O Som e a
Fúria
William
Faulkner
por Alexandra Azevedo
O romance, “O Som e a Fúria” de
William Faulkner, estrutura-se em quatro partes que correspondem, no tempo da
história, a quatro dias: sete de Abril de 1928, primeira parte; 2 de Junho de
1910, segunda parte; seis de Abril de 1928, terceira parte; oito de Abril de
1928, quarta parte, isto é, três dias de Abril de 1928, ainda que não
sequenciais, sete, seis e oito e o dia 2 de Junho de 18 anos antes.
A cada uma destas partes corresponde
uma voz, um narrador distinto.
O narrador da primeira parte é Benjy,
um homem de trinta e três anos com mentalidade de três. Para atribuir ao
narrador a voz de um deficiente mental, o autor inspirou-se numa famosa fala de
Macbeth do quinto acto, cena 5, quando este, ao tomar conhecimento da morte da mulher, Lady
Macbeth, reflecte sobre a falta de
sentido da vida, afirmando que esta não passa de uma sombra ambulante, uma
história contada por um idiota cheia de som e de fúria , “signifying nothing”.
Sete de Abril, é o dia do aniversário de Benjy _”Se não se cala
já sabe o qu’é qu’eu lhe faço. Como-lhe
o bolo todo. E as velas também. As trinta e três velas todas duma vez”,
diz Luster, o criado negro encarregado
de tomar conta dele.
Incapaz de falar, Benjy narra através de
sensações, nomeadamente olfactivas e auditivas, mas sobretudo visuais onde
predominam as sombras (a vida é uma sombra ambulante) : “ A Caddy
cheirava como as árvores” (45,50); “As nossas sombras estavam na relva. E
chegaram às árvores antes de nós. A minha foi a primeira a chegar, Depois
chegámos nós, mas as sombras já se tinham ido embora” (55); “O Pai foi até à
porta e olhou para nós outra vez. Depois a escuridão voltou, e ele ficou todo
preto à porta e depois a porta ficou preta outra vez. A Caddy abraçou-me e eu
ouvia-nos a todos nós e à escuridão, e uma coisa que eu podia cheirar” (73)
A analepse que constitui a segunda parte é narrada por Quentin, irmão
de Benjy. Quentin estuda em Harvard e para isso, a família vendeu a pastagem
que seria a garantia do futuro de Benjy. Aqui ficamos a saber o que atormenta
Quentin__ “Cometi incesto disse eu Pai fui eu não foi o Dalton Ames”
(78) O tempo da história desta parte corresponde, tal como a primeira, a um
dia, o dia da véspera do suicídio de Quentin. Este fim trágico de Quentin, no entanto, só é revelado
na quarta parte, e ainda assim de forma indirecta , quando a matriarca da
família, Mrs Compson, desesperada com o desaparecimento da neta que também se
chama Quentin , diz a Dilsey, a criada negra “_ Vê se encontras o
bilhete_ disse ela _ O Quentin deixou um bilhete quando fez aquilo”.
Mrs Compson, aliás, sempre considerara de mau agoiro a neta ter o mesmo nome do
tio que se suicidara: _”Sempre soube que isto ia acontecer desde o
momento em que lhe chamaram Quentin” (254)
A narrativa de Quentin está, também ela, cheia de sombras_ “Desci e fiquei parado em cima da minha sombra” (100); “onde batia a sombra da ponte eu podia ver até muito fundo” (110); “e então vi uma sombra suspensa como uma seta larga na corrente. As borboletas entravam e saíam da sombra da ponte rasando a superfície” (111); “As sombras da estrada eram tão estáticas como se tivessem sido pintadas com lápis de raios de sol” (114). Estes são apenas alguns dos inúmeros exemplos que podemos encontrar na narrativa de Quentin, ele próprio uma “sombra ambulante” devastado pelo amor impossível que sente pela irmã_ “Por que hás-de ter de casar com alguém Caddy”(115)
A terceira parte constitui também uma analepse
relativamente à primeira parte, uma vez que aí é narrado o dia seis de Abril de
1928, a véspera do aniversário de Benjy. O narrador desta terceira parte é Jason,
o irmão mais novo da família Compson e a sua auto-representação revela um homem
ressabiado por não ter podido ir para Harvard como o irmão mais velho ou, pelo menos, por
ninguém se ter preocupado com isso. É um homem perverso que se sente bem a
fazer os outros infelizes. De resto, não ama ninguém, nem mesmo a mãe que lhe
diz amiúde que ele é o seu único amparo. Despreza tudo e todos e apenas lhe Interessa o dinheiro que chega a
usurpar da própria irmã, o dinheiro que esta manda para a educação da filha.
