·“O assassínio é algo que acontece e de que qualquer um é capaz”
Os Enamoramentos
Javier Marías
por Alexandra Azevedo
A opacidade humana
Tudo é
representação
“…é incrível que passados tantos séculos de incessantes
conversas entre as pessoas não possamos saber quando nos dizem a verdade. «Sim»,
dizem-nos, e pode sempre ser «Não». «Não», dizem-nos, e pode ser sempre «Sim».
Nem sequer a ciência nem os infinitos avanços técnicos nos permitem averiguá-lo
com segurança.”(219)
Maria faz estas reflexões quando Diaz-Varela não resiste a
interrogá-la para saber se ela teria ouvido a comprometedora conversa que
acabara de ter com o seu amigo (ou cúmplice?) Ruibérriz, a quem encomendara a
morte piedosa (ou o assassínio?) do seu amigo Desvern. O que sai da boca de
Diaz- Varela? A verdade? Ou a mentira? De nada vale a Maria contemplar aqueles
lábios que a tinham fascinado desde o primeiro momento, ou percorrê-los lentamente com o dedo,
aquela“ boca carnuda e firme muito bem
desenhada, de tal modo que os lábios pareciam de mulher transplantados para uma
cara de homem, era muito difícil não os notar ,eram uma espécie de íman para o
olhar, quer quando falavam quer quando estavam calados. Davam vontade de os
beijar, ou de lhes tocar, de percorrer com o dedo aquelas suas linhas tão bem
traçadas, como que feitas por um pincel fino, e, depois, de apalpar com a polpa
do dedo o vermelho, ao mesmo tempo denso e fofo.”(103) De nada vale, pois, a Maria esta contemplaçãoporque a dúvida permanecerá sempre no seu
espírito. Ao longo do romance é recorrente esta referência aos lábios de
Diaz-Varela como se, mesmo antes de fazer a terrível descoberta acerca da morte
de Desvern,intuísse a dúvida que se
instalaria no seu espírito sempre que Diaz- Varela falasse. Do mesmo modo,
também os olhos, “ nebulosos e indecifráveis que nunca conseguiam olhar fixos
de todo” (312) envenenavama
possibilidade de neles confiar.
A ideia de que tudo é representação é, assim, a par com o
poder do enamoramento, um dos fios condutores do romance. Impossível conhecer a
realidade poisapenas acedemos à sua
representação. O próprio discurso de cada falante é sempre algo falseado porque
“o outro” tem um controlo constante sobre o seu discurso. Todos medem as
palavras consciente ou inconscientemente. Maria sabe que Diaz-Varela tem o
mesmo problema em relação a ela. Também a dúvida o corrói. Estará ela a dizer a
verdadequando afirma que nada ouviu? “
Não ouviste nada do que ele me contou, pois não? Estavas a dormir quando ele
chegou, não foi? Entrei para verificar antes de falar com ele e vi-te bem
adormecida, estavas a dormir, não estavas?”” Que é que te acordou?” (220) E,
naturalmente, ela mentiu “Não, não ouvi nada não te preocupes” (220) “Mas que
perguntas são essas_ disse-lhe eu com desenvoltura_ Eu sei lá o que me acordou”
(221)
Também em relação aRuibérriz, Maria não sabe se a reacção de surpresa deste ao tomar conhecimento de que ela, de
facto, ouvira a conversa comprometedora com Diaz-Varela , é uma reacção genuína ou fingida “ O que acabava de saber inquietava-o, ou
acertava-lhe em cheio, se é que não estava a fingir” (358) E quando Maria
classifica como assassínio colectivo a morte de Desvern, Ruibérriz “Saltou como
uma mola, transtornado”(359) o que a leva a pôr a hipótese de haver sinceridade
nele “ Parecia convencido, parecia sincero (360) Mas esta é apenas uma hipótese
que ela põe entre outras “De modo que
pensei: «Uma de três: ou o melodrama é verdade, não é uma invenção; ou o Javier
também enganou este tipo com a história da doença; ou este tipo está a fazer
comédia às ordens de quem lhe paga. E neste último caso é muito bom actor, há
que reconhecê-lo” (360)
E nem mesmo quando, subitamente, ao recordar-se da notícia da
morte de Desvern, tem a percepção clarade que a doença deste nunca existira e que , portanto, se teria tratado
de um assassínio,” «Cinco horas num quirófano « pensei. «Não é possível que
depois de cinco horas não tenham detectado uma metástase generalizada em todo o
organismo, como disse o Javier que lhe havia dito Desvern”(373), nem mesmo
assim a a dúvida deixa de se instalar porque
a própria notícia poderia, também ela, não ser verdadeira “, a não ser que o
dado das cinco horas fosse falso ou errado, as notícias dos jornais não estavam
de acordo nem quanto ao hospital para onde tinham levado o moribundo” (373)
Na impossibilidade de saber a verdade porque “A verdade nunca
é nítida, é sempre um matagal”(361), Maria decide nada fazer, nada denunciar
por não querer ser a flor-de-lis de Diaz-Varela “«Sim, eu não quero ser a sua
maldita flor-de-lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o
mais antigo delito desapareça” e, além disso, Desvern é um morto bem
comportado, não um incómodoCoronel
Chabert e, por isso,não voltará do
reino dos mortos para repor a verdade ou para denunciar a sua inacção “Ao fim e
ao cabo ninguém me vai julgar, nem há testemunhas dos meus pensamentos” (381)
Ninguém poderá acusá-la, portanto,da
verdadeira e inconfessávelrazão de não
fazer nenhuma denúncia “Esse teria sido certamente o meu propósito com qualquer
outra pessoa, ou com ele mesmo se não me tivesse enamorado em tempos, estúpida
e silenciosamente , e se ainda não gostasse um pouco dele, suponho eu, apesar
de tudo, e tudo é muito”(381). Enamoramentos...
Alexandra Azevedo
Outubro 2023
Clube
de leitura EASR26/10/23
“Os
enamoramentos”
Javier
Marías”
Por M.Amélia L.V.Correia
“O perfil
moral de Díaz-Varela”
Antes de mais gostaria de pedir aos circunstantes, para
aceitarem como verídica, a narrativa de Díaz-Varela (D.V.), sobre as razões que
o levaram a urdir a trama que conduziu ao assassínio de Deverne.
Passarei a analisar o perfil moral de D V.
Usando as categorias Kanteanas de legalidade e
moralidade, é óbvio que se trata de um acto ilegal. Em qualquer Estado de
direito D.V. seria considerado culpado e sujeito a uma pena.
Kant não aceita a essencialidade do mal, isto é, não
considera que a maldade seja inerente à natureza humana, e, como iluminista,
define o homem como um ser que se caracteriza pela sua racionalidade. A razão
prática, detentora da lei moral, pode agir moralmente ou não.
Prosseguindo com este autor, o valor ético duma acção
situa-se na intencionalidade (moral deontológica). D.V. afirma ter agido
segundo o pedido do amigo para o livrar duma morte horrorosa. Mas esta acção
era do seu interesse, pois abria-lhe caminho para uma ligação com Luísa, que
desejava. Considerando que se sentiu no dever de ajudar o amigo, tinha
interesse na acção, o que para este filósofo feria completamente a
moralidade.
Mas mais, os imperativos categóricos de Kant afirmam:
“Age de modo que possas desejar que a máxima da tua acção se torne lei
universal” e ainda “trata sempre as pessoas como fins em si, nunca como meios”.
A conduta de D.V. foi, segundo estes princípios, imoral, sem apelo nem
agravo.
Apesar desta
condenação sumária, D.V. não parece ser um exemplar dum mal essencial ou
diabólico, não é um Drácula, um Macbeth, ou um Annibal Lecter
Considerando a Ética Kanteana, fundamental, mas demasiado
rigorosa, proponho uma outra abordagem.
Vou socorrer-me do conceito de “banalidade do mal” de
Hanna Arendt embora flexibilizado.
Este instrumento conceptual parece-me deveras útil, pois
pode funcionar fora do contexto em que a autora o concebeu.
D.V. não é um assassino burocrata, um criminoso de
escrivaninha como Eichmann, que serviu um regime totalitário. Pelo que nos é
dado saber comporta-se como um individuo normal na sua vida quotidiana, tal
como Eichmann, que era, ao que se sabe, bom marido e bom pai de família.
O comportamento de D.V .parece colocar-se de forma banal,
cega perante o mal. Tal condutanão
parece resultar duma psicopatia, ou duma maldade extrema. Parece, no entanto,
incapaz de se questionar, de exercer uma reflexão crítica sobre os seus atos, e
sobretudo de se colocar no lugar do outro. Acresce que se trata dum homem
inteligente, culto e até bastante sedutor, o que o torna potencialmente
perigoso, capaz de comportamentos profundamente condenáveis e até extremamente
cruéis, como nos foi dado conhecer.
Os
Enamoramentos
Javier
Marías
por Maria
João Leite de Castro
Tema: a opacidade humana
O
livro de Javier Marias é exemplar na descrição da opacidade humana, revelando
as idiossincrasias da nossa condição que nos levam, muitas vezes, a não
entender os nossos próprios sentimentos, pensamentos e comportamentos.
Essa
opacidade vai-se manifestando em diferentes níveis de complexidade, mas está
sempre presente, como se Javier Marías tentasse dissecar a alma humana sem
qualquer intenção de suavizar aquilo que se vai revelando.
Haverá
uma explicação racional, por exemplo, para que Maria iniciasse o dia com mais
ânimo e com maior harmonia se partilhasse com Luisa e Miguel Desvern o pequeno
almoço? (Confortava-me respirar o mesmo ar, ou fazer parte da sua paisagem
das manhãs – uma parte em que não reparavam –(…), pág.13)
Em
certa medida, sentia-me em dívida com eles, porque, sem o saber nem o pretender
ajudavam-me quotidianamente, permitiam-me fantasiar acerca da vida deles, que
imaginava sem mácula, tanto que me alegrava por não poder verificar nada a
respeito dela, e, assim, não sair do meu encantamento passageiro (…), pág. 21).
De tal
forma esse “contágio de optimismo” era importante para Maria que ela reconhece
que, ao perdê-lo, se tornou mais intolerante com as fraquezas, as vaidades e
as patetices (pág. 37), ao fazer frente e negar um dos caprichos de Garay
Fontina, mesmo sem consultar o seu chefe.
As
considerações que são feitas sobre a questão do luto e da morte de alguém que
nos é querido, são também surpreendentes e inquietantes. Como se a grande
questão fosse interromper o fluxo contínuo da nossa normalidade, mesmo quando
essa normalidade não é a mais desejada: Num caso extremo, mesmo os indivíduos
que vivem na ameaça de serem assassinados, por exemplo (refere o caso de um
mafioso sanguinário ou o presidente dos Estados Unidos) desejam que nunca
termine essa ameaça, essa tortura latente, essa inquietação insuportável. Não
desejam que acabe nada do que há, do que têm, por muito odioso e gravoso que
seja (pág.132).
