A representação do tempo na narrativa
O Som e a Fúria, William Faulkner_1929
por Manuela Pereira
O
tempo no romance refere-se à duração das acções na narrativa e não corresponde
nunca ao tempo medido pelos relógios.
0 tempo é um elemento essencial para a
compreensão da narrativa. O tempo
cronológico é o tempo narrado segundo a ordem do relógio. O tempo psicológico, variável de pessoa
para pessoa, é interior, cronometrado apenas pelas vivências, sonhos,
pensamentos e memórias. É um tempo subjectivo, por oposição ao tempo físico da
natureza, onde a percepção do tempo se faz em função do passado ou do porvir. O
tempo sinestésico narra planos
sensoriais distintos relacionando-os entre si, atribuindo a qualidade de um
sentido a outro e cruzando-os entre si. O tempo
metafísico descreve a procura da causa primeira de todas as coisas.
Faulkner
utiliza todas estas categorias do tempo na narrativa. Representa o tempo
psicológico usando diferentes formas de narrar, associando-as ao pensamento de
diferentes personagens / narradores, e explora uma linguagem nova que
revoluciona a escrita cronológica e linear.
Em
‘O Som e a Fúria’, temos a impressão de que o tempo flui de forma subjectiva e,
por vezes, caótica. Só no último capítulo a narrativa se desenvolve de forma
cronológica e o tempo obedece, por fim, ao ritmo do relógio, ao tempo natural.
Em
apenas três dias, ___Véspera do suicídio (40 dias depois do casamento), Sexta-feira
da Paixão, Sábado de Aleluia ___ três personagens Benny, Quentin e Jason, os
irmãos de Caddy, narram a vida da irmã e a forma como ela afectou a suas próprias
vidas, narrando simultaneamente a história de três gerações da família Compson
e dos seus criados negros, e a perda dos privilégios de uma família do Sul dos
Estados Unidos. As formas de narrar de Benjy, Quentin e Jason são pessoais, têm
a ver com a personalidade e a idade de cada um dos narradores/personagens, e sentimos
de forma diferente e com duração diferente, o espaço de tempo de cada um dos
dias narrado por cada um deles.
Benjy
___ Ausência do tempo
Narra-nos
toda a história, mas fala-nos principalmente da infância, da infância de Caddy.
Confrontados
com o pensamento de Benjy, temos a sensação de um tempo constante, de um tempo
que se anula e se repete. Tudo acontece sem distinção do tempo cronológico. A
sua narrativa é caótica, não sabemos onde nos situarmos e não encontramos
pontos de referência.
As
suas impressões são um fluxo de imagens de um tempo simultaneamente passado e
futuro. As suas sensações chegam à consciência ou memória através dos sentidos_
sons, cheiros, formas e texturas. O olfacto, o sentido que mais rapidamente nos
transporta ao passado, é o seu sentido mais desenvolvido.
Benjy,
que vive entre a dor e a alegria, narra planos sensoriais distintos no tempo,
relacionando-os entre si. As imagens que chegam à sua memória ligam-se pela
qualidade dos sentidos, pelas cores, pelos sons, cruzando-se entre si. É um tempo sinestésico. 1
Quentin
___ Para além do tempo
Éu fui. Não sou.´156
O
mais inteligente dos irmãos, a estudar em Harvard, é ele que reflecte sobre o
tempo e sobre a vida. Deambula pelo espaço da cidade e arredores, enquanto
narra os preparativos para o seu suicídio. O tempo da narrativa é um tempo psicológico, lento, é o tempo de
quem caminha, ou anda de comboio, envolto nos seus pensamentos obsessivos,
vivendo as memórias do passado.
Mas
à sua volta tudo o vai lembrando do tempo concreto, do tempo que não pára ___ seja
a sombra na janela, o badalar dos sinos ao longe, o cair do dia ´…quando o
horizonte se tinge de amarelo sobre os telhados…´151 e aparece o ´… reflexo supino e
tranquilo…´___ então a sua narrativa desvia-se para um tempo objectivo,
cronológico. 94.
Observa o tempo que passa e questiona-se sobre a sua existência. ´Comer essa
coisa de comer dentro de nós o espaço também o espaço e o tempo confundidos o
Estômago a dizer meio-dia e o cérebro a dizer hora de comer…´ 94 E volta aos seus pensamentos.
Entra e sai do tempo. Chega mesmo a referir que ´…entra no tempo…´, quando
volta ao tempo físico após vaguear nas suas memórias.