Violento e mau é a ele que melhor serve a palavra fúria do título da
obra.
Na quarta parte, encontramos o único
narrador heterodiegético da obra, um narrador de terceira pessoa que narra a
manhã e o princípio da tarde do dia 8 de
Abril de 1928, um domingo que “amanheceu frio e tristonho” (239) e
é nesta parte que desvendamos os sucessivos novelos narrativos anteriores que,
até aqui, deixaram o leitor atordoado. Agora com dezassete anos, Quentin, a criança retirada a Caddy por ser uma filha fora do casamento, apercebe-se de que o tio fica com o dinheiro
que a mãe lhe manda todos os meses. Descobre onde está guardado e foge de casa.
O único sentimento de Jason face a este desfecho trágico para o nome da família
, é o de se sentir ridículo por ter sido roubado por uma miúda de dezassete
anos_ “Se ao menos pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas
ver-se roubado daquilo que era a sua compensação pelo emprego gorado, privado
daquilo que ele tinha juntado com tanto esforço e risco, do próprio símbolo do
emprego perdido e, pior do que tudo, por uma cabra daquelas”(275)
O dia que amanhecera “frio e
tristonho”, clareava e “as sombras fugidías eram agora um bom prenúncio”
(274), mas para Jason carregado de velhas feridas, o facto do dia estar a
desanuviar “era mais um golpe da sorte traiçoeira” (274).Incapaz
de conduzir devido aos ferimentos na cabeça causados pela luta em que se
envolvera na esperança de encontrar os supostos ladrões do “seu” dinheiro,
incapaz também de encarar a realidade de ter sido ludibriado por uma miúda que
queria educar à força de chicotadas, deixa-se ficar “sentado ao volante
de um carro pequeno, com a saga invisível da sua vida enredada à sua volta como
um peúga velha”(280). E esta imagem de Jason, o violento, o perverso, o
poderoso no seio da família, agora fraco e
insignificante é , de certo modo, o repor da superioridade do bem e do
castigo do mal.
Mas o castigo não traz qualquer alteração
do seu comportamento violento e Jason, quando vê passar a calèche com o criado negro
e Ben a gritar, sai do carro, salta para
a calèche, esmurra o criado (Não sabes que não é para a esquerda?,
287) e bate em Ben, partindo-lhe a flor que este trazia entre as mãos.
E é com esta imagem que o livro
termina, a imagem triste, mas serena de Benjy com a flor partida na mão. “A flor partida pendia da mão de Ben e
os seus olhos eram vazios, azuis e serenos outra vez, à medida que cornija e
fachada desfilavam de novo da esquerda para a direita, postes e árvores e
janelas, portas e cartazes, cada qual no seu devido lugar.”(287)
A voz narrativa de Benjy acaba, assim, por surgir, entre todas, como a mais
verdadeira e autêntica, a mais próxima da verdade essencial porque os seus
olhos são os mais puros e porque, afinal, a vida não é mais do que uma história sem sentido algum, contada por
um idiota, cheia de som e de fúria,
Outubro 2022
Alexandra Azevedo
O Som e a Fúria, D. Quixote, 10ª
edição, 2018
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