William
Faulkner, O Som e a Fúria
Água e sombras
por Maria José Marques
Ler O Som e a Fúria foi para
mim um desafio e tanto! Se ao menos os editores tivessem seguido a sugestão do
autor e imprimissem em cores diferenciadas os diversos tempos da narrativa
parte do esforço do leitor para arrumar, ordenar a sequência do que é narrado estaria
facilitado mas não resultaria na mesma experiência, seguramente.
As quatro secções em que está
dividida a obra sobrepõem-se de muitas maneiras mas, no essencial contam a
mesma história . Candace , Caddy, que estando no centro de toda a história na
verdade não chega a aparecer nela .Ela é reconstruída a partir das memórias dos
seus três irmãos ,e cada um a recorda à sua maneira.
Na primeira secção, a de Benjy, a
água aparece como um leitmotiv associado a Caddy. Brincando no
riacho em criança Caddy é inocente mas já infringe as regras molhando as roupas
e muito mais quando se deixa enlamear e os irmãos lhe apontam os culotes sujos
sem se intimidar com a ideia do consequente castigo. É o prenúncio da
promiscuidade de Caddy. Mais tarde, quando Benjy fica perturbado ao cheirar o
perfume da irmã pela primeira vez, e ela , virgem ainda, lava o perfume, do
mesmo modo que lava a boca com sabão quando Benjy a apanha no baloiço com
Charlie mesmo sabendo que não há água que a purifique. Nas memórias de Benjy a
ligação carinhosa que tinha com Caddy é
reavivada pela imagem da filha dela, Miss Quentin, que, ao contrário da mãe, o
repudia.
Na segunda secção, é Quentin que
narra as suas memórias. Quentin orgulha-se do passado mais ou menos nobre da
família, apesar de precisarem de vender terras para financiar a sua estadia em
Harvard, tal era o declínio económico, mas parece ser o único que dá valor à
honra, à justiça, ao amor. Ele ama a irmã, talvez excessivamente, e a sua
obsessão com a virgindade dela representa o desejo de encontrar algo de puro e
intacto. Embora a família o aconselhe a esquecer a desonra de Caddy, o seu
casamento com um banqueiro estando grávida de outro homem, Quentin não quer esquecer porque isso
tornaria a sua dor, o seu desgosto, uma coisa sem sentido e quando já não há
nada para dar um propósito à vida, o suicídio é o único caminho. Os
preparativos para o suicídio, depois de escrever cartas, comprar ferros de
engomar e simbolicamente cortar com o passado partindo o relógio herdado do
avô, levam Quentin até Charles River Bridge de onde contempla a sua sombra na
superfície da água. Tanto na secção de Benjy como na de Quentin ele se mostra
sensível à presença de sombras que lembram de forma subtil a passagem do
tempo à medida que mudam durante o dia, e têm associada a ideia de que a
própria família Compson é uma sombra do que foi.
“A sombra da ponte, as grades da balaustrada e a minha
sombra estendida sobre a água, que eu tinha sabido aliciar tão bem que nunca
mais me abandonara”
“ Saltei para cima da minha
sombra”
A água é o destino que apaga, apazigua e
purifica e guardará sua sombra.
Maria José Marques
Novembro, 2022
Os negros de “O Som e a Fúria”
por Delfina Rodrigues
Opto pela abordagem do tema proposto a partir da personagem
Dilsey, a criada negra.
Referida em todos os capítulos, no fluxo natural do
pensamento das diferentes vozes narrativas e no discurso direto das
personagens, ela torna-se, no último capítulo, o foco do único narrador
heterodiegético da obra, mais próximo, porventura, da voz do autor.
Atravessa, assim, todo o tempo narrativo e todo o tempo da
história, ela própria afirmando, já próximo do fim, com uma carga ominosa que
atravessa alguns momentos da narrativa, que viu o princípio e o fim.” Vi o começo e o fim”, afirma (p.267)[1].
