O narrador por ele próprio
por Alexandra Azevedo
É sempre bom regressar a casa! Revisitar-me a mim próprio e aos meus livros.
O meu amor aos livros velhos é um amor quase físico. Podem apresentar-se
gordurosos, húmidos, empoeirados que, a mim, parecem-me sedutores como a um
homem delicadamente sensual se afigurará a face da mulher querida, oleosa de
cold-cream e pulverizada de bismuto. De que tempo isto é! Como a gente, sem
querer, mostra a sua certidão de idade e revela uma relíquia testemunhal da
Idade da Pedra! Mas os livros, esses, nunca envelhecem e eu amo-os a todos,
cartilhas ou missais na sintética mas
rigorosa tipologia do amigo que me levou
até à viúva Vilalva, uma minhota às direitas, devidamente estragada no moral e
tão forte em anexins acerca de padres que me fez, a mim, parecer um menino de
coro… Amo-os sobretudo se em boa linguagem quinhentista ainda não corrompida
por estrangeirismos mais roazes que as ratazanas que por estes dias são as melhores e mais
assíduas leitoras que há, excepção feita, é claro, aos amigos aqui reunidos em
meu nome.
Desde os meus tempos de seminário que me ficou o gosto por
manuscritos, por sermões de frades do século XVII e do século XVIII e, já
agora, fui eu que reabilitei a poesia barroca! Devem-me isso! Por isso, não há
livro que escreva em que não introduza um bocado de latinório ou uns pedaços de
cronicões. Mas aquilo por que me pelo mesmo são
rezas e orações daquelas que me permitem
pôr as minhas personagens femininas a ajoelharem-se três vezes ao dia no
genuflexório caseiro diante de uma
lamparina. São escritas em português velho, repletas de verbos na segunda pessoa do plural, de
futuros do indicativo a sério, de superlativos absolutos simples dulcíssimos e
amorosíssimos, de comparações com luas e estrelas e, pormenor de perfeição,
Ahs! e Ohs! linha sim, linha não!
É assim lamentável a sorte das minhas heroínas! Com Marta,
por exemplo, acho que me excedi um pouco. Para além de a fazer recitar a
“Resistência às tentações contra a castidade”, (três vezes por dia,
claro), ainda a pus a contas com o
demónio e respectivo exorcista, o primeiro a entrar-lhe e a sair-lhe do corpo e
o segundo a entrar-lhe e a sair-lhe do quarto, tudo isto perante o olhar
resignado do marido que, com invejável
espírito pragmático, acaba por simplesmente aprender a detectar a chegada
do imundo
e ir deitar-se noutra cama porque
necessitava do seu repouso e tinha de erguer-se cedo para ver o que faziam os
jornaleiros.
A sorte das minhas heroínas é
ainda lamentável a um outro título: quero-as
românticas, com febres e delíquios quanto baste ao longo do romance e
mortas ou loucas no final, mas, simultaneamente, faço-as conviver com
páginas que o ar naturalista do
tempo (e o meu editor) me
impõem, perspectivando-as na
sociedade de que emergem e fazendo-as
parecer a sua consequência inevitável.
Assim, a Marta, para além das frases habituais
com que se caracterizam heroínas dignas desse nome_ “merecedora de
piedade”, “com intermitências de razão bruxuleante” etc., e de a pintar
“magrinha”e “muito alva”, tive de a
fazer passar pelo vexame de pôr as outras raparigas, musculosas e de pés
grandes, a chamar-lhe “a songuinha” ou, o que foi pior, de criar
uns parvajolas à medida para a mimosearem com pérolas como “boa franga” e
peixão”. Porém, a dentuça realista arreganhada que mantive durante largas
páginas, acabou por sucumbir ao narrador
romântico que é o mais autêntico que há em mim e, que no final se revoltou para
dizer claramente que este romance da Brasileira não tem nenhum intuito
científico, não pretende ser moderno, não se lhe encontrará nada de proveitoso
para a reorganização do indivíduo e muito menos da espécie e, finalmente que,
com a graça de Deus e em nome do patriarca Voltaire é uma obra que deixará este
mundo tão tolo e mau como tolo e mau era antes dele. Quero crer que não me enganei.
A respeito do mundo, digo.
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