segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A Brazileira de Prazins



Veríssimo

por António Nabais


O meu nome é Veríssimo Borges Camilo de Mesquita e soube, desde pequenino, que tinha nascido para ser rei, mesmo sem ser de sangue real e apesar de o meu sangue ser tão real como o de qualquer um, incluindo o dos reis
Nasci em 1806 em Alvações do Corgo. Sou filho de Norberto Borges Camelo, mais conhecido por Norberto das facadas, alcunha que explica, também, porque nunca cheguei a conhecer a minha mãe. Na verdade, tendo o meu pai encontrado a mulher em concessões adúlteras, resolveu cortar o mal pela raiz, apunhalando-a. Sabedor de que a justiça dos homens poderia compreender mal um acto de tão grande justiça, seguiu Junot, integrado no regimento do conde de Ega. Ora, sabendo-se que a Justiça, para além de cega, é muito esquecida, quando regressou, o caso estava convenientemente olvidado.
Casa de Camilo

Em 1827, encontrava-me em Coimbra, a preparar-me para seguir estudos de jurisprudência, provavelmente motivado pelo exemplo paterno. Rapidamente, perdi o hábito de estudar e assentei praça. Passados dois anos, no cerco do Porto, fui ferido pelos liberais e fiquei levemente coxo. Já nesse tempo me diziam que era muito parecido com o senhor D. Miguel, parecença essa a que o coxear acrescentava uma certa dignidade, ao mesmo tempo que comecei a aperceber-me de que as mulheres me olhavam com agrado, o que me deixava, evidentemente, agradado.
Quando regressei ao lar, encontrei um pai arruinado e triste e propus-me regressar à vida militar, desta vez do lado liberal, o que me foi vedado pelo poder paterno, que não admitia que houvesse malhados na família, para o que citava as Cortes de Lamego, as quais, ainda que substanciosas, não exerciam sobre o meu estômago o mesmo efeito que os presuntos daquela cidade.
Foi então que minha tia, D. Águeda, viúva de um major, interveio e me salvou das garras do liberalismo, pondo os seus recursos à disposição do meu sustento. Passei a sentar-me a uma mesa farta, dedicando o meu tempo à flauta e à garrafeira.
Entretanto, aconselharam minha tia a que me tornasse padre, lembrando-lhe a vantagem de já ter exames de latim e de lógica. Senti, imediatamente, o chamamento: dentro de mim estava a vocação para a vida regalada dos prelados, que viviam num epicurismo tão suave que, provavelmente, nem seria pecado. O próprio voto de castidade me parecia convenientemente débil, ou não fosse eu descendente de um bispo do Algarve, e era gostosamente que antecipava a relação com os meus rebanhos, imaginando-me já a bulir entre o balir sedutor das minhas ovelhas.
Em 1835, rumei a Braga, com trinta anos. A tristeza dos estudos acabou por ser compensada pelo reencontro com o Torcato Nunes, antigo sargento do mesmo regimento, agora estudante de procurador de causas. Rapidamente nos tornámos inseparáveis, e assim como fechámos compêndios e processos, abrimos portas de tascas e prostíbulos. Para continuar a receber a mesada de minha tia, via-me, ainda assim, frequentemente, obrigado a responder-lhe que cantar missas estaria para breve, enquanto ia praticando como oficiante dos cultos a Baco e a Vénus.
No ano seguinte, recebemos a notícia de que José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, tinha dado início à guerrilha, no Algarve, combatendo por D. Miguel. O nosso espírito belicoso e aventureiro empurrava-nos para Sul. Pedi a minha tia uma quantia mais avultada para pagar as últimas despesas da formação sacerdotal e foi com o dinheiro de uma vinha e uma bênção cheia de beatitude que partimos.
Dei conta desta decisão a meu pai, pedindo-lhe que defendesse a minha causa junto de minha tia, lembrando-lhe que tudo vale a pena se a pátria não for pequena e que a nossa glória estaria sempre garantida, vencedores ou mortos.
Depois da captura do Remexido, nem ficámos vencedores nem fomos mortos. Como glória escolhemos a fuga e trouxemos o pré dos guerrilhas nas algibeiras. Voltei a Alvações e Nunes seguiu para São Gens. Entretanto, meu pai tinha falecido com uma congestão cerebral ou estrangulado na cama por dois malhados de Lobrigos. Quando consegui reaver a herança de meu pai, chamei o Nunes e dei-lhe meios para continuar a estudar em Vila Real.