Ela é a matriarca de uma família de
criados negros que servem os Compson, família da aristocracia sulista dos
Estados Unidos em inexorável degradação e trágico declínio e, simultaneamente,
uma espécie de alma mater da própria família que serve. Ela é, em 1928,
diria, suporte de vida dos Compson: suporte material/funcional, emotivo,
afectivo.
Sendo figura omnipresente ao longo da
obra, em movimento perpétuo — cozinha, serve as refeições, enche sacos de água
quente, conforta, deita as crianças, sobe escadas, desce escadas, aconchega,
acolhe, mima, admoesta, censura, opina — é na última parte do livro, no dia de
Páscoa de 1928, que ganha uma centralidade nova. A imagem vivifica-se, vemo-la
assomar à porta do casebre, a avaliar o estado do tempo, antes de iniciar as
tarefas e ir à igreja. Surge descrita na sua indumentária, tão esvaída e
esfiapada quanto a figura: ergue ”para o ar o rosto milenário e encovado e
uma mão descarnada de palma mole como a barriga de um peixe…”; “o
vestido caia-lhe…sobre os peitos descaídos”; ” Outrora de fartas carnes,
o seu esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o
embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico, como se
tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força…”
Mais tarde, já na igreja: “Dilsey
estava sentada muito hirta com a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas
lágrimas rolavam-lhe pelas faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos
retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos”.
Também o terreno em torno do casebre
que habitava era ”pelado”, ”coberto de uma espécie de pátina do pisar de
gerações de pés descalços”.
Esta era a Dilsey que já não subia as
escadas, antes se” arrastava “pelas escadas acima, ou descia a escada “com uma lentidão dolorosa e aterradora”
(p.242), tão sujeita à erosão do tempo quanto tudo o que a rodeava, mas sem o
correspondente direito ao descanso, já que, como afirma, os brancos ficam
cansados por qualquer coisa, enquanto ela continuava a fazer todo o trabalho.
Todavia, não se lhe adivinha
hostilidade rácica, antes aceitação inelutável de uma condição herdada, que não
discute.
Apesar dos anos de convívio estreito
e mesmo do acesso silencioso a segredos da família, Dilsey, Roskus, Versh,
Fronny, TP e Luster não deixam de ser personagens do background e de downstairs,
espaços que ultrapassam apenas no estrito cumprimento das suas tarefas.
As relações são naturalmente marcadas
pelos diferentes estatutos, apesar das censuras, conselhos, quase ordens que
Dilsey se permite, mesmo in presentiae, ciente de que de si depende a
organização do caos que progressivamente se instala à sua volta.
É, contudo, perceptível a imagem que
tinha da família que servia: “Pois sempre te digo uma coisa, negrinho duma
figa, tens tanta ruindade dos Compson nesse corpo como qualquer deles”
(p.248); “O menino é um homem muito duro,
Jason, s’é que chega a ser um
homem-diz ela-Dou graças ò Sinhô por me ter dado mais coração qu’a
si, mesmo qu’o meu seja negro.”
A alteridade, o racismo, a dualidade do mundo branco e do mundo negro e diferentes cosmovisões são expostas em diversos momentos da obra e na voz de diferentes personagens.
Não é possível desligar o livro do
seu contexto histórico. Sublinhe-se que a abolição da escravatura nos EUA era
relativamente recente e que a lei não extingue, per se, as suas raízes
mais profundas.
Deixemos o texto falar:
“…procurar os 25 cêntimos antes
qu’os negros os encontrem” —7 de abril
“Oh-disse Caddy - Isso é os
negros. Os brancos não fazem prantos” (p.37)
“Sempre gostava de sabê porquê -
disse a Fronny. Os brancos também morrem. A sua avó tá tão morta como qualquer
negra pode tá, acho eu” (p37)
“Onde é que arranjaste 25
cêntimos, rapaz. Nos bolsos de algum branco quando ele não tava a ver.”
