O Som e a Fúria: os negros
por Conceição Rocha
Como será previsível, falar de negros
numa quinta do sul dos Estados Unidos na década de 20 será falar já não de
escravos (em 1863 Lincoln publica “The imancipation proclamation”, documento
que põe fim estatutariamente à escravatura), mas de pessoas servas, exploradas
pelos patrões e desprezadas por toda a
comunidade branca.
No Som e a Fúria, os negros aparentemente não diferem daquilo que conhecemos das narrativas de época, sobretudo daquelas em que não se notam revolta e resistência a um estatuto de servidão. Um dos debates em torno de Faulkner é justamente sobre o seu possível racismo, ou seja, se a força da sua narrativa que envolve negros está no facto de descrever com extraordinário realismo os comportamentos tidos como padrão ou se, utilizando linguagens e comportamentos padrão, faz sobressair as contradições sociais e as debilidades da sociedade branca decadente, dependente, vulnerável e, no fundo, não respeitada pelo círculo negro do seu ambiente doméstico e local, este sim inteligente, sagaz e capaz de ir sobrevivendo e dando a volta às circunstâncias em seu proveito.
Não vale a pena aqui descrever as passagens em que os criados dos Compson intervêm, pois toda a gente leu a obra. Além disso, surgem não como um enredo contínuo, mas como um somatório de episódios narrados por diferentes narradores. Recordo só quem são:
· Dilsey, a cozinheira e personagem
central do romance, mulher com autoridade baseada na sensatez e capacidade de
agir e reagir e, assim, ascender sobre os outros. È quem põe ordem no caos
sempre que este ocorre;
· Frony, filha de Dilsey;
· Luster, neto de Dilsey e filho de
Frony, cuidador de Benjy;
· Versh, criado jovem;
· Roskus, criado velho;
· TP, criado velho.
· Roskus, o pacificador
Assim, este pequeno apontamento referirá sobretudo o contexto em que O Som e a Fúria se passa, para compreender a acção e a época em que ela decorre no que diz respeito à população negra do sul agrário e racista.
O romance situa-se na década de 20,
menos de um século após a guerra civil (1861 – 1865) e a derrota do Sul
esclavagista e considerado pelo Norte como bárbaro, conservador, inculto e
violento, desestruturará muitíssimo as famílias ora poderosas, depois empobrecidas,
com personagens frequentemente enlouquecidos e com dificuldade em interiorizar
a nova realidade (e identidade).
Nesta família Compson que Faulkner
faz reproduzir os padrões do início do século XX sulista, Dilsey adquire um
protagonismo especial, é a voz do juízo no meio da loucura decadente da
família.
Na 4ª parte do romance especialmente, o seu esforço em manter a ordem na propriedade, apesar dos insultos de Jason que diz serem os negros parasitas, mentirosos, preguiçosos e arruaceiros, é notável. Acredito que essa força anímica assenta na consciência da sua própria vulnerabilidade estatutária: se o mundo que conhece e em que se move ruir, vive ela própria a crise de identidade que os patrões experimentam e lhes cria enormes dificuldades de sobrevivência. A crença cristã tem também nela o seu papel: sente na mensagem do sermão da ressureição de Cristo a esperança de redenção, do fim dos tempos em que haverá igualdade entre os homens e extrapula até para a família Compson a convicção de que a fuga e o suicídio do Quentin representarão essa redenção.
Nessa 4ª parte, que foca mais do que nas 3 outras a importância dos criados, não só Dilsey é uma referência decisiva na narrativa, como Luster, o companheiro de Benjy, que o entende e ampara e Roskus, que silencia humilhações sucessivas, pois filosoficamente considera que “coisas de brancos são coisas de brancos”.
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