Por
outro lado, e ainda sobre a mesma questão diz: o que é assombroso é que
quando as coisas acontecem, quando se dão as interrupções, as mortes, a maioria
das vezes, passado um tempo, dá-se como bom o que aconteceu .(…) a vida acaba
sempre por se impor, com tal força que pouco a pouco se nos torna quase
impossível imaginar-nos sem aquilo, não sei como explicar, imaginar que uma
coisa acontecida não tivesse acontecido (pag.133)
Como
se a “nova normalidade” já não pudesse tolerar ou ser compatível com a situação
anterior, tal como o presente não pode coexistir com o passado e o passado
apenas existisse para definir esse presente que agora se impõe como
absolutamente necessário…No romance de Balzac, Chabert não pode regressar ao
mundo dos vivos, o seu reaparecimento é uma desgraça completa. O vazio
que ele provocou na altura do seu desaparecimento, o abismo que parecia
“engolir” Madame Ferraud, passou a fazer parte da sua vida, acomodou-se, e
além do mais esse vazio tapou-se e portanto já não é o mesmo ou passou a ser
fictício.(pag.152).
Mas
aquilo que mais nos perturba é a forma como Maria reage ao descobrir que Javier
(ou já Diaz- Varela?) orquestrara a morte de Miguel Deverne, seu melhor amigo
mas simultaneamente aquele que o impedia de viver o seu enamoramento por Luísa.
Ao ouvir a conversa incriminatória com Ruibérriz há um primeiro momento de
pânico, uma vontade de fugir, de não ouvir mais, para que, pelo menos, ficasse
a dúvida à qual se pudesse agarrar como uma tábua de salvação para a
continuação do seu próprio estado de enamoramento. A seguir, há um momento de
medo, de suspensão do amor : Notei que aquele amor guardado se suspendia, em
qualquer das suas formas é incompatível com o medo; adiava-se para um melhor
momento, o do desmentido ou do esquecimento, mas não me escapava que nenhum dos
dois era possível (pag.190).
Minutos
depois, quando se dispõe a entrar na sala para conhecer Ruibérriz , um homem
sem escrúpulos, é já patente a sua necessidade de branquear a revelação que
acabara de ter. Embora referindo que também Díaz- Varela tinha falta de
escrúpulos, talvez até em maior grau do que Ruibérriz, escreve :mas não
deixava de ser alguém que conhecia tudo o que do meu corpo é visível, alguém
ainda amado, sentia uma mistura de incredulidade radical e de repugnância
primária e irrefletida, era incapaz de assumir o que julgara saber (…).(pág.
195).
Esses
sentimentos contraditórios vão-se adensando, mesmo quando já não é possível
manter a dúvida(não havia dúvidas
que lhe tinha pago dinheiro ou que ainda lho pagava, pela mediação, pela
orientação do crime, pelo acompanhamento das suas consequências – pág.209) sobre
aquilo que Díaz-Varela orquestrara (por muito que se esforçasse por levantar
questões sobre a sua real responsabilidade) e, mesmo sabendo que não podia
refutar essa verdade, pensa (…)porque é que não podia obrigá-lo a abraçar-me
sem mais demora nem hesitação, ali estavam os seus queridos lábios, como sempre
desejava beijá-los e agora não me atrevia ou então qualquer coisa me repelia
neles ao mesmo tempo que ainda me atraíam (…).Continuava a gostar dele e ele
metia-me medo, continuava a gostar dele e o meu conhecimento do que ele fizera
metia-me nojo; não ele, mas o meu conhecimento.(pág.221).
Duas
semanas depois, durante as quais Maria se continua a debater com sentimentos
contraditórios – esperando avidamente um telefonema e simultaneamente desejando
não ver o nome e o número dele no ecrã – Díaz Varela telefona e pede para se
encontrarem. Na conversa que têm, Javier assume, num primeiro momento, aquilo
que fez, de maneira fria e calculista.(Compreendeste que para mim os meus anseios estão acima de qualquer
consideração, de qualquer freio, de qualquer escrúpulo. E de qualquer lealdade,
imagina. Tornou-se muito claro para mim desde há algum tempo que quero passar
com a Luisa o que me restar da vida. (pag. 290).
Não
posso viver sem ela, percebes? (…) Não queria mal nenhum ao Miguel, pelo
contrário, era o meu melhor amigo: mas interpunha-se na minha única vida, na
única que quero, pouca sorte, é preciso afastar o que nos impede de viver .(pág.304)
A
história da doença de Miguel é apresentada num segundo momento e semeia, mais
uma vez, a dúvida no espírito de Maria, dúvida essa que se vai adensando mesmo
que corroborada por Ruibérriz.
Dois
anos depois, quando encontra Javier e Luisa num restaurante chinês, a verdade
parece desenhar-se no seu espírito de forma nítida – como seria possível uma
metástase generalizada não ter sido detectada em 5 horas num quirófano? Essa
verdade, ou essa momentânea crença ,foi talvez iluminada pela irritação
de os ver juntos, porque à noite, em casa, essa nitidez tornou-se de novo
nebulosa. Como ela própria refere (…) Não era indignação moral o que sentia,
e também não era zelo justiceiro, mas algo muito mais elementar, porventura
mesquinho. A justiça e a injustiça não me davam cuidado. Fui de certeza tomada
de ciúmes retrospectivos, ou foi despeito, suponho que ninguém está livre
disso.(pág.373).
Foram
provavelmente esses ciúmes retrospectivos que a fizeram-se levantar-se
num impulso e dirigir-se à mesa do casal com a ideia difusa de semear a dúvida
e denunciar Javier. Mas a afabilidade dela travou de repente qualquer
possível intenção de dizer a Díaz- Varela o que quer que fosse que virasse a
Luisa contra ele (…) (pág.377).
Na
despedida definitiva de Javier, Maria pensa: Sim, eu não quero ser a sua
maldita flor-de- lis no ombro, a que denuncia e assinala e não deixa que até o
maisantigo delito despareça (…).E
eu pergunto-mese o delito cometido por Anne de Breuil, ainda criança,
julgada e condenada por Athos com 16 anos, sem qualquer dúvida ou interrogação,
é comparável àquilo que Díaz- Varela orquestrou para o seu melhor amigo….
Ao fim
e ao cabo, pensa Maria, ninguém me vai julgar, nem há testemunhas
dos meus pensamentos.
Será
essa a teia perversa do enamoramento incondicional, como lhe chamou Javier e
que, de alguma forma, Maria corroborou?
26-10-2023
Maria
João Leite de Castro
Os enamoramentos
Javier Marías_2011
A incerteza como
bússola narrativa
por Manuela Pereira
Madrid, 2011, entre a Primavera e
o Outono, acontece uma morte violenta e começa uma paixão.
___ Um Casal Perfeito, que parece
não partilhar o dia-a-dia; MiguelDesvernes ou Deverne, de quem
pouco se sabe, brutalmente assassinado; desconhecida a intenção de lhe provocar
a morte a ele, a outro ou a um qualquer; uma morte ao acaso que coincide com o
quinquagésimo aniversário do assassinado; Luísa Alday, uma viúva abalada que
nunca fala do marido e de quem desconhecemos a verdadeira dimensão da sua dor e
quanto tempo durará o seu desgosto; um encontro com Javier fruto do acaso (?!).
___ A incerteza da duração da
relação passageira de Maria e Javier, o desconhecimento se ficarão juntos para
sempre ou se tudo vai acabar; o romance de Balzac e a história de Chabert, um
vivo que já tinha sido dado como morto; a história interrompida e que nos deixa
na espectativa do final; uma conversa entre Diáz-Varela e RuibérrizdeTorres só ouvida pela metade; a certeza de
não voltar mais àquela casa.
___ De volta àquela casa; a
‘história de como tudo aconteceu’, verdadeira ou não, porque o único que a
poderia confirmar está morto; a incerteza da própria morte, deixada nas mãos de
um mendigo demente, que poderia concretizá-la ou não; Alexandre Dumas, o conde
de La Fère e a história de Milady, o “anjo que era um demónio”, que foi morta
mas não foi morta;
___ Ruibérriz que aparece a mando
de Diáz-Varela ou com verdadeira intenção de conhecer Maria; com cadáveres no
cadastro ou não; Javier apaixonado por Luísa mas que, nas palavras de quem o
conhece bem, é o tipo de homem que não se apaixona por ninguém; a já não tanto
viúva, apaixonada por quem lhe era indiferente. a intenção de desmascarar
tudo…ou não.
São poucos os factos
verificáveis, nada é concludente, muitas são as possibilidades e a incerteza é
a única constante.
Javier Márias deixa-nos à deriva,
entre os seus pensamentos e divagações, presos à narrativa de Maria Dolz ___
não Dols nem Dolç. Dolz.
Maria, que não deixa de
questionar todas as situações, de nos propor inúmeras possibilidades e também
os seus contrários, pois tudo reflecte com uma dúvida sistemática e perspicaz.
Enamorada, fala-nos de amor e ódio, e do estado de insegurança de todos os
enamorados: malmequer, bem-me-quer, muito. Faz-nos rir, com uma ironia fina,
___ enquanto narra a história de um assassínio cruel, as incertezas perante a morte
e as incertezas da vida___ e consegue ainda rir de si própria.
E nunca perdemos o rumo certo ___
I – o encontro com JavierII – o
enamoramento e o aparecimento da dúvidaIII – a luta entre a razão e a emoçãoIV – o processo de atenuação e um novo amor.
A Jovem Prudente, que “não se
mete em nada, não julga ter inimigos e se abstém”, que se interroga a cada
momento sobre a verdade e em quem a dúvida se insinua em cada instante, é a
bússola que nos deixa inseguros e ao mesmo tempo nos aponta o caminho através
do desconhecido.E conclui que “uma
pessoa nunca sabe se o que lhe dizem é verdade, nunca há a certeza de nada que
não venha de nós mesmos”, se formos
capazes de encontrar a verdade nas contradições dos nossos sentimentos.
‘A verdade é sempre um matagal’
Os enamoramentos, Javier Marías_2011
Diálogo entre Luísa Alday e Javier Diáz-Varela no Asia Gallery --- restaurante chinês do Hotel Palace --- depois de Maria Dolz se ter afastado, na direcção da mesa que oferecia aquela imagem de estrado flamenco.
--- Meu querido, que pálido estás. Ficaste com um ar apavorado quando a viste aproximar-se da nossa mesa.
--- Admiras-te, Luísa? Não viste a forma determinada como ela se dirigiu a nós, com os olhos em brasa. Parecia decidida a denunciar-me, a arruinar o nosso casamento. De onde apareceu ela, afinal?
--- Há muito que os olhos dela não te largavam. Como quando o defunto e eu tomávamos o pequeno-almoço na Cafeteria da Príncipe de Vergara. Sentava-se num canto a observar-nos, atenta às nossas conversas. Nunca saía antes de nos separarmos, sempre depois dele e antes de mim.
--- É perigosa, esta Maria. Sabe demais.
--- Não te preocupes. Quase dois anos passados, onde iria encontrar provas para te acusar? A atitude dela seria, facilmente, interpretada como inveja e despeito. Mesmo ela tendo percebido que ---durante as cinco horas em que ele se debateu entre a vida e a morte --- ninguém encontrou qualquer metástase generalizada no organismo ou melanoma metastático--- , como lhe contaste, não conseguiria provar nada. Até o Doutor Secanell está incapaz de dizer seja o que for, pobre homem, agora que piorou da demência senil e já nem consegue falar. Mas enfim, seria sempre a palavra dela contra a tua.