(p.21)
“O dinheiro dos negros é tão bom
como o dos brancos, acho eu” (p.21)
“Os brancos dão dinheiro aos
negros porque sabem qu’o apanham de volta outra vez mal aparece um branco a
tocá c’uma banda, e depois os negros têm de ir trabalhá mais para arranjarem
mais dinheiro “(p.21)
“Que tens tu contra os brancos.
“Não tenho nada contra eles. Eu
sigo o meu caminho e os brancos que sigam o deles”
“Quando as pessoas se comportam
como pretos” (p.168)
Continuando:
“Foram andando. Pela rua
tranquila, os brancos, em grupos resplandecentes, dirigiam-se para a igreja…”
(p.260)
“E ela: eu sei quais são os que
falam-disse Dilsey-Escumalha branca. Esses é que falam. Acham que ele não serve
pa entrá na igreja dos brancos, mas qu’é bom de mais pa entrá na dos negros.
Ninguém qué sabê disso, só os brancos.” (p.260)
“…e as crianças, com roupas
compradas aos brancos em 2ª mão…”
“Quando…parecia um branco”
(p.263)
“Nem notaram que a entoação e a
pronúncia se haviam tornado negras…” (p.265)
Não por acaso, presuma-se, as
afirmações mais racistas encontram-se na voz da personagem mais odiável da obra
— o filho Jason:
“O que eu lhes digo é Já a minha
família era dona de muitos escravos e vocês não passavam de uns reles
comerciantes e lavradorzecos de pedaços de terra para quem nem um negro olharia
duas vezes” (p.217)
“É o que eu digo, o lugar deles é
no campo, a trabalharem do nascer ao pôr do sol. Não suportam nem a
prosperidade nem o trabalho leve. É deixá-los privar com os brancos e já não
valem nem o trabalho de os matarmos… (p.227)
“Quando as pessoas se comportam
como pretos, seja lá quem for, a única coisa a fazer é trata-los como pretos”.
E são recorrentes as referências aos
negros, seis negros, que tem em casa para sustentar, como se de um fardo se
tratasse.
A atmosfera do tempo, no que a esta
questão diz respeito, é captável também na voz de Quentin, o mais sensível e
inteligente dos filhos, em 1910:
“Não o encontrei em lado nenhum.
Mas também nunca vi um funcionário preto que fosse fácil de encontrar quando
precisamos dele, e ainda mais se vive dos rendimentos,” (p.81)
“O único lugar vago era ao lado
dum negro…Eu costumava pensar que era dever de todo o sulista mostrar sempre
consideração pelos negros. Achava que era isso o que os do Norte esperavam
deles” (p.84)
“Foi nessa altura que percebi que
ser-se negro não é tanto o ser-se uma pessoa, é mais um comportamento, uma
espécie de reflexo dos brancos com quem convivem”
“A Dilsey dizia que era por a mãe
ter vergonha dele. É assim que eles entram na vida dos brancos sem mais nem
menos, infiltrações negras…” (p.159)
Concluo, afirmando não ser possível
ler “O Som e a Fúria” sem valorizar a dimensão racial, que emerge, aqui
e ali, em diferentes tons e contextos. As relações são estabelecidas com base
em persistentes pressupostos de alegada supremacia branca, mas também de
afirmação da identidade negra, as duas irmanadas, afinal, na sua indesmentida e
sublinhada finitude, na voz de Fronny:
“Os brancos também morrem. A sua avó tá
tão morta como qualquer negra pode tá”
Porto,
8 de novembro de 2022
Delfina
Rodrigues
P.S.
Quando recebeu o prémio Nobel, em 1949, no seu discurso Faulkner terá afirmado:
“Acredito que o homem não vai apenas resistir. Ele vai sobreviver. É imortal
porque tem uma alma, um espírito capaz de sentir compaixão”[i][2]
Encarnará
Dilsey, para o autor, esse símbolo de sobrevivência e de humanidade, assim se
explicando o relevo que lhe é dado no último capítulo da obra?
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