segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Brazileira de Prazins



O narrador por ele próprio

por Alexandra Azevedo


É sempre bom regressar a casa!  Revisitar-me a mim próprio e aos meus livros. O meu amor aos livros velhos é um amor quase físico. Podem apresentar-se gordurosos, húmidos, empoeirados que, a mim, parecem-me sedutores como a um homem delicadamente sensual se afigurará a face da mulher querida, oleosa de cold-cream e pulverizada de bismuto. De que tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra a sua certidão de idade e revela uma relíquia testemunhal da Idade da Pedra! Mas os livros, esses, nunca envelhecem e eu amo-os a todos, cartilhas ou missais na  sintética mas rigorosa  tipologia do amigo que me levou até à viúva Vilalva, uma minhota às direitas, devidamente estragada no moral e tão forte em anexins acerca de padres que me fez, a mim, parecer um menino de coro… Amo-os sobretudo se em boa linguagem quinhentista ainda não corrompida por estrangeirismos mais roazes que as ratazanas  que por estes dias são as melhores e mais assíduas leitoras que há, excepção feita, é claro, aos amigos aqui reunidos em meu nome. 
 
 Desde os meus tempos de seminário que me ficou o gosto por manuscritos, por sermões de frades do século XVII e do século XVIII e, já agora, fui eu que reabilitei a poesia barroca! Devem-me isso! Por isso, não há livro que escreva em que não introduza um bocado de latinório ou uns pedaços de cronicões. Mas aquilo por que me pelo mesmo são  rezas e orações daquelas que me permitem  pôr as minhas personagens femininas a ajoelharem-se três vezes ao dia no genuflexório caseiro diante de uma  lamparina. São escritas em português velho, repletas de  verbos na segunda pessoa do plural, de futuros do indicativo a sério, de superlativos absolutos simples dulcíssimos e amorosíssimos, de comparações com luas e estrelas e, pormenor de perfeição, Ahs! e Ohs! linha sim, linha não!

É assim lamentável a sorte das minhas heroínas! Com Marta, por exemplo, acho que me excedi um pouco. Para além de a fazer recitar a “Resistência às tentações contra a castidade”, (três vezes por dia, claro),  ainda a pus a contas com o demónio e respectivo exorcista, o primeiro a entrar-lhe e a sair-lhe do corpo e o segundo a entrar-lhe e a sair-lhe do quarto, tudo isto perante o olhar resignado do marido  que, com invejável espírito pragmático, acaba por simplesmente aprender a detectar a chegada do  imundo e ir deitar-se noutra cama porque necessitava do seu repouso e tinha de erguer-se cedo para ver o que faziam os jornaleiros.

                A sorte das minhas heroínas é ainda lamentável a um outro título: quero-as  românticas, com febres e delíquios quanto baste ao longo do romance e mortas ou loucas no final, mas, simultaneamente, faço-as conviver com páginas  que o ar naturalista do tempo  (e o meu  editor) me  impõem,  perspectivando-as na sociedade de que emergem  e fazendo-as parecer a sua consequência inevitável.

Assim, a Marta, para além das frases  habituais  com que se caracterizam heroínas dignas desse nome_ “merecedora de piedade”, “com intermitências de razão bruxuleante” etc., e de a pintar “magrinha”e “muito alva”,  tive de a fazer passar pelo vexame de pôr as outras raparigas, musculosas e de pés grandes, a  chamar-lhe  “a songuinha” ou, o que foi pior, de criar uns parvajolas à medida para a mimosearem com pérolas como “boa franga” e peixão”. Porém, a dentuça realista arreganhada que mantive durante largas páginas, acabou por sucumbir ao  narrador romântico que é o mais autêntico que há em mim e, que no final se revoltou para dizer claramente que este romance da Brasileira não tem nenhum intuito científico, não pretende ser moderno, não se lhe encontrará nada de proveitoso para a reorganização do indivíduo e muito menos da espécie e, finalmente que, com a graça de Deus e em nome do patriarca Voltaire é uma obra que deixará este mundo tão tolo e mau como tolo e mau era antes dele. Quero crer que não me enganei. A respeito do mundo, digo.


                   S. Miguel de Seide,  9 de Fevereiro de 2013


                    Camilo

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