--- Não é bem assim. Não te esqueças que o Canella já andou por aí a falar o que não devia. O Ruibérriz também não gostou de saber --- quando ela o encontrou e conversaram --- que eu lhe tinha contado a história toda, sem o avisar. Sabes, é fácil criar a dúvida em qualquer pessoa.
--- Sim, o encontro com o Ruibérriz em tua casa foi um risco que não deverias ter corrido. A rapariga além de esperta é descarada. Aparecer assim despida à frente dele, logo dele, que não perde uma oportunidade. Mais cedo ou mais tarde iria procurá-la, e mal demorou uma semana. Mas também ele não teria coragem para te incriminar. Mais não faria do que virar as atenções sobre ele próprio. E não esqueças que ele ‘aprendeu’ com aquela velha história do Elvis; deve-te favores.
Encarregaste-o de tratar de tudo, a partir daí nada te pode atingir. Foi ele, por sua vez, que mandou outro comprar o telemóvel para o arrumador de carros e fazer-lhe os telefonemas. O mesmo com a navalha borboleta, de duplo cabo, com que o Canella lhe cravou uma data de navalhadas --- que devia estar sujíssima, aliás, se o falecido não tivesse morrido cozido à navalhada teria morrido da infecção. --- Além disso foi ao Ruibérriz e aos seus blusões de ‘cabedal negro Gestapo’ que o mendigo viu.
Nem ele, nem o terceiro, a ti não te conhecem, nem sequer o teu nome, nem a tua cara. Quando uma pessoa activa uma coisa e a entrega, é também como se a soltasse e se desfizesse dela. A partir daí, nada te pode atingir. E ninguém nunca poderá provar que foi o que foi. Distanciaste o caso de ti e do teu alcance, até já não teres nada a ver com ele. Sossega.
--- A Jovem Prudente. Não conseguiu denunciar-me, continua apaixonada por mim.
--- Querido Javier, foi de génio teres-te envolvido numa relação superficial com ela. Teres-lhe dado a ler Balzac, para que a leitura a preparasse para o que estava para vir. Para que percebesse por si própria que os mortos estão bem assim, e nunca devem voltar. Delirante!, aquele erro de tradução em que trocaste goûts (gostos) por gouttes (gotas). Será que ela não sabe mesmo francês?
Sabes, aquela fixação dela em mim e no Miguel --- o Casal Perfeito ---, aquela paixão pelo amor, poderiam pô-la com ideias de investigar tudo. Penso na maneira como se insinuou junto de mim, na esplanada da cafetaria, e me fez convidá-la para vir a nossa casa. Apaixonada foi mais fácil afastá-la do homicídio. Percebi como ela se transtornou intimamente quando te viu. Assim, seria muito mais fácil acusá-la de ciúmes, caso fosse preciso.
--- Também achei de génio o sangue-frio com que te puseste logo de pé, mal se aproximou, e lhe deste dois beijos. Travaste, de repente, qualquer possível intenção que tivesse de perturbar o nosso bem-estar; de arruinar a minha vida, e por isso também a tua e tudo o que conseguimos. Ainda a convidaste a sentar. Tu, de verdade, nunca tiveste medo?
--- Eu?! E que fiz eu?
Simplesmente desejei poder ficar contigo para sempre e sem entraves. Talvez, em algum momento, tenha sugerido como seria bom para nós se alguma doença fatal o levasse. Mas nunca exprimi outros desejos. Tu próprio percebeste como seríamos mais felizes se o Miguel desaparecesse, deixando-me com os assuntos financeiros em ordem e com campo livre contigo.
Eu nunca te ordenei a morte, nunca te especifiquei nem como, nem quando, nem onde. Como poderia ser responsável por ela? Pelo contrário, sou uma vítima aos olhos do mundo e também aos meus… Só esperei que fizesses cumprir os meus sonhos e que delineasses tudo. Foste quase perfeito --- a sério que te inspiraste no assalto ao Professor Rico?
Eu nunca sujei as mãos, nem a língua, meu querido; com nada tive contacto. O que posso ter a temer?
--- …
--- Afinal, tratou-se apenas de um assassínio. Só isso.
Manuela Pereira Clube Leitura_00/ 10/ 2023
O Universo Editorial
Espanhol
por Delfina Rodrigues
I
Em jeito de preâmbulo,
um olhar em diagonal pelas pequenas maledicências e diatribes entre escritores.
“Nadie es tan necio
que admire a Miguel Cervantes”
Assim falava
Lope de Vega referindo-se ao aclamado escritor espanhol, que depreciativamente
apelidava de “o manco de Lepanto”1
Mais perto de
nós, no que ao tempo e espaço diz respeito, António Lobo Antunes, o Nobel
adiado, diz de si próprio e de Saramago, seu alegado rival de estimação: “Não
vejo ninguém que escreva como eu …”; “Saramago é uma merda … Se me quiserem
comparar a alguém ponham lá o Antero, o Herculano, ponham assim um escritor.
Saramago não me agrada como escritor, mas claro que não é uma merda …”,
acrescenta, temperando o destempero inicial. Entre um e outro, séculos de
pérolas semelhantes alimentam e ensombram as relações entre oficiantes do mesmo
ofício, de latitudes e longitudes diferentes, assim dessacralizando a visão
idealizada do escritor e do artista tocado pela transcendência e imune aos
vícios humanos, que tão frequentemente nos é inculcada pela própria literatura:
“Ser poeta é ser mais
alto é ser maior do que os homens”, na voz de Florbela Espanca.
“Le Poète est
semblable au prince / des nuages / Qui hante la tempête st se rit de l’archer”,
na voz de Beaudelaire, entre outros.
Estando em foco a
literatura de língua espanhola, li, a propósito, “7 piques entre escritores
para dessacralizar la literatura”, por Alberto Hernando, e o ensaio
“Rivalidades y celos literários”3, pródigos em exemplos deste tipo.
Não escapam
Louis Aragón e Paul Eluard, Garcia Lorca e Rafael Alberti, Faulkner e
Hemingway, Sartre e Camus,Vargas Losa e Garcia Marquez, Kerouac, de quem se diz
que não é um escritor, mas sim um mecanógrafo, e o próprio Javier Mariás “bajó
al barro para decir que la concecion del Nobel de Literatura al gallego le
parecia uma noticia nefasta, porque significaba la entronización de la “novela
más folklórica, castiza y rancia”4, referindo-se, obviamente, a José Cela.
Aliás, essa posição
crítica em relação aos galardoados do Nobel e ao Nobel em si, e a outros
prémios, não é única. Também Lobo Antunes, no texto citado, afirmava
displicentemente “quero que o Nobel se foda” e Carlos Drumond de Andrade
afirmou que “as academias coroam com igual zelo o talento e a ausência dele”5.
Em síntese, e
reportando-me ao ensaio citado, “Inveja, egoísmo, vaidade, insegurança, as
rivalidades e ciúmes no mundo artístico existiram sempre desde que o mundo é
mundo”
II
Também “Os
Enamoramentos” nos confronta com uma visão disfórica do universo artístico,
neste caso o mundo editorial. Não sendo um tema dominante na obra, é aflorado.
na medida em que a personagem / narradora trabalha numa editora onde convive
diariamente com escritores. O Universo que nos oferece não contradiz, antes
reforça, o que deduzimos e inferimos da abordagem anterior, universo que,
seguramente, o autor conhece muito bem. Assim, serve-se da voz narrativa para
nos facultar a sua visão. Mordaz.
Maria Dolz, a
narradora, vive uma vida pautada por hábitos rotineiros, entre os quais o
quotidiano pequeno almoço numa pastelaria perto do local de trabalho e o
encontro “platónico” com um casal que observa à distância e cuja súbita e
inesperada ausência introduz o desequilíbrio que faz o romance acontecer. Na
monotonia parda dos seus dias, descreve esse hábito como: “o breve e modesto
espectáculo que me punha de bom humor antes de entrar na editora e brigar com o
meu megalómano chefe e os seus chatos autores”. Assim, sem mais, um verbo e dois
adjectivos de valor pejorativo – brigar, megalómano e chatos – introduzem-nos
no seu mundo profissional e definem um perfil de vida pouco estimulante, para
nosso espanto, com alguma tendência para a mitificação dos circuitos da
actividade criativa.
Passa então de
espectadora passiva para personagem relevante, num interregno de dois anos – um
encaixe na sua vida sem história - subsequentes à súbita ausência do casal e
conhecimento do assassinato do homem, que alimenta a narrativa e as reflexões
que a entretecem. Se consideramos relevante a sua convivência com os livros e a
sua condição de leitora – lembremo-nos que há no romance evocações literárias
diversas, que vão de Shakespeare a Alexandre Dumas e Balzac em diálogos que
sustenta – não parece relevante para a economia da narrativa a imersão, durante
um capítulo, nesse microcosmos povoado de autores e editores. Dir-se-ia ditada
pelo propósito do autor de no-lo revelar. Nesse capítulo nos deteremos, com
especial atenção à adjectivação e aos verbos utilizados.
Dêmos voz a
Maria Dolz:
“Depois
ausentei-me eu durante uma semana, enviada que fui pelo meu chefe a uma
estúpida Feira do livro estrangeira para fazer relações públicas e sobretudo de
parva em nome dele. (p. 23)
“Sentia mais preguiça
para enfrentar as minhas tarefas, ver o meu chefe emproar-se e receber as
pesadíssimas chamadas ou visitas dos escritores” (p.27)
“… os mais
presunçosos e exigentes e, por outro, os mais chatos e desorientados, os que
viviam sós, os infelizes, ao que procuravam agradar de qualquer maneira, os que
marcavam o nosso número de telefone para começar o dia e comunicar a alguém que
ainda existiam, servindo-se de qualquer pretexto.” (p. 27)
“São uma gente
esquisita na sua maioria” (p.27)
“… neste negócio há
dinheiro, ao contrário do que se diz”. (p.27)
E ilustra algumas
idiossincrasias que adensam o retrato:
- de Cortezo,
“presumido acerca dos seus escritos, que a crítica louvava e que a mim me
pareciam tolices” (p. 29), que a consultava sobre a forma de se vestir;
- de Gary
Fontina, que procurava obter da editora uma série de favores domésticos, entre
os quais arranjar um pintor ou levar um sobretudo à lavandaria, escudado no
ascendente que construíra sobre o chefe, ao autoproclamar-se como um iminente
galardoado com o Nobel.
