Feliciano da Retorta
por Conceição Rocha
Meus
senhores
Sou sim senhor. O Feliciano da Retorta, que vocências
acusam de rico, sovina e bronco. E não ia perder um vintém de tinta a nega-lo a
malhados que me andam a rondar as chouriças do fumeiro, não fora um bichinho
que rabia cá dentro e que de vez em quando me diz “conta ao mundo, diz-lhes
como o Feliciano da Retorta, a besta rica de fundilhos rotos, dançou o saricoté
nos brasis, suou com o amor de morena cheirosa, desfaleceu no regaço de sinhá
moça e por tudo pagou com regalo boas libras de ouro fino e fossem elas muitas
mais, que não há ouro que pague um mimo de morena no coração de um homem”.
Bom, já que destranquei o armazém das lembranças,
deixá-las sair e seja o que o diabo quiser, que Deus não entra nisto, basta-lhe
a trabalheira de aturar os flatos da Marta e da corja de beatas que a acolitam,
mais o manhoso do padre Osório que andou para aí a inventar que a besta do
Feliciano foi e veio dos brasis mais virgem do que a floresta que lhe pingou
para o saco um bom par de contos de reis.
Casa de camilo |
Manda esta maluqueira de confêsso que comece pelo
princípio. Saí com 12 anos desta terra maldita com um par de socos, duas côdeas
no bolso e a sementeira de piolhos que a natureza minhota distribui pela cabeça
de toda a canalha. Da viagem, nem quero falar. O inferno é de água, quem diz
que é de fogo nunca pateou nos vomitados de um barco inteiro no meio do mar,
dia e noite naquele tormento, acima, abaixo, carga ao mar enquanto a tens, que
depois até voam as tripas. Lá cheguei ao destino quando já julgava que nunca
mais ia ver chão de terra e aí fui recebido por um parente de minha Mãe que se
tinha prontificado por carta a fazer-me homem capaz de juntar um par de patacos
para acudir à velhice dos que ficaram. Já se vê foi que não explicou como me ia
fazer homem, nem que ia começar logo ali. Encurtando razões, comi o pão que o
diabo amassou quantos anos foram precisos nas mãos do parente, até crescer e ser
capaz de tratar de vida, a bem e a mal, que não são terras para se ser esquisito.
Com a vintena de anos mal acabados, meus fidalgos,
esta besta tinha uma venda de secos e molhados cheia de tudo, uma roça de cacau
e tomava alturas a um negócio de compra aqui e vende ali que me cheirava a lotaria.
Escusado será dizer que por essa hora começaram a bater-me ao ferrolho, “seu Feliciano venha a terreiro, disfrute da
dança, olhe a graça da sinhazinha, tem dote di princesa, o pai não tarda é
comendador, minina lhi borda retrato, di
recatada não encontra outra…”. O meu olho, até aí empenhado em não deixar passar
nem um feijão para além da medida, começou a tolejar para os lados de um
pezinho redondo, uma mãozinha cheia de anéis, um caracol a fugir do chapeuzinho
de palha. De manhã, a sacaria que me fazia de leito testemunhava as voltas e
revoltas do meu martírio, não sei se me entendem. Já não havia nada a fazer, aparecesse a
serigaita, que eu cá lhe daria serventia. E se apareceu! Cachopa de levantar um
defunto, carnadura trigueira do sangue das áfricas que a aquecia! Deitei-me à
caça, cobra que não anda não engole sapo. Graças a Deus não foram precisos
muitos tegatés, a moça não era de capricho. Um conto de rei em sedas e um
cordão de ouro de lei com medalha renderam-me logo mais juros do que negócio de
cacau em ano supimpa. Daí prá frente minha vida foi servir a cabocla com meu
corpo, minha alma e meu saco de libras. E lhes garanto que ela tratou dos três
com todo o talento. Eu era um homem feliz, caçoava de coronel Malaquias, amigo
do peito, que me aconselhava a escolher minina de famílias, daquelas que sabem
as prendas de casa e respeitar um marido como deve ser. Que não! Eu tinha meu
céu, minina de ai-Jesus era purgatório. E
foi esse céu que se abateu sobre mim ao cabo de dois anos, ao descobrir os
enganos e traições que todo mundo conhecia e caçoava, mas só coronel Malaquias pusera
a boca no assunto. Podem vossas mercês imaginar a sanha de um homem espoliado do amor e de cem
mil reis em regalos e mimos de cheiro, de ouro e de sedas. A safada encontrou
outro de bolsos mais fundos para a sustentar a ela e à caterva de esfomeados
que lhe rondavam as fraldas. Ainda pensei em arrumar-lhe uma surra, mas matutei
que de nada servia para acalmar o meu tormento. Meti-me na minha vida, a
rapaziada esqueceu a gozação tão depressa quanto percebeu que não se deve
mangar de um sujeito que vale uns tantos mil reis. Também aprendi que na calada da noite
qualquer corpo trigueiro me trazia de volta o amor perdido. E mais barato, já
se vê, pois nunca mais caí na cantiga do pede o que quiseres, filha, que o
palerma está aqui pra isso.
