar, porventura
mesquinho. A justiça e a injustiça não me davam cuidado. Fui de certeza tomada
de ciúmes retrospectivos, ou foi despeito, suponho que ninguém está livre
disso.(pág.373).
Foram
provavelmente esses ciúmes retrospectivos que a fizeram-se levantar-se
num impulso e dirigir-se à mesa do casal com a ideia difusa de semear a dúvida
e denunciar Javier. Mas a afabilidade dela travou de repente qualquer
possível intenção de dizer a Díaz- Varela o que quer que fosse que virasse a
Luisa contra ele (…) (pág.377).
Na
despedida definitiva de Javier, Maria pensa: Sim, eu não quero ser a sua
maldita flor-de- lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o
mais antigo delito despareça (…).E
eu pergunto-me se o delito cometido por Anne de Breuil, ainda criança,
julgada e condenada por Athos com 16 anos, sem qualquer dúvida ou interrogação,
é comparável àquilo que Díaz- Varela orquestrou para o seu melhor amigo….
Ao fim
e ao cabo, pensa Maria, ninguém me vai julgar, nem há testemunhas
dos meus pensamentos.
Será
essa a teia perversa do enamoramento incondicional, como lhe chamou Javier e
que, de alguma forma, Maria corroborou?
26-10-2023
Maria
João Leite de Castro
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