Afirmava que os
seus “espiões nórdicos” lhe disseram que está na forja para este ano ou para o
próximo e que já decorara em sueco o que ia dizer ao rei Carlos Gustavo na
cerimónia, alimentando com esta ficção a cupidez do editor e tornando muito difícil
contrariá-lo. Só com uma argumentação inteligente e astuciosa Maria Dolz se
liberta do seu pedido de lhe arranjar uns gramas de coca para dar mais
realidade e realismo à obra em curso. Como tantos outros, dizia, era chupista,
sovina e sem orgulho e “Armava em anticonvencional e transcontemporâneo, mas no
fundo era como Zola ou qualquer outro” (p.36). Mas ela sabia que Eugeni, o
chefe, “levava demasiado a sério o seu autor mais presunçoso, é inconcebível
como este tipo de gente convence muitos do seu quilate, é um fenómeno universal
e enigmático” que me fez evocar Virgílio Ferreira: “Admiram-se às vezes certas
pessoas de que um autor medíocre seja triunfador do seu tempo. Mas o autor
medíocre é que é admirado pelos medíocres. E a mediocridade de melhor
distribuído pelo mundo”.
Reencontramos nova
referência a Gary Fontina mais tarde, a acentuar os traços da personagem de que
anda distraída porque imersa na sua própria história, quando ele acompanha à
editora um outro semijovem que “tinha recomendado como prémio de adulação que
ele lhe prodigalizava no seu blogue e na revista literária especializada que
dirigia, isto é, pretensiosa e pode-se dizer marginal”.
No fim, restabelecido
novo equilíbrio, encerrado este capítulo da sua vida, Maria Dolz regressa “à
parvoíce do mundo editorial” (p. 380). Deixa-nos a imagem de um universo onde
gravitam autores inflamados, que pavoneiam egos, desfilam poses, exalam
presunção, ostentam caprichos, enfim, “gente esquisita”, parafraseando a
narradora.
Ou não? Voltando
a Virgílio Ferreira, poderemos considerar que “A vaidade do artista é uma
defesa contra os que o negam”?
Atentos ao perigo das
generalizações, admiremos a obra, dessacralizemos o homem que a criou.
A questão da
eutanásia não é diretamente abordada. Não há uma discussão explícita sobre a
possibilidade de utilizá-la como uma opção para a personagem Miguel e Javier
Marías não explora a complexidade deste tema nem as contradições que do mesmo
decorre. Preferiu ir para a banalidade do mal ao por
Ao longo da
narrativa, Javier Marias explora o tema da morte, o reflexo da mesma na vida
dos que sobrevivem , o amor e o destino numa abordagem filosófica e
existencial. O autor questiona as motivações e os limites das relações humanas,
mas não entra especificamente no campo da eutanásia ou aborda a escolha do
personagem Miguel.
Apesar da
eutanásia me parecer surgir no livro como um acto de liberdade que deve ser
concedida a cada um, não se podendo impedir alguém, que está em grande
sofrimento, de exercer o seu direito de escolha e, no caso presente, de escolha
da morte. Contudo, essa mesma escolha não foi explorada pelo autor que em
outras áreas dos sentimentos humanos explorou de forma intensa e filosófica.
A mim
pareceu-me que associou esta autonomia e liberdade humana não ao medo mas aos
reflexos que a mesma teria na sua família em especial na mulher Luísa. Assim
levantou o problema de esta autonomia podendo ser garantida a cada um esteja
ela própria também condicionada pela comunidade próxima condicionando e podendo
impedir alguém, que está em grande sofrimento, de exercer o seu direito de
escolha da morte.
Cada um de
nós, com efeito, não somos individualidades que coexistem na total indiferença
relativamente às opções dos outros com que nos relacionamos e amamos, mesmo
quando o sofrimento se sobrepõe a qualquer outro sentimento.
A Eutanásia
foi aprovada em Espanha em 18 de
março de 2021, para entrara em vigor em 25 de Junho desse ano. Desde essa data
até ao momento actual já praticaram a Eutanásia em Espanha 180 pessoas.
A Espanha
foi o quarto país europeu a descriminalizar a eutanásia, depois de Países
Baixos, Bélgica e Luxemburgo. Em Portugal a lei que descriminaliza a eutanásia
foi promulgada em 16 de Maio deste ano.
Ana Teixeira
Pedaço do meu sofrimento
por Elsa Viegas
Muito me custou iniciar este pequeno texto sobre Os Enamoramentos,
romance de Javier Marias com 1ª edição em português em Outubro de
2012 altura em que o li pela 1ª vez não tendo então ficado deveras
impressionada.
No entanto, um dos temas da recente leitura que me suscitou alguma
curiosidade inicia se com um diálogo, a sós, entre Diaz Varela e a
narradora Maria Dolz; nele, Diaz Varela reflecte em voz alta sobre a ideia
dos sentimentos e comportamentos mesquinhos e egoístas do ser
humano que frequentemente surdem perante o objecto de cobiça; Diaz
Varela tenta aí menorizar o seu próprio comportamento; integrando-o
num comportamento mais vasto do ser humano e contando a propósito o
conteúdo do romance de Balzac, O Coronel Chabert.
Neste romance são descritos os sentimentos da viúva do Coronel, Mme
Chabert, no período da sua viuvez; sentimentos de tristeza mágoa e
solidão pela perda do marido julgado morto, e, paradoxalmente, o
aparecimento de sentimentos de desgosto, ansiedade e receio quando o
marido, em tempos amado, regressa. Esta incómoda e inesperada
situação acarretaria como consequência a reviravolta na actual vida
familiar e financeira/social da antiga Mme Chabert. Agora, Mme. Ferraud
não pretende voltar a um passado tanto tempo outrora ansiado.
Neste diálogo, Diaz Varela pretende mostrar a Maria Dolz que os
sentimentos humanos são perecíveis e mudam consoante as
circunstâncias de vida. Questiona- se se o amor de Luísa renasceria pelo
seu marido mas, perante o velado receio da possibilidade do regresso do
seu amigo morto, tranquiliza se com “a evidência de que os mortos não
devem regressar porque os vivos já não os querem”.
“Há que matar bem os mortos”, dizia Ortega e Gasset.
2."...só me tornei
negra quando vim para a América" (pág 440)
3.Obama, uma luz de
esperança
4.A mulher negra e a
questão do cabelo
5.O clube Nigerpolitano
6.Obinze e Blaine, o que
fazer?
Obama, uma luz de esperança
por
Alexandra Azevedo
“…admitam lá- só dizem «Eu não
sou negro» porque sabem que «negro» está no fundo da escala racial da América”
Impossível desligar a eleição de Obama da questão racial.
Obama, branco para os negros, negro para os brancos, era
visto como diferente dos outros negros, entre outras coisas, por não ter uma
mulher de pele clara como ele. Michèle era negra, sem complexos, e isso
infringia a regra dos negros americanos de sucesso que ou casavam com mulheres
brancas ou de pele muito clara.
Para a população negra americana do final da primeira década
do século XXI, imaginar Obama a ganhar as eleições presidenciais, configurava
um sonho impossível, o milagre de desfazer o racismo estrutural da América.
E, no entanto, a questão racial, não é, passe a graça, uma questão a preto e
branco. A questão racial não pode ser encarada com o simplismo de afirmar que
de um lado estão os brancos racistas e do outro, as vítimas negras.
A verdade é que “a pele clara é valorizada na comunidade dos
negros americanos. Mas toda a gente finge que já não é assim.” (328) Isto
explica o facto de muitos negros americanos dizerem orgulhosamente que têm
«sangue índio», o que significa “Graças a Deus, Não Somos Pretos Retintos”
(327)
O inacreditável teste do saco de papel de embrulho, por
exemplo, que consistia em comparar o tom
de pele com o a cor do papel de embrulho era uma forma de discriminação racial
praticada no seio da comunidade afro-americana e os que passavam no teste, isto
é, os que tinham a mesma cor ou cor mais
clara do que o papel, tinham mais privilégios, como poder pertencer a clubes exclusivos de negros
de pele clara, formados depois da abolição da escravatura ou entrar em igrejas e casas nocturnas depois de,
à entrada, o seu rosto ser comparado com o saco de papel.
A eleição de Obama aparecia aos negros americanos, no tempo
da campanha eleitoral, como o toque de varinha mágica que varreria para sempre tudo
isto, que faria desaparecer o factor simbólico negativo colado ao facto de não
ser branco. Era esta a esperança.
E, no entanto, as coisas nunca são simples. Como diz Grace,
se Obama ganhar deixa de ser negro tal como “a Oprah já não é negra, é a Oprah
que pode ir sem problemas a sítios onde os negros são detestados. E o próprio Obama tem mãe branca e foi criado
por avós brancos, não é só um “ tipo negro sem mais” (537) Nas palavras de
Blaine, “ A América terá feito reais progressos quando um tipo negro vulgar da
Geórgia se tornar presidente, um tipo negro que tenha tido uma nota vulgar na
universidade.” (537)
Infelizmente, a história mostrou que toda a esperança que
nasceu com a chegada de Obama não seria o amanhecer de uma mudança estrutural
na América do século XXI. Em Agosto de 2020, no prefácio ao seu livro “Uma Terra
Prometida”, Obama confessa-se emocionalmente esgotado por os americanos terem
escolhido Trump para lhe suceder.
Mas Obama foi presidente durante oito anos consecutivos e
esse terá sido o primeiro passo para alcançar o tempo em que “ um tipo negro
vulgar se possa tornar presidente da América”
Esta continua a ser aesperança.
Ndi na-abia n'iru (os que virão a seguir)
Alexandra Azevedo
Junho 2023
Nigéria
por
Ana Teixeira
I -Enquadramento
Actual
A Nigéria é um país
africano localizado na região da África Ocidental. É a nação mais populosa do
continente, contando com mais de 206 milhões de habitantes, colocando o país na
posição de sétimo mais populoso do mundo.
A população nigeriana é formada atualmente por mais de 250
grupos étnicos. Os que concentram o maior número de pessoas são: Hausa, Iorubá
e Igbo. O país possui, enorme diversidade linguística, com mais de 500 de
línguas faladas além do inglês, o idioma oficial. A Nigéria possui elevada taxa
de crescimento populacional (2,6%), o que se deve à sua alta taxa de
natalidade. A expectativa de vida no país é baixa, de 54,2 anos.
Lagos, cidade que já
foi capital, é a mais populosa, com mais de 13 milhões de habitantes. A atual
capital, Abuja, possui cerca de 3,1 milhões de habitantes. As concentrações urbanas também são elevadas
em Ibadan e Kano.
A Nigéria possui uma parcela de 40% de sua população vivendo
abaixo da linha da pobreza. Dados de 2019 indicam que só 62% da população do
país possuíam acesso à eletricidade, estando a maioria nas áreas urbanas. O acesso à água potável, por sua vez, é muito
mais baixo, sobretudo quando se compara as populações urbana e rural: 24,6%
versus 15,7%. As redes de saneamento também chegam a menos de um terço da
população urbana (29,5%) e a 23,9% da população rural do país, segundo dados da
ONU.
Na Nigéria coexistem várias religiões, contribuindo
para acentuar diferenças regionais e étnicas. A Nigéria possui uma das maiores populações
de muçulmanos da África Ocidental. O Cristianismo (
essencialmente Protestantismo,
Anglicanismo e Catolicismo ) é a segunda maior religião na Nigéria,
de acordo com o levantamento mais recente, os cristãos constituem 40,5% da
população, enquanto que os muçulmanos são 51,2% e adeptos dereligiões indígenas 2,4%.
Um país de maioria muçulmana ao norte e predominantemente cristão ao sul.