A vida seguiu com negócios de lucro, uma casa de
telha, boa mesa e quanto à cama ainda hei de ter um dia uma conversa com o
padre Osório para lhas cantar e não há de ser no confessionário. Adiante. Ainda
mal entrara nos quarenta e já cá cantava uma maquia capaz de me candidatar a
barão, se fosse essa a minha toleima. Foi por essa altura em que o meu irmão Simeão
me começou a escrever, a falar da filha, a recordar-me a família e a terra, que
as saudades me começaram a apoquentar. Cada carta era um suspiro e, por que não
dize-lo, um aguçar de curiosidade sobre a raparia, tão gabada pelo pai que nem
parecia filha daquela doida que lhe dera o ser. Amoleci. Lá mandei comprar
passagem no navio e prometi a S. Bento da Porta Aberta uma cabeça de cera e dez
mil reis para o santo acalmar as malditas ondas e me segurar as tripas. Ao cabo
de muita letra pra cá e pra lá, prometi-me à moça. Chegado, vi a esparrela em
que caí, mas era tarde para fugir à palavra de um homem. Comprei terra e gado
nesta terra de miséria desfeita pela peleja de dois reis corridos do Brasil
para atormentar os de cá e casei-me com a criatura beata e chorona com que me
comprometi. Não fora o pai meu irmão e eu tratava-lhe da saúde, o sonso.
Entregar-me uma maluca, seca e imperfeita, ora na lua, ora a estrebuchar, que
não sabe por onde se lhe pega no amanho da casa ou da capoeira, ou em coisa
nenhuma! Um traste inútil, a não ser para escancarar as portas a padres e
pregadores, que sabem farejar o filão. Bem me dizia meu compadre o barão de
Rabaçal, um sabidão sobre carnes, que a serigaita era sequinha e meia aluada,
mas enfim.
Para concluir, que pouco mais há para dizer para que
me entendam: cá vou vivendo nos meus dois mundos de tormento. Um, este, entre a
doida, uns filhos que fui fazendo à sorrelfa e que não dão nem para os latins
nem para a lavoura e um bando de tratantes que ruminam à lareira as arcabuzadas
com que despacharam uns almas do diabo por conta do senhor dom Miguel; o outro,
o dos meus sonhos, que me aquecem com o calor moreno daquela danada. Graças a
Deus o dinheirinho está seguro, a doida não sabe contá-lo nem gastá-lo e eu,
que nunca fui de luxos, contento-me com uma côdea e para outras precisões já estou conformado com
o que tenho e sou cada vez menos esquisito.
Um resto de vaidade fez-me gastar convosco esta meia
onça de tinta e já vou no terceiro aparo, que a minha mão não é muito afeita a
letra de forma. Vou deste fazer uma cópia pelo meu punho para guardar no
gavetão da cómoda até ao dia em que me apeteça esfrega-la na focinheira
descarada do padre Osório, o maior dos santanários, que nunca saberá o que é a
moleza do corpo de uma cabocla.
E tenho dito.
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