domingo, 20 de novembro de 2022

A representação do tempo em O Som e a Fúria

 A representação do tempo na narrativa

                                                         O Som e a Fúria, William Faulkner_1929  

                                                                   por  Manuela Pereira                                       

 

O tempo no romance refere-se à duração das acções na narrativa e não corresponde nunca ao tempo medido pelos relógios.

 0 tempo é um elemento essencial para a compreensão da narrativa. O tempo cronológico é o tempo narrado segundo a ordem do relógio. O tempo psicológico, variável de pessoa para pessoa, é interior, cronometrado apenas pelas vivências, sonhos, pensamentos e memórias. É um tempo subjectivo, por oposição ao tempo físico da natureza, onde a percepção do tempo se faz em função do passado ou do porvir. O tempo sinestésico narra planos sensoriais distintos relacionando-os entre si, atribuindo a qualidade de um sentido a outro e cruzando-os entre si. O tempo metafísico descreve a procura da causa primeira de todas as coisas.

Faulkner utiliza todas estas categorias do tempo na narrativa. Representa o tempo psicológico usando diferentes formas de narrar, associando-as ao pensamento de diferentes personagens / narradores, e explora uma linguagem nova que revoluciona a escrita cronológica e linear.

Em ‘O Som e a Fúria’, temos a impressão de que o tempo flui de forma subjectiva e, por vezes, caótica. Só no último capítulo a narrativa se desenvolve de forma cronológica e o tempo obedece, por fim, ao ritmo do relógio, ao tempo natural.    

Em apenas três dias, ___Véspera do suicídio (40 dias depois do casamento), Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia ___ três personagens Benny, Quentin e Jason, os irmãos de Caddy, narram a vida da irmã e a forma como ela afectou a suas próprias vidas, narrando simultaneamente a história de três gerações da família Compson e dos seus criados negros, e a perda dos privilégios de uma família do Sul dos Estados Unidos. As formas de narrar de Benjy, Quentin e Jason são pessoais, têm a ver com a personalidade e a idade de cada um dos narradores/personagens, e sentimos de forma diferente e com duração diferente, o espaço de tempo de cada um dos dias narrado por cada um deles.

Benjy ___ Ausência do tempo


Faulkner escolhe um homem de trinta e três anos, com a compreensão de uma criança de três, para narrar, no dia do seu aniversário, sábado de aleluia, o tempo parado de alguém que não tem a consciência do tempo. É o tempo da infância, o tempo das crianças ‘Vá suba e fique queto té sua mãe chegá.’10 O espaço da narrativa nunca ultrapassa o espaço da casa e do jardim, embora, por vezes, passe a cerca e chegue ao prado ou ao riacho. Só uma vez se ultrapassa o portão.   

Narra-nos toda a história, mas fala-nos principalmente da infância, da infância de Caddy.

Confrontados com o pensamento de Benjy, temos a sensação de um tempo constante, de um tempo que se anula e se repete. Tudo acontece sem distinção do tempo cronológico. A sua narrativa é caótica, não sabemos onde nos situarmos e não encontramos pontos de referência.

As suas impressões são um fluxo de imagens de um tempo simultaneamente passado e futuro. As suas sensações chegam à consciência ou memória através dos sentidos_ sons, cheiros, formas e texturas. O olfacto, o sentido que mais rapidamente nos transporta ao passado, é o seu sentido mais desenvolvido.

Benjy, que vive entre a dor e a alegria, narra planos sensoriais distintos no tempo, relacionando-os entre si. As imagens que chegam à sua memória ligam-se pela qualidade dos sentidos, pelas cores, pelos sons, cruzando-se entre si. É um tempo sinestésico. 1

Quentin ___ Para além do tempo

 Éu fui. Não sou.´156

O mais inteligente dos irmãos, a estudar em Harvard, é ele que reflecte sobre o tempo e sobre a vida. Deambula pelo espaço da cidade e arredores, enquanto narra os preparativos para o seu suicídio. O tempo da narrativa é um tempo psicológico, lento, é o tempo de quem caminha, ou anda de comboio, envolto nos seus pensamentos obsessivos, vivendo as memórias do passado.

Mas à sua volta tudo o vai lembrando do tempo concreto, do tempo que não pára ___ seja a sombra na janela, o badalar dos sinos ao longe, o cair do dia ´…quando o horizonte se tinge de amarelo sobre os telhados…´151 e aparece o ´… reflexo supino e tranquilo…´___ então a sua narrativa desvia-se para um tempo objectivo, cronológico. 94. Observa o tempo que passa e questiona-se sobre a sua existência. ´Comer essa coisa de comer dentro de nós o espaço também o espaço e o tempo confundidos o Estômago a dizer meio-dia e o cérebro a dizer hora de comer…´ 94 E volta aos seus pensamentos. Entra e sai do tempo. Chega mesmo a referir que ´…entra no tempo…´, quando volta ao tempo físico após vaguear nas suas memórias.