A Nigéria é uma república federativa (composta por 36
estados e o Território da Capital Federal) presidencialista, sendo o presidente
eleito por voto direto. O presidente é simultaneamente chefe de estado e chefe
de governo. O Poder Legislativo da Nigéria é exercido pela Assembleia Nacional,
composta pela Câmara dos Representantes e pelo Senado. É, pois, um sistema
democrático. A Câmara de Representantes tem 360 membros, eleitos para um
mandato de quatro anos. O Senado é presidido pelo Presidente do Senado e tem
109 membros, eleitos para um mandato de quatro anos.
O actual presidente da Nigéria, após uma eleição muito
disputada em 25 fevereiro de2023, é Bola Ahmed Tinubu de 70 anos, do partido do
Congresso de Todos os Progressistas (APC). É de uma família muçulmana do grupo
étnico Yoruba, maioria do sudoeste da Nigéria. Foi eleito para um mandato de 4
anos.
Dos 200 milhões de habitantes apenas 93 milhões estão registados
para votar. O país enfrenta actualmente uma grave instabilidade económica e
alta inflação, graves problemas de insegurança e de corrupção, aumento do preço
dos combustíveis e alimentos e ainda o impacto dos choques climáticos, como as
inundações de 2022. A estes problemas acrescem os ataques de grupos terroristas
e banditismo armado e sequestros
O nordeste da Nigéria sofre a violência do BoKo Haram[1]
desde 2009 e agravou-se a partir de 2016 com o aparecimento da sua ramificação,
o ISWAP ( Estado Islâmico na Província da Africa Ocidental).
As duas organizações extremistas procuram, separadamente,
impor um Estado islâmico na Nigéria. Já mataram mais de 35 000 pessoas e
causaram cerca de 2,7 milhões de deslocados internos, mas também em países
vizinhos como camarões, Chade e Níger.
Em maio de 2023 as nações Unidas alertaram para o facto de
mais de meio milhão de pessoas na Nigéria estarem a sofrer de níveis de
emergência de insegurança alimentar com taxas extremamente altas de desnutrição
aguda e mortalidade. Calcula, ainda que cerca de dois milhões de crianças com
menos de 5 anos podem vir a sofrer de emagrecimento extremo nos estados nigerianos
que fazem parte da região devastada pela violência dos ataques de Boko Haram e
ISWAP.
Também em janeiro de 2023, a UNICEF alertou que a
insegurança alimentar na Nigéria que afecta actualmente cerca de 17 milhões de
pessoas continuará a subir de forma alarmante.
Membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(Opep), a Nigéria é o 11º maior produtor mundial de petróleo[2].
Essa matéria-prima responde pela maior parcela das exportações do país, e o
setor de petróleo e gás natural representa uma parcela de 10% do seu PIB, de
acordo com a Opep. Além do óleo e gás natural, a Nigéria é detentora de outros
recursos naturais, como minério de ferro, estanho, carvão, zinco, nióbio,
calcário e chumbo.
Apesar disso, a agropecuária, que corresponde a 21,1% do
PIB, é o setor da economia que concentra a maior parte da mão de obra. Os
produtos oriundos da agricultura são milho, dendê, mandioca, batata-doce,
inhame, arroz, sorgo, além de frutas. A indústria concentra-se no setor
extrativo[3]
(que inclui também madeira e borracha), e na produção de alimentos, calçados,
tecidos, couros, peles e produtos químicos.
O clima Tropical é
predominante nas áreas centrais da Nigéria, caracterizado por elevadas
temperaturas durante o ano e uma longa estação chuvosa. O sul é marcado pelo
clima Equatorial, com alta humidade relativa do ar, temperaturas que variam
entre os 20º C e 33º C e os maiores índices de pluviosidades do país, sobretudo
na região sudeste. No norte e nordeste da Nigéria, há ocorrência de clima
Semiárido e Árido, em que a estação chuvosa é curta, de cerca de quatro meses.
O relevo é composto
por planícies nas áreas costeiras e também na borda nordeste da Nigéria. Os
planaltos e colinas são predominantes no centro do território, onde o relevo é
relativamente mais acidentado. As montanhas estão concentradas na região
sudeste do país, na fronteira com Camarões. Fica nessa região o pico mais
elevado da Nigéria, o monte Chappal Waddi, que se eleva a 2419 metros. No
restante do país, a altitude média é de 380 metros[4].
II- Breve
história da Nigéria
No período que
antecede a chegada dos europeus, diversos impérios se formaram na Nigéria,
entre os quais está o Império de Benim, onde os portugueses aportaram no século
XV. Além dos interesses comerciais, estabeleceu-se o tráfico de pessoas para
serem escravizadas nas colônias portuguesas. A Nigéria tornou-se colônia
britânica no século XIX, quando foram criados os protetorados britânicos. O
país conquistou a sua independência definitiva em outubro de 1960.
A Nigéria tem a sua origem no ano 800 a.C., quando se funda a
primeira sociedade organizada na região.
Pelo ano 1000, o Império de Canem era o principal Estado que se
enriquecia com o comércio transaariano.
Antes de 1500, muito do que seria a "Moderna
Nigéria" era dividida em Estados que caracterizam os grupos étnicos
existentes até hoje.
Desses antigos Estados é possível aferir histórias em comum e
independentes dos Reinos de Iorubás,
de Ibos, Benim, de Hauçás,
de Nupés e Império de Canem e Bornu que deram base ao que no século
XX seria a Nigéria.
O Reino Unido anexa Lagos em 1861 e estabelece
o Protetorado[5]
de Oil River em 1884. A influência
britânica na área aumentou gradualmente ao longo do século XIX, sendo
que o Reino Unido só ocupou efetivamente a região a partir 1885 quando outras
potências europeias reconheceram o poder da Grã-Bretanha sobre a área na Conferência de Berlim[6] nesse
ano.
De 1886 a 1899, grande parte
do país foi governado pela Royal Niger Company e por um governador dos protetorados . Em 1900, os protetoradosSul e Norte da Nigéria passaram da empresa às mãos da Coroa Britânica, mantendo como
Colónia uma considerável autonomia regional entre as três grandes regiões da
Nigéria.
Após a Segunda Guerra Mundial foram aprovadas Constituições progressistas para aumentar a
representação e governo eleitoral pelos nigerianos. O período colonial na Nigéria durou até 1960, ano em que
ganha a sua independência.
Quando a Nigéria se tornou uma república federal independente dentro da Commonwealth em
1960 organizou-se segundo o sistema parlamentarista herdado
dos britânicos. O então presidente do Senado da Nigéria, tornou-se presidente da
República, posto visto como meramente formal diante da limitação de poderes ao
chefe de Estado preconizada por este sistema de governo. Era o primeiro-ministro
quem detinha o poder de facto por ser o chefe de
governo do novo país independente.
Entretanto, com a eclosão do golpe de Estado de 1966, o
período denominado Primeira República chegou ao fim,
sendo substituído por um regime ditatorial comandado por militares das Forças Armadas da Nigéria. Este golpe de
estado resultante de uma desavença entre os povos Hauçás e Ibos deu origem à Guerra
Civil da Nigéria, também conhecida como Guerra Civil Nigeriana[7], Guerra
Nigéria-Biafra ou ainda Guerra do Biafra que durou de 6 de julho
de 1967 a 13 de janeiro de 1970. Foi um conflito político causado pela
tentativa de separação das províncias ao Sudeste da Nigéria, como a República
autoproclamada do Biafra[8].
Entretanto, a Segunda República foi efêmera, pois
logo em 1983 os militares mais uma vez deram um golpe de Estado e
retornaram ao poder. Uma tentativa de transição política para a democracia foi
tentada com a realização de uma nova eleição presidencial em 1993,
porém o governo militar, de então, não
reconheceu o resultado eleitoral e anulou a eleição com base em supostas
irregularidades eleitorais que nunca foram provadas.
Enfrentando protestos em todo o país, o poder militar
nomeia um civil para liderar um governo de unidade nacional que
fosse capaz de organizar uma nova eleição presidencial. No entanto, um novo
golpe militar liderado apodera-se do poder e os militares governam o país de
forma ditatorial até 1998, data em que um militar politicamente mais moderado
que os seus pares se comprometeu, ao assumir o poder, de que realizaria novas
eleições diretas para os governos e assembleias estaduais, para as câmaras
legislativas federais (Senado da Nigéria e Câmara dos Representantes)
e para a presidência da República. Esta última foi realizada em 1999 e ganha
por um ex-militar filiado no Partido Democrático do Povo (PDP) procedendo-se
à transferência pacífica de poder de um militar para um civil e marcando o
início da atual Quarta República.
[1]Este grupo foi fundado em 2002 e
inicialmente as suas acções foram não- violentas. O seu principal objectivo era
purificar o islão no norte da Nigéria. As suas ações ganharam destaque na mídia internacional em
2014, com o sequestro de 276 mulheres. Em 2015 foiconsiderado o grupo terrorista mais
mortífero do mundo. O grupo reivindicou, ainda, o sequestro de 300 estudantes
nigerianos em dezembro de 2020.
[2]Só em 1992 foi iniciada a produção de petróleo.
[3]No entanto a
Nigéria possui uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo, conhecida
como Nollywood. A sua produção fica atrás apenas dos Estados Unidos (Hollywood)
e da Índia (Bollywood).
[4]Duas localidades da Nigéria foram
consideradas Patrimônio Mundial pela Unesco: a Paisagem Cultural de Sukur, no
noroeste do país, e o Bosque Sagrado de Oxum-Oxobô (Ọṣun-Oṣogbo, no iorubá),
conhecido como Templo de Oxum, no estado de mesmo nome que fica na região
sudoeste da Nigéria.
[5]O termo protetorado refere-se a um território
autônomo que é protegido diplomática ou militarmente contra terceiros por um
Estado. Em troca, o protetorado geralmente aceita obrigações específicas, que
podem variar muito, dependendo da verdadeira natureza de seu relacionamento. No
entanto, mantém a soberania formal, e continua a ser um Estado.
Durante a conferência, Portugal apresentou um
projeto, o famoso "mapa cor-de-rosa", que
consistia em ligar Angola a Moçambique, criando uma comunicação
entre as duas colônias, de modo a facilitar o comércio e o transporte de
mercadorias. Sucedeu que, apesar de todos concordarem com o projeto mais
tarde a Inglaterra, à margem do Tratado de Windsor, surpreendentemente recusou o projeto, dando um ultimato a Portugal, ameaçando declarar-lhe guerra se a
proposta não fosse retirada. Portugal, com receio de colocar em causa o tratado
de amizade e cooperação militar mais antigo do mundo, cedeu às pretensões
inglesas, retirando o projeto do mapa cor-de-rosa.
[7] Embora as tensões culturais, étnicas e religiosas
tenham sido alguns dos principais instigadores do conflito, a questão econômica
acabou sendo um dos fatores mais importantes, com o controle do Delta do Níger (região rica
em recursos naturais, como petróleo) tendo um enorme significado estratégico.