É
um tempo circular, em que passa repetidamente pelos mesmos lugares, em que
relembra obsessiva e repetidamente os mesmos momentos e desejos. Perseguido pela
própria sombra, escondendo-se nela, vive na escuridão do passado,
culpabilizando-se pela sua paixão pela irmã e por não ter sido capaz de a
proteger. O desejo de sair fora do tempo, de acabar com o tempo, e o seu desejo
de aniquilação pessoal exprime-se com o estilhaçar do relógio 73 do avô ´…mausoléu do tempo e do
desejo…´, oferecido pelo pai. O relógio que ficou sem ponteiros e por isso
incapaz de mostrar as horas, embora continuando teimosamente a trabalhar sem
parar, ´…ele que não podia sequer mentir.´154
Quentin,
um jovem de vinte anos que se suicida no Rio Charles, quarenta dias (o tempo da
quaresma) após o casamento da irmã, faz-nos conhecer melhor os pais,
principalmente o pensamento do seu pai 159-160, ao relembrar as suas conversas. O
espaço da narrativa não vai além do espaço da universidade e dos arredores da
cidade, e do espaço das suas memórias. Conta-nos o seu tempo em Harvard, mas
narra em particular a adolescência, a sua adolescência e a da irmã, e o tempo
do noivado de Caddy e Herbert Read.
´Um
quarto de hora ainda. E depois já não serei.´156 ´A última nota soou.´160
Jason___O
tempo que corre
Jason
corre atrás do tempo na tentativa de recuperar o tempo perdido. É um tempo
corrido, um tempo de perseguição, violência e agressão. É o tempo da velocidade
do automóvel em contraste com a lentidão humanizada da caleche. A sua narrativa
é linear e cronológica, entrecortada
por flashbacks de um tempo passado e
de recordações que lhe alimentam o ressentimento e o desejo de vingança, e por
isso, é também um tempo psicológico.
Esta
narrativa deixa-nos pôr o pé em terra firme. O tempo da narrativa é o tempo
natural, que conhecemos, marcado pelo avançar do dia e do relógio. Mas é um
tempo acelerado, em que os acontecimentos se sucedem rapidamente e em catadupa.
O espaço da narrativa vai para além da casa e da cidade onde trabalha,
alongando-se até outras cidades a quilómetros de distância, atravessando os
campos, aventurando-se mesmo a lugares desconhecidos onde corre risco de vida. Vamos
tendo cada vez mais informações sobre a história da família Compson e da
família Bascomb.
Jason,
o menino gordo e queixinhas que dormia com a avó e sofreu muito novo a sua
morte, revela-nos muito sobre a sua maneira de ser invejosa e vingativa. É um
adulto revoltado com a vida e com a sua condição subalterna, e desespera com a
decadência da família. Fala-nos dos seus ódios pelas duas mulheres, por todas
as mulheres, a quem atribui toda a responsabilidade pelo seu fracasso. Fala-nos
do seu ódio pelos negros e pela autoridade. A sua obsessão pelo dinheiro, que
mantém fechado num cofre enganando quase todos à sua volta, e a maneira como
despreza e tortura quem o rodeia 227 mostram-nos a sua falta de
humanidade.
´Diabos
te levem, disse a Quentin. Diabos te levem.´65
Na
sexta-feira da paixão, Jason narra-nos a vida adulta, a vida adulta de Caddy
após o casamento e o nascimento e juventude da sua filha Quentin.
Disley___O
tempo místico
2
No
quarto dia, Domingo de Páscoa, um narrador omnisciente descreve-nos Disley
‘…erguendo para o ar o rosto milenário…’ , conta-nos ‘…a coragem ou a força de
que os dias e os anos se tinham alimentado…’ 237 e a forma como ela vê os seus
patrões brancos.
Fala-nos
dos preparativos para o almoço de domingo e da ida à missa dos negros, para
ouvir o Rev’endo Shegog ‘ Eu vejo tudo,
irmãos! Eu vejo tudo! Uma visão atroz que deixa os meus olhos cegos’ 262-264…
‘O
home qu’era rico: onde tá el’agora, meus irmãos? ‘O home qu’era pobre: onde tá
el’agora, minhas irmãs?’263
Disley,
a criada negra sem idade, que levou Benjy com ela à missa para que fosse
abençoado, ouve-o ‘Ele que viu o poder e a glória’ e volta para casa a chorar.
‘Vi o começo e o fim – disse Disley…Vi o começo e agora vejo o fim.’ É um tempo místico, metafísico, que procura
descrever ‘as causas primeiras de todas as coisas’.
Este
capítulo completa e fecha o quebra-cabeças com que nos confrontamos no início,
depois de ‘…as forças adversas do destino e da vontade reunirem-se…’273 e descreve a fúria de Jason, que
se abate sobre o negro Luster e o irmão mais fraco Benjy. Termina descrevendo
os olhos de Benjy ‘…azuis e serenos outra vez, à medida que cornija e fachada
deslizavam de novo da esquerda para a direita; postes e árvores, janelas,
portas e cartazes, cada qual no seu devido lugar.’ 285
1 Sinestesia – (syn-) união ou junção e (-esthesia) sensação – é a relação de planos sensoriais diferentes. Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o tacto. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenómenos provocados por uma condição neurológica. in Wikipédia ;) 2 Místico – espiritual, devoto, misterioso.
08/11/ 2022
Manuela Pereira Clube Leitura_08/11/ 202
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