É um tempo circular, em que passa repetidamente pelos mesmos lugares, em que relembra obsessiva e repetidamente os mesmos momentos e desejos. Perseguido pela própria sombra, escondendo-se nela, vive na escuridão do passado, culpabilizando-se pela sua paixão pela irmã e por não ter sido capaz de a proteger. O desejo de sair fora do tempo, de acabar com o tempo, e o seu desejo de aniquilação pessoal exprime-se com o estilhaçar do relógio 73 do avô ´…mausoléu do tempo e do desejo…´, oferecido pelo pai. O relógio que ficou sem ponteiros e por isso incapaz de mostrar as horas, embora continuando teimosamente a trabalhar sem parar, ´…ele que não podia sequer mentir.´154

Quentin, um jovem de vinte anos que se suicida no Rio Charles, quarenta dias (o tempo da quaresma) após o casamento da irmã, faz-nos conhecer melhor os pais, principalmente o pensamento do seu pai 159-160, ao relembrar as suas conversas. O espaço da narrativa não vai além do espaço da universidade e dos arredores da cidade, e do espaço das suas memórias. Conta-nos o seu tempo em Harvard, mas narra em particular a adolescência, a sua adolescência e a da irmã, e o tempo do noivado de Caddy e Herbert Read.

´Um quarto de hora ainda. E depois já não serei.´156 ´A última nota soou.´160

Jason___O tempo que corre

Jason corre atrás do tempo na tentativa de recuperar o tempo perdido. É um tempo corrido, um tempo de perseguição, violência e agressão. É o tempo da velocidade do automóvel em contraste com a lentidão humanizada da caleche. A sua narrativa é linear e cronológica, entrecortada por flashbacks de um tempo passado e de recordações que lhe alimentam o ressentimento e o desejo de vingança, e por isso, é também um tempo psicológico.

Esta narrativa deixa-nos pôr o pé em terra firme. O tempo da narrativa é o tempo natural, que conhecemos, marcado pelo avançar do dia e do relógio. Mas é um tempo acelerado, em que os acontecimentos se sucedem rapidamente e em catadupa. O espaço da narrativa vai para além da casa e da cidade onde trabalha, alongando-se até outras cidades a quilómetros de distância, atravessando os campos, aventurando-se mesmo a lugares desconhecidos onde corre risco de vida. Vamos tendo cada vez mais informações sobre a história da família Compson e da família Bascomb.

Jason, o menino gordo e queixinhas que dormia com a avó e sofreu muito novo a sua morte, revela-nos muito sobre a sua maneira de ser invejosa e vingativa. É um adulto revoltado com a vida e com a sua condição subalterna, e desespera com a decadência da família. Fala-nos dos seus ódios pelas duas mulheres, por todas as mulheres, a quem atribui toda a responsabilidade pelo seu fracasso. Fala-nos do seu ódio pelos negros e pela autoridade. A sua obsessão pelo dinheiro, que mantém fechado num cofre enganando quase todos à sua volta, e a maneira como despreza e tortura quem o rodeia 227 mostram-nos a sua falta de humanidade.

´Diabos te levem, disse a Quentin. Diabos te levem.´65

Na sexta-feira da paixão, Jason narra-nos a vida adulta, a vida adulta de Caddy após o casamento e o nascimento e juventude da sua filha Quentin.

Disley___O tempo místico 2

No quarto dia, Domingo de Páscoa, um narrador omnisciente descreve-nos Disley ‘…erguendo para o ar o rosto milenário…’ , conta-nos ‘…a coragem ou a força de que os dias e os anos se tinham alimentado…’ 237 e a forma como ela vê os seus patrões brancos.

Fala-nos dos preparativos para o almoço de domingo e da ida à missa dos negros, para ouvir o Rev’endo Shegog  ‘ Eu vejo tudo, irmãos! Eu vejo tudo! Uma visão atroz que deixa os meus olhos cegos’ 262-264…      ‘O home qu’era rico: onde tá el’agora, meus irmãos? ‘O home qu’era pobre: onde tá el’agora, minhas irmãs?’263

Disley, a criada negra sem idade, que levou Benjy com ela à missa para que fosse abençoado, ouve-o ‘Ele que viu o poder e a glória’ e volta para casa a chorar. ‘Vi o começo e o fim – disse Disley…Vi o começo e agora vejo o fim.’ É um tempo místico, metafísico, que procura descrever ‘as causas primeiras de todas as coisas’.

Este capítulo completa e fecha o quebra-cabeças com que nos confrontamos no início, depois de ‘…as forças adversas do destino e da vontade reunirem-se…’273 e descreve a fúria de Jason, que se abate sobre o negro Luster e o irmão mais fraco Benjy. Termina descrevendo os olhos de Benjy ‘…azuis e serenos outra vez, à medida que cornija e fachada deslizavam de novo da esquerda para a direita; postes e árvores, janelas, portas e cartazes, cada qual no seu devido lugar.’ 285

 

1 Sinestesia – (syn-) união ou junção e (-esthesia) sensação – é a relação de planos sensoriais diferentes. Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tacto. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenómenos provocados por uma condição neurológica. in Wikipédia ;)                                                        2 Místico – espiritual, devoto, misterioso.

08/11/ 2022 

 

Manuela Pereira                                                                                                   Clube Leitura_08/11/ 202

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