A enterite crónica, as saudades de D. Miguel e uma congestão de castanhas mataram  minha tia e, graças a mais esta herança, pude viver largamente, até perder a fortuna toda ao jogo.
Graças à minha boa forma de letra, ofereci-me, então, para amanuense de um tabelião que me pagava três tostões por dia e jantar. Por ele ser desprovido de alguns dentes e ter os olhos tortos, a mulher olhou-me com outros olhos e o tabelião, não vendo a situação com bons olhos, achou por bem despedir-me.
Fui, depois, oferecer os meus serviços ao capitão-mor de Murça, que me aceitou como escudeiro e me pagava muito bem, mas, vendo que a governanta se encantava comigo, deu-me ordem de saída.
Voltei ao Douro, onde um realista poderoso, o fidalgo de Gouvinhas, me nomeou feitor das suas quintas, o que se tornou o trabalho ideal, pelo pouco trabalho que dava. Como não há duas sem três, fui obrigado, novamente, a afastar-me, porque um sobrinho do fidalgo tinha ciúmes, graças à Libânia de Covas, uma mocetona donairosa, de anca roliça.
Resolvi ir para o Porto, seguido pela Libânia, que juntou ao encanto dos quadris cordões e moedas. Para prover ao nosso sustento, abri uma escola de primeiras letras em Miragaia, mas, ao fim de um mês, dava pontapés impacientes aos garotos, farto da nescidade da instrução primária. Um dia, a Libânia teve uma dor de dentes e percebi que tinha de me fazer dentista. Comecei a estudar com o Pinac, à Rua de Santo António.
Nessa altura, apareceu-me o Nunes a pedir-me dinheiro, que queria tentar a sua sorte no Brasil. Durante uma ceia, propôs-me que fôssemos com ele e que tinha arranjado uma maneira de arranjar um conto de réis num mês. Bastava aproveitar a minha parecença com D. Miguel para ensacar dinheiro dos partidários.
A Libânia ficou à minha espera no Porto e eu segui, feito rei, para São Gens de Calvos. O Torcato conseguiu arranjar maneira de pôr o abade Marcos Rebelo a reconhecer-me como rei. Descobri que não era difícil ser monarca: bastava dizer vulgaridades e criticar os empregados públicos.
No momento em que fui reconhecido de joelhos pelo abade, a minha corte de Calvos foi criada. Não por acaso, é claro, era segunda-feira de Entrudo. Como é evidente, nunca afirmei que era rei, porque não foi necessário.
Como rei amante da nação, soube valorizar a comida com que o meu estômago real era prodigalizado todos os dias. O bom abade chegava a lacrimejar quando me via esburgar à mão uma unha de porco, engordurando as barbas para alegria do meu excelente hospedeiro. E enquanto não tomava as rédeas da nação, fazia desaparecer, com aparências de patriotismo,  salpicões, carne assada, tripas com feijão branco, enfim, comia regiamente, e terminava com um café acompanhado por torradas barradas com manteiga evidentemente portuguesa. Depois, fumando um charuto espanhol, arrotava, refastelado, como um estadista que tivesse cumprido o seu dever.
Durante o tempo que durou a corte de Calvos, entre ingentes digestões, nobilitei, promovi, elogiei, fingi que me lembrava de nomes e pedi dinheiro para a causa, até que os soldados me pilharam escondido atrás de umas pipas, onde, segundo disseram, já estava mais parecido com o Remexido do que com D. Miguel, o que parecia indicar que poderia ter um final trágico.
Ocupei o quarto de malta nº 2, na Cadeia da Relação, tendo sido sempre acompanhado pelo Torcato e pela Libânia. O juiz-relator que me calhou em sorte no recurso que pedi revelou grande competência, especialmente porque tinha muita consideração pelo meu pai, o que o ajudou a descobrir aleijões formais, falta de testemunhas e ausência de qualquer espírito conspirativo num processo que era, afinal, uma farsa carnavalesca.
Quando, passado um tempo, pude agradecer pessoalmente a este mesmo juiz-relator, ainda recebi muitos parabéns por ter andado a esfolar “as bestas dos abades”. O Torcato e eu ainda estivemos metidos em mais uma guerra civil, mas, com a prudência dos quarenta, soubemos evitar combates e gritar vivas à rainha e à Carta. Tanta valentia valeu-nos novos empregos.
Hoje, tendo já falecido a minha Libânia, recordo com saudade o tempo em que fui rei. Se fecho os olhos, imagino-me no trono de Calvos e juro que ainda sinto o aroma do salpicão do lombo.


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