[8]Com apenas um ano de guerra, tropas do governo federal
nigeriano tinham Biafra completamente sob cerco, capturando as instalações de
petróleo da costa e ocupando a principal cidade. O bloqueio imposto pelo
governo nigeriano levou a uma fome em massa. Durante a guerra, mais de 100 mil baixas foram
reportadas entre forças militares devido a inanição, com entre 500 000 e 2
milhões de civis da região de Biafra morrendo devido a falta de comida.
A mulher negra e a
questão do cabelo
por
Margarida Mouta
Nega do cabelo duro
Ondulado e permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta que não sai da mente
Qual é o pente que te penteia
Quando tu entra na roda
O teu corpo bamboleia
Minha nega, meu amor
Qual é o pente que te penteia
Teu cabelo a couve flor
Tem um quê que me tonteia
Minha nega, meu amor
Qual é o pente que te penteia
Mise en plis a ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Toma banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia
Nega do cabelo duro (Oh minha nega)
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia (Oh nega)
Nega do cabelo duro (Oh minha nega)
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia
Qual é o pente que te penteia (Oh nega)
Compositores: Rubens Soares / David Nassar
Em muitos blogs
disponíveis na Internet ou mesmo em textos “sérios” que discutem questões
raciais e processos de produção da identidade, encontramos muitas narrativas de
mulheres negras sobre o seu cabelo, os cuidados que exigem, o orgulho que
inspiram ou os constrangimentos que provocam em diferentes momentos da sua vida
profissional e social. Essas narrativas refletem as experiências destas
mulheres e dão-nos uma ideia do modo como os seus cabelos crespos formaram ou
transformaram as suas identidades. De muitas delas, emergem experiências
atravessadas por episódios explícita ou implicitamente associados a racismo. A
pergunta fica no ar: Pode o cabelo de uma mulher
(negra) ser um instrumento de discriminação?
Chimamanda Ngozi Adichi diz-nos
que sim.
A propósito de Americanah, diz-nos: Não é um romance
autobiográfico, mas é verdade que a minha experiência pessoal pode guiar a
minha história. Estou a referir-me em especial a um assunto que me é
particularmente caro, o do cabelo das mulheres negras. A nossa
sociedade, através das imagens veiculadas por revistas e publicidade, exclui os
cabelos crespos dos padrões de beleza. Isso leva-nos a querer endireitá-los
constantemente, negando a sua forma natural. Eu recuso-me a impor esse sofrimento
à minha filha porque o cabelo dela faz parte da sua identidade. A luta contra
os estereótipos relacionados com a beleza da mulher negra é, portanto, também
uma das minhas principais preocupações.
E no
romance, tudo começa num salão de cabeleireiro para negras em Trenton, Nova
Jersey. Ifemelu escuta com alguma consternação as conversas das clientes. Falam
de desfrisagens, de cremes branqueadores para a pele, de casamentos com homens
americanos, de preferência, ou pelo menos com homens com os papéis em dia… Já
vão longe os anos difíceis de Ifemelu na América. Anos em que conheceu a
humilhação, a violência e a miséria dos primeiros anos como clandestina. Com o
passar do tempo, as coisas mudaram. Tornou-se bloguista de sucesso, dá
conferências e é considerada uma referência em matéria de racismo. Nos seus
posts, o seu humor cortante escalpeliza os preconceitos dos brancos e dos
negros, mesmo daqueles que se dizem não racistas.
Neste
primeiro momento da obra, Ifemelu está invadida por uma imensa nostalgia do seu
país, o único lugar do mundo onde ela imagina poder sentir-se à vontade na sua
pele, onde ela pensa poder reencontrar o seu lugar de pertença. E enquanto lhe
fazem as tranças no cabelo, à moda das mulheres africanas – facto que suscita a
desaprovação das outras clientes do salão – ela vai evocando a sua infância
feliz, o seu primeiro amor e os anos de aprendizagem na América.
Quando a tia Uju telefonou a dizer
que tinham chegado cartas a aceitá-la e uma oferta de bolsa de estudo, dá-lhe
como conselho fazer tranças pequenas que durem muito tempo, pois é muito caro
arranjar o cabelo na América. (p. 157)
Muito mais tarde, quando falou a
Ruth sobre a entrevista em Baltimore, ela diz-lhe: O meu único conselho?
Desfaça as tranças e alise o cabelo. Ninguém diz este tipo de coisas, mas
conta. Nós queremos que consiga esse emprego. (p.310). No seguimento desta
conversa, Ifemelu aceita uma nova “aventura”: fazer um tratamento de
relaxamento ao cabelo.
“Só queima um bocadinho –
disse a cabeleireira. – Mas olhe que bonito que está! Ena, menina, tem o
movimento do cabelo de uma branca. (311) A aventura custa-lhe uma
queimadura provocada pelo produto para desfrisar de que resulta uma progressiva
e desoladora queda.
A sua amiga Wambui, para quem “relaxar
o cabelo é como estar na prisão” (p.319), acusa os químicos e oferece-se
para lho cortar.
Curt reage ao corte:
“Porque é que tens de fazer isto?
O teu cabelo era lindo com a as tranças. E quando tiraste as tranças da
última vez e o deixaste, tipo, natural? Era ainda mais lindo, tão volumoso,
mesmo fixe. A estas palavras de Curt, Ifemelu reage, fazendo-o ver que o
seu cabelo volumoso e fixe resultaria se fosse a uma entrevista para o coro de
uma banda de jazz, mas não para uma em que precisa de parecer profissional. Por
outras palavras, cabelo para uma entrevista profissional significa cabelo liso,
ou encaracolado à branca ou caracóis soltos ou aos cachos, mas nunca em caso
nenhum, cabelo encarapinhado. (p.313)
Quando, ao fim de três dias aparece
no trabalho com um penteado afro, muito curto, sentindo-se horrorosa com apenas
dois centímetros de cabelo na cabeça, os colegas acham-na diferente.
Miss Margaret, a funcionária afro-americana da cafetaria pergunta-lhe se ela é
lésbica. No fim, quando Ifemelu se demite, pergunta-lhe se o cabelo não terá
sido parte do problema.
Vale-lhe a descoberta da HappilyKimkyNappy.com,
um mundo onde os produtos para desfrisar eram designados por crack em creme,
onde as mulheres trocavam receitas e, mais importante ainda, um mundo onde as
mulheres negras “esculpiam para si próprias um mundo virtual em que o seu
cabelo encarapinhado, cheio de quebras, crespo e lanudo era normal”. Reconciliada consigo própria e com a sua
cabeleira de negra, Ifemelu aterrou nesse mundo com gratidão.
Ansiogénicas
e muitas vezes inatingíveis, as normas da beleza atual são motivo de sofrimento
para um grande número de mulheres, mas parece que são ainda mais tóxicas para
as mulheres negras, excluídas do universo liso dos cabelos das brancas.
Para
Ifemelu, libertar-se deste ideal formatado é quase uma operação de magia:” Num
dia como noutro qualquer no princípio da primavera (…) ela olhou-se ao espelho,
enfiou os dedos no cabelo espesso, esponjoso e maravilhoso e não conseguiu
imaginá-lo de nenhuma outra maneira. Simplesmente apaixonou-se pelo seu cabelo. (327)
Este romance
pode ser encarado como o elencar de muitas renúncias. Não basta engolir a sua
identidade para se fazer aceitar. É preciso ir mais longe. A necessidade de
alisar o cabelo está, na obra, ao mesmo nível que a necessidade de branquear a
pele, de polir o sotaque, de dissimular os traços culturais… Contornar ou
ignorar estas formas de “retocar a fotografia” é motivo suficiente para não se
ter entrada franca no mundo do trabalho ou mesmo no mundo académico. O cabelo
afro desvirtua os padrões, aceites inclusivamente pelos negros mais velhos que
olham com desconfiança para os que assumem a sua negritude na cabeça. Ao
lado da autoestima, o cabelo pode ser um aliado quando se trata de valorização
racial e identitária. Em Americanah,
publicado em 2013, Chimamanda faz do cabelo um tema político.
E a
politização do cabelo viria a ter repercussões na cena política.
Na Califórnia,
em Nova York e Nova Jersey foi aprovada em 2019 a lei Crown (de Criate
a Respectful and Open Workplace for Natural Hair - “crie um lugar de
trabalho respeitoso e aberto ao cabelo natural”) que proíbe, também nas
instituições de ensino, a discriminação pelo tipo de penteado. Em vários outros
Estados, já foram elaborados projetos-lei para punir a discriminação contra o
cabelo afro.
O filme
“Hair Love”, que retrata a história de um pai negro a pentear a filha pela
primeira vez, ganhou um Oscar de Melhor Curta de Animação em 2020, sendo
considerado uma celebração dos cabelos naturais. No discurso da cerimónia dos
Oscars, o realizador Matthew A. Cherry disse que um dos objectivos do filme era
“normalizar o cabelo negro”.
Como Ifemelu decidiu
‘realmente voltar para a Nigéria’ 31
ou
‘E, claro, havia também Obinze’17
por
Manuela Pereira
“A
prince is a servant in foreign land.”
Genesis,
Deus disse a Abraão: ‘Thy seed shall be a
stranger in land that is not theirs, and shall serve them.”
“Rugas
de perplexidade apareciam na testa das pessoas quando dizia que ia voltar.” 28 “Ahn – Ahn! Normal, kwa? Não é
nada normal!” 220
Só Dike lhe tinha dito “Prima, tu devias ir embora.” 570
Ifemelu
já tinha enviado o email a Obinze,
dizendo “…Decidi recentemente voltar para a Nigéria. (…) Adorava manter o
contacto….” 35
Nesse
dia, tinha apanhado um táxi para ir pela primeira vez ao Mariama African Hair
Braiding. Rodeada por mulheres negras imigrantes como ela__ Mariama e Halima,
do Mali e Aisha, do Senegal 23 ___ soube que “nenhuma delas sorriria a uma
americana da mesma maneira” que Halima lhe tinha sorrido. 23
Enquanto
Aisha lhe entrançava o cabelo e lhe fazia perguntas insistentes sobre o
casamento e os dois namorados igbos, deixou o seu pensamento deambular. Não
gostava de Aisha, as suas perguntas incomodavam-na, e sentiu um “prazer
perverso” 32 quando
lhe disse que vivia em Princeton, o tipo de lugar que Aisha só podia imaginar.32
Mentiu-lhe sobre o
seu tempo de permanência na América. E mentiu-lhe de novo dizendo que ia voltar
para a Nigéria, “para ir ter com o seu homem.”, “O meu homem.” 34 E
surpreendeu-se a si própria. “Que fácil era mentir a estranhos, criar (…) as
versões da nossa vida que imaginámos.”34
Para
evitar a conversa tinha pegado no telefone e tentado falar com Dike que não
respondeu. Sentindo-se audaz 31 enviara um email
a Obinze dizendo que decidira recentemente voltar para a Nigéria.
“Não
havia nenhuma causa específica” 18 para voltar.
“O seu blogue estava a correr bem e andava a
ganhar bons honorários por falar em público.” 16 Estava a acabar a bolsa de
investigação na Universidade de Princeton. Tinha sido Boubacar, um professor
catedrático senegalês de pele castanha, quem lhe falara “sobre a nova bolsa de
investigação em Humanidades.” 512/514 “Ele tinha uma inteligência
fenomenal e uma autoestima igualmente fenomenal.”512
Há
três anos que vivia com Blaine “o seu homem bom”, um afro-americano professor
em Yale. “Anos livres de rugas 18 passados num apartamento em New Haven, “com uma
sala de estar inundada em jazz suave e luz do dia.”18 “Mas camada após camada de descontentamento
(…) instalara-se nela.” 18
Havia cimento na sua alma 16
“Já lá estava há algum tempo, uma doença de fadiga matinal (…) de falta de
fronteiras pessoais (…) Tinha vislumbres imaginários de outras vidas que
poderia estar a viver. 16
Com Blaine, “Verdadeiramente, sempre se sentira sentada à janela a olhar para
fora.”18
Blaine
não tinha gostado de Boubacar, mas ela aproximara dele “como de uma pessoa que
falasse a mesma linguagem silenciosa que ela”.(…) “Tinha um riso de família”. 513 Mentira a Blaine porque
preferira ficar num almoço de despedida com Boubacar, “em vez de se ir pôr em
frente à biblioteca da universidade a segurar um cartaz de protesto”.520
Mais tarde, reconheceu
no tom de Blaine “uma acusação subtil, não meramente à sua preguiça, à sua
falta de zelo e convicção, mas também à sua africanidade; não estava
suficientemente furiosa, porque era africana, não afro-americana.” 521
E
ao voltar para Princeton, para fazer a bolsa de investigação 32 “pensou num novo início para si,
sem Blaine.” 535
Começou a sonhar e a concorrer a empregos em Lagos.
“Tenho
de ir”18 foi como Ifemelu dissera a
Blaine que tinha chegado ao fim. 18
Mais
tarde as dúvidas assaltavam-na, “E se ela chegasse a Lagos e se desse conta do
erro que tinha sido regressar?” 288 Felizmente podia voltar quando quisesse. “Um
passaporte azul americano (…) protegia-a da falta de escolha.” 583 “Mas só quando o seu automóvel
estava num navio a caminho de Lagos, lhe pareceu verdade.” 31
Lembrou-se
da admiração que sentira por uma mulher gorda com uma saia muito curta, que
vira na estação de Trenton. Pensara que “a atitude da mulher tinha a ver com a
convicção calma que uma pessoa partilhava apenas consigo própria, uma sensação
do que estava certo e os outros não conseguiam ver.” (…) “A sua decisão de
voltar para a Nigéria era semelhante: sempre que se sentia assaltada por
dúvidas, pensava em si própria como alguém corajosamente só, quase heróica,
para esmagar a sua incerteza.”19
Tinham
passado treze anos desde que Ifemelu deixara a sua família, os seus amigos e o
seu namorado da faculdade, para estudar nos Estados Unidos. Chegou à América, perseguindo a obsessão de
Obinze pelo “American Dream”, “ansiosa
por compreender tudo (…) por usar imediatamente uma pele adaptada.” 210 Passava as suas horas livres na
biblioteca e “escrevia a Obinze sobre os livros que ia lendo” 211 sobre o que via e aprendia.
Ganhou novos hábitos e “saíam-lhe novas palavras da boca” 211
A
faculdade,a sua amiga Wambui e,mais tarde, o blogue iriam desembaraça-la dos
seus véus de neblina.
Quando
começou a trabalhar para Kimberly como babysitter, foi a primeira vez que
contactou com uma família branca privilegiada e compreendeu a diferença entre a
forma como se via a si própria e a forma como era vista pelos outros. Aprendeu
que para Kimberly “os pobres não tinham culpa” 232, descobriu que “havia luxo na
caridade” e “desejou súbita e inesperadamente ser do país das pessoas que
davam” 262
Com
Curt, o seu namorado branco e rico, “tornou-se na sua cabeça uma mulher livre
de nós e preocupações” 301/306 Curt ajudou-a a arranjar emprego, visto de
trabalho, passaporte. Conseguiu um carro e um apartamento seu em Baltimore.
Viajou pela Europa, teve acesso a um luxo e a uma riqueza que transformaram a
sua situação de imigrante. “Gostava acima de tudo, de neste lugar de facilidade
desafogada, poder fazer de conta que era outra pessoa”11/12
Mas
foi também com Curt, ao vê-lo conversar com os amigos, que se apercebeu que “a
um certo nível, nunca poderiam ser compreendidos por ela.” 317
e que ele nunca a
compreenderia. Quando acabou com ele__traíra-o com Rob, porque sentira
curiosidade 436__sentia
que “Havia algo de errado nela (…) um conhecimento incompleto de si própria.”439
“já não sabia quem
tinha sido, do que tinha gostado, o que tinha querido.” 439/456
Ainda
com Curt tinha deixado de alisar o cabelo e começara a usar um penteado afro. Wambui indicara-lhe uma comunidade de cabelo natural HappilyKinkyNappy.com
321,quando se sentira verdadeiramente
infeliz com o seu cabelo.__” Wambui era tão segura, tão convincente!” 319 No dia em que conheceu Blaine,
numa viagem de comboio a Willow 502, para ver Dike e a tia Uju, tinha decidido “deixar
de fingir que tinha sotaque americano” 267 Depois de acabar com Curt cansou-se
do trabalho, que a maçava. “Não tinha planeado despedir-se, mas subitamente
pareceu-lhe ser o que tinha que fazer” 457 Nunca tinha perdido o contacto
com Wambui e um fim de tarde escrevera-lhe um longo email a dizer “as coisas que ela não dizia a Curt, coisas por dizer
e por acabar.” Wambui respondera-lhe “Devias criar um blogue” e “ ela ansiava
por outros ouvintes e ansiava ouvir as histórias de outras pessoas.”449
Começou a escrever
um blogue 459
anónimo chamado “Sobre Raça ou Várias Observações Sobre os Negros Americanos
(Anteriormente Chamados Pretos) por uma Negra Não Americana.”13
Escrevia sobre
discriminação, raça, classe, género e estatura.16 Mais tarde percebeu que o blogue
ajudava centenas de imigrantes legais e ilegais que chegavam à América sem conseguirem apoio para
continuarem na luta pelos seus ideais.
E
quando atingira o estatuto social e cultural que a tornaria totalmente integrada
na sociedade americana, “por vezes não se sentia segura do que escrevia, por
vezes não acreditava no que escrevia” 15 Quanto mais escrevia, tanto
menos segura se sentia. E “ tinha escrito o
post final no seu blogue há dias.”14
“Sentia
saudades lancinantes do seu país.” 16 E qualquer insinuação de que a América a tinha modificado, ou “a
sugestão de que tinha sido de alguma forma alterada pela América (…) eram espinhos cravados na sua pele.” 33
Tudo
começara quando encontrara Kayode DaSilva no centro comercial. Tinham-se
abraçado e voltado “às suas vozes nigerianas e às suas personalidades
nigerianas” 340 Kayode
falara-lhe do seu “camarada Zê” 341 Estava em Londres. Tinham acontecido mudanças na
vida dele de que ela não estava a par e sentiu-se “profundamente traída ao
ouvir aquela notícia.” 341
O encontro tinha-a perturbado profundamente e Curt tinha-o notado. Ela mantivera
Kayode à distância e “ achou-o culpado por trazer Obinze de volta” 342
Mais tarde, nesse
dia, enviara o primeiro email a Obinze, depois de muito tempo sem dar
notícias. Dizia-lhe que sentia a falta dele. “E ele não respondeu.” 343 ___»parte
3
Já
estava numa relação recente com Blaine, 29 quando Ranyinudo, com quem se
tinha mantido em contacto, lhe contou que “Obinze ia casar.” 28 “Entretanto, ele agora tem
carradas de dinheiro. Vê só o que perdeste” Nessa altura ela “já tinha
reconhecido a sua pequena chama acesa” Escreveu-lhe de novo. Desejara-lhe
muitas felicidades no casamento e mencionara o negro americano com quem estava
a viver 35/36. Ele respondeu agradecendo a
mensagem e dizendo que nunca tinha sido tão feliz na vida. E ela não voltara a
escrever-lhe.
Começara
a vasculhar sites nigerianos “e cada
clique trazia mais uma história de uma pessoa jovem que voltara recentemente
para a sua terra (…) Sentia a dor surda da perda como se lhe tivessem tirado
alguma coisa que era dela.” 16 “Eles estavam a viver a vida dela” 17
“Em
Dezembro passado, quando Ranyinudo lhe disse que tinha encontrado Obinze por
acaso (…) com a sua bébé” 29
“A Nigéria tornou-se (…) o único lugar onde poderia enterrar as suas raízes sem
a necessidade constante de as arrancar e sacudir a terra.” 17
“E
Obinze era a única pessoa com quem nunca sentira necessidade de se explicar.”17 Escrevera-lhe o emaila
dizer que ia voltar.
Obinze
sabia que “ela era o tipo de mulher (…) que faria um homem virar a sua vida de
pernas para o ar” 55
“E
sentiu o impulso de alisar alguma coisa….” 35
Manuela
Pereira Clube
Leitura_20/ 06/ 2023
Obinze e Blaine: duas temperaturas
para um
termómetro
por
Conceição Rocha
Ifemelu tem em alto grau a qualidade de
se pensar – dissecando as opções e acontecimentos da sua vida com
distanciamento – e, ao mesmo tempo, de se entregar ao puro sentir, às emoções e explosões de momento, a uma
sinceridade quer amorosa, quer agressiva, sem pruridos de culpa ou racionalidade.
Jovem mulher de duas culturas, ou
melhor, talvez, de uma cultura e outra em somatório sem que desapareçam as
evidências quer de uma quer de outra, Ifemelu é intensa, inteligente, sensual,
com uma força que parece distancia-la de qualquer espécie de opressão,
subalternidade, humilhação, mesmo quando experimenta consigo a complexidade de
atitudes da América racista e amaneirada, com o seu inventário de não brancos e
o respectivo lugar na sociedade. A sua capacidade de abordar essa problemática
num blogue é notável e não menor é a sua capacidade de sobrevivência nos quatro
grandes estádios por que passa – adolescente e jovem em Lagos, onde vive o
primeiro amor, emigrante africana pobre, africana bem sucedida na América
académica, africana regressada a uma realidade outra, mas que é a África sua de
origem.
E é nesse percurso que fazem sentido
Obinze e Blaine, cada um ocupando um espaço mental e afectivo específicos,
ambos portadores de prazer e sofrimento, cada um com uma personalidade que
conhecemos pelos pensamentos e actos que vão sendo descritos e, sobretudo, pelo
significado que esses pensamentos e actos têm para Ifemelu.
Não nego que gosto mais de Obinze do
que de Blaine, até tenho a certeza de que é isso que Ifemelu quer e consegue.
Obinze é o amor de descoberta, de frescura, de emoções simples, como simples
eram nessa altura os seus protagonistas. Amando-se na igualdade de gostos e na
diferença, na alegria espontânea e honesta do fruir dos corpos e do tempo
comum.
A viagem de cada um para os dois mundos
anglo saxónicos é também uma separação. Dura para ambos, as vidas de emigrantes
africanos sem visto é dificílima. Obinze não é bem sucedido na Inglaterra, é
explorado e repatriado. No entanto, faz fortuna na Nigéria emergente, casa, é
pai, frequenta os meios certos. Mas a emoção por Ifemelu reaparece com os mails
que ela não resiste a enviar e a vida quotidiana de tédio parece começar
lentamente a espevitar-se, a princípio com emoção contida, a pouco e pouco com
intensidade.
Entretanto, Ifemelu entra nos meios
académicos e conhece Blaine, o típico intelectual de esquerda americano, movimentado
com talento entre pares, praticante do politicamente correcto, irmão e amigo de
uma colecção de neuróticas cultíssimas, profundamente empenhadas em evitar
qualquer deslize reaccionário, vegetariano, sóbrio, austero, íntegro até à
medula, incapaz de pensar ou agir sem tal subordinar a um significado. Homem
bonito, corpo ginasticado, sabe vestir-se como académico de esquerda. Ifemelu
conhece-o, impressiona-se e provoca o encontro. É bem sucedida, não à primeira,
como seria de esperar de um homem como Blaine.
Ifemelu entrega-se, sem no entanto
perder o mínimo de distanciamento que a torna lúcida e resistente a algumas
hiper exigências do companheiro. No fundo, parece-me haver com Blaine mais
atração, admiração, novidade, gosto em desafiar as suas capacidades de
frequentar novos meios mais sofisticados do que aqueles que até aí teve, do que
o tal amor que ficou na memória da Nigéria de Obinze e da sua juventude. Mas,
aparentemente, adapta-se e sofre com o epílogo da relação.
Blaine é um homem previsível no seu
dia a dia de integridade, emoções contidas, alimentação certa, amigos idênticos,
tudo no seu lugar. Tendemos a considera-lo um chato. Não o é completamente, mas
falta-lhe a centelha que Ifemelu merece.
Obinze é um homem calmo, seguro,
também íntegro, mas a experiência do amor juvenil que não esquece faz-me pensar
que possui a tal centelha. Menos bonito do que Blaine, o seu encanto não parece
decorrer daquilo que é dito sobre a sua vida – apesar de uma mãe especial,
constitui uma família tradicional, move-se num grupo social formal e até
corrupto, ganha e gasta do mesmo modo que os outros. O seu encanto começa no
que foi a sua relação com Ifemelu, nas
memórias desse amor vivo, informal, espevitado, que perdurou com tal força que
até o encorajou a tornar novamente tudo claro e intenso.
Obinze é a opção certa. Enquanto for.
Obinze e Blaine, apesar das
personalidades que bem os individualizam, são muito o que deles sabemos na
relação com aquela mulher bela, inteligente, sensual. E essa imagem
provavelmente favorece um e desfavorece o outro; a lente através da qual os olhamos
é muito forte e muito dirigida.
Este desfecho contraria aquilo que eu
sempre pensei – que não há amor como o último. Aqui, é como o primeiro. Estou
sempre disponível para aprender.
Conceição Rocha
O Clube Nigerpolitano
ou
“O espírito sintonizado com o outro lado do Atlântico”
por
Delfina Rodrigues
I – O Retorno
Ifemelu entra no “Mariama African Hair Braiding”, no final do 1.ª capítulo, pág. 34, dondesai apenas na pág. 546, muitos capítulos e 6 horas mais tarde. Esta longa permanência,“num dia cheio da opulência do verão”, é motivada pela sua determinação de regressar àNigéria, ou a casa, como se lê: “… pestes a entrançar o cabelo para a viagem de regresso acasa” (pág.19) e serve de palco para a evocação da sua vida na Nigéria, primeiro, e duranteos treze anos vividos nos EUA, cujo sonho perseguiu como tantos nigerianos, depois.
Este primeiro contacto com a personagem dá conta de um vivido mas ultrapassadoconflito interior, entre regressar e permanecer, e do modo como a sua decisão surge tãopouco racional a olhos alheios. Como se trocar os EUA pela Nigéria fosse da ordem doirracional. Pesaram, para ela, razões emocionais, “saudades lancinantes do deu país” e nãoqualquer “epifania radical” ou “causa específica”, “simplesmente, camada atrás de camadade descontentamento instalara-se nela e formara uma massa que agora a impelia” (pág. 18).
Apenas Ranyinudo, amiga de Lagos, “fizera o seu regresso parecer normal”. Lagos, dizia-lhe,“está agora cheia de retornados americanos, por isso é melhor tu voltares e juntares-te aeles”. E assim aconteceu. Se na América descobriu a raça, como afirma, o regresso fá-ladescobrir uma cidade natal diferente da que deixara. Enfrenta agora uma cidade estranha,ou vista pela primeira vez com um olhar disfórico: são os” autocarros amarelos cheios debraços e pernas esmagados”; os “vendedores ambulantes suados a correrem atrás doscarros”; os” anúncios em gigantescos painéis publicitários”; os “montes de lixo que seerguiam nas bermas das estradas como uma provocação”… E interrogava-se: “Sempre foiassim, ou teria mudado muito durante a sua ausência?”; “E quando é que os lojistas setinham tornado tão grosseiros e os edifícios adquirido esta pátina de deterioração?”;
“Quando é que Lagos se tinha tornado uma cidade de pessoas prontas a mendigar edemasiado interessadas em coisas de borla?”. Eis algumas questões que lhe dominaram oolhar e o pensamento perante a Lagos a que regressava e que lhe valeram o epíteto deAmericanah, na voz de Ranyinudo, que a esperava no aeroporto.
Progressivamente o regresso ia sendo acompanhado de outras estranhezas que ainterpelavam, designadamente as relações amorosas utilitárias, os sinais exteriores daimportância social avaliada a partir do número de governadores presentes nos casamentes,o casamento como condição de sucesso, que a levou a mentir acerca da sua relação comBlaine e afirmar que ele viria mais tarde. E depois havia verdades objectivas: “Agora amulher que lhe entrançava o cabelo e a vendedora de banana da terra a tomar conta de umgrelhador enegrecido tinham um telemóvel e antes só os ricos tinham”.
Estrangeira em casa, Ifemelu vai-se instalando, numa (re)integração feita deestranheza e aconchego, até assumir o primeiro trabalho numa revista feminina a que secandidatara ainda nos EUA, que não dissipa, antes acentua as primeiras impressões.Considera a recepção na casa da patroa pouco profissional, mas enfim, entranhava a ideiaque se instalara: estava-se na Nigéria “onde as fronteiras eram esbatidas, onde o trabalhose misturava com a vida privada e se chamava Mamã à chefe”. A esta, outras impressões sejuntavam a completar o retrato que uma outra mundividência retirou da penumbra: era aestética das casas, o acabamento tosco das construções, a falta de profissionalismo dostrabalhadores a alimentar uma fúria crescente perante um trabalho mal acabado – “O problema é que nós já não temos artistas neste país”.
Na revista, encontra um microcosmo que encerra as mesmas questões e o confronto de mundividências entre os que saíram e os que ficaram no país, corporizado naspersonagens Doris e Zemaye, respectivamente. “Doris soava como se, de alguma forma, elae Ifemelu partilhassem o mesmo plano, a mesma visão do mundo”. Perguntava: “Tu andaste na Welson, em Filadélfia? Eu andei no Temple?” para que fosse imediatamente assente quepertenciam ambas ao mesmo clube superior, cumplicidade que Ifemelu não alimentava. E Zemaye insinuava: “Vocês as duas devem estar a falar do próximo encontro dos “Vindos - de
“”. Perceptíveis sinais de uma surda litigância entre entre grupos.
II – Os Vindos-de ou O Clube Nigerpolitano
É-lhe apresentado como “… uma data de pessoas que voltaram recentemente paracá, algumas de Inglaterra, mas principalmente dos EUA. …uma coisa discreta, só, tipo,partilhar experiências e estabelecer contactos”. Assim fala Doris. A voz narrativa descreve areunião como “Um pequeno grupo de pessoas a beberem champanhe por copos de cartãojunto à piscina de uma casa do Condomínio Osborne, pessoas chiques, todas a escorrerem savoir faire, cada uma delas ostentando uma excentricidade original própria- um penteadoafro ruivo, uma T-shirt com uma fotografia de Thomas Sankara, brincos artesanais exageradamente grandes…”(p.608) Surge aos seus olhos, no primeiro contacto, como umafeira de vaidades disfarçadas. Não dizem “estive em Harvard, estudei em Yale. Escondem o orgulho em falsamente despretensiosas referências metonímicas. Boston era a palavra decódigo para a Universidade de Harvard, New Haven para a Universidade de Yale.
Partilhavam uma familiaridade feita da possibilidade de fazerem referências comuns.
Carregadinhos de sentido crítico em relação à sociedade civil nigeriana, ao que a cidade nãooferece (sempre subliminar a vivência de civilização superior) e, recorrente, a “despretensiosa referência a evento em que se esteve “. Isto é, tinham, no regresso,” umacamada extra de verniz” que exibiam com displicência e com mal disfarçado orgulho.
E desfilam nostalgias da civilização abandonada: leite de soja magro, ligação rápida à Internet, bom atendimento ao cliente, restaurante italiano em condições…e outras tantasrejeições daquela em que (re)imergiram, designadamente os filmes de Nollywood. Ifemelu, que não tinha grande opinião dos filmes de Nollywood (cf p.28) dá consigo a afirmar: “Eu gosto dos filmes de Nollywood……podem ser melodramáticos, mas a vida na Nigéria é muito melodramática.” Torna-se evidente que esta opinião é ditada por um impulso de contrariar, uma forma de resistência ao perfil que definia os Vindos- de, em que decididamente não se revia.
Nostálgica do que perdeu e disponível para as idiossincrasias da sua cidade, do seu país, teme tornar-se no género de pessoa “têm o tipo de coisas que dá para comer”. Ela, que tinha saudades do estufado da mãe, “com uma camada de óleo a flutuar em cima do puré de tomate…” (p.593).
Constrangida na sua liberdade criativa, sai da revista e cria o blogue “As pequenas redenções de Lagos”, cujo post “O clube Nigeriano” expõe com a inteligência e o desassombro a que nos habituou a sua visão desta emigração de retorno:
“Lagos nunca foi, nunca será e nunca aspirou a ser como Nova Yorque, nem como qualquer outro lugar, diga-se. Lagos sempre foi indiscutivelmente ela própria, mas não se ficaria a saber isso num encontro do Clube Nigerpolitano, um grupo de jovens retornados que se reúnem todas as semanas para se queixarem de todas as coisas em que Lagos não é como Nova Yorque, como se Lagos alguma vez tivesse estado perto de ser como Nova Yorque. Uma confissão: eu sou uma dessas pessoas. …” (p.629)
Despida, porém, de falsos preconceitos e disponível para acolher as diferenças, porque ela sabia que a Nigéria se tornara no lugar “onde ela devia estar, o único lugar onde poderia enterrar as suas raízes sem necessidade constante de as arrancar e de sacudir a terra” (pág. 17) e admitir que “tinha sido de alguma forma irrevogavelmente alterada pala
América eram espinhos cravados na sua pele” (pág.33).
A Nigéria era, enfim, a terra onde ficou, em suspenso, um grande amor que agora