Lamúrias
de José Dias de Vilalba ou um personagem à procura de autor
por Amélia Correia
Todo o meu arrazoado vai no sentido de explicar a minha
indignação com o papel que o Sr. Camilo Castelo Branco me reservou na novela: A
Brasileira de Prazins.
Nesta novela, como vossas excelências puderam constatar, eu
sou sempre a marionete ao sabor dos acontecimentos, o coitado, ou como diria o
nosso Eça, um escritor que cá para nós empresta outra densidade aos
personagens, o coitado, coitadinho, coitadíssimo. Ora homem quando é homem não
pode contentar-se com tão injusta apreciação.
Como os meus queridos
amigos e amigas são leitores cultos e críticos, poderão perceber o que Maria
Rattazzi observou sobre Camilo. Considerou-o justamente como escritor
infatigável, mas onde a quantidade supre por vezes a qualidade. Segundo ela,
todos os romances do solitário de S Miguel de Seide contêm infalivelmente um
tipo brasileiro, uma rapariga que se recolhe a um convento, um fidalgo de
província e um romântico apaixonado e transparente. Acrescentou: Lemos por exemplo, o primeiro romance de
Camilo Castelo Branco, parece-nos interessantíssimo, o segundo é a
reminiscência do primeiro, o terceiro a reprodução do segundo e assim
sucessivamente. É uma galeria de personagens que raramente saem dos seus
lugares tal como as figuras de cera.
Rio Pele perto de S. Miguel de Seide |
Camilo irritado com
estas opiniões reagiu de uma maneira que o define, afirmando que mulher
escritora, por via de regra pouco exceptuada
é um homem por dentro, e foi mais longe concordando com Francisco Manuel de
Mello quando afirmava: mulheres doutoras,
autoras e compositoras dava-as ao diabo.
Estou certo que as minhas caras amigas ficarão escandalizadas
com o machismo deste autor, e os meus amigos, que são homens despreconcebidos e
de vistas largas, ficarão também elucidados sobre esta ironia de péssimo gosto.
É desplante do Sr. Castelo Branco, que foi preso pelo seu amor a uma mulher
casada, Ana Plácido, ela própria escritora. Aliás, há uma incoerência total
entre a sua visão romântica do amor puro e a sua vida pessoal.
Mas entremos agora na novela para que vossas excelências
verifiquem como fui muito mal apreciado. O novelista de Seide caracteriza-me
como fraco, amarelo de poucas carnes, um pau de virar tripas, um pelém. Tanto
assim, que o cirurgião aconselhou o meu pai a retirar-me dos estudos de latim para me ordenar clérigo, pois não me
faria bem puxar pelas memórias.
Digam o que disserem, e presunção e água benta cada qual toma
a que quer, gosto de mim quando me olho no espelho. Sou magro, mas bem talhado,
gostaria porventura de possuir musculatura mais desenvolvida, mas posso dizer,
que segundo os cânones da moda, não sou nada de deitar fora. Possuo um rosto de
feições regulares, onde sobressaem olhos negros sonhadores, nariz aquilino e
lábios finos mas bem recortados. Estes atributos são muito apreciados pelas
moças. Para o provar refiro que, mesmo sendo respeitador com as raparigas, ao
contrário dos meus colegas, grandes parvajolas, tinha muitas, mesmo muitas moças,
paletes delas, como alguém diria, que
me olhavam com olhar dengoso cheio de promessas. Uma das alunas da paralítica
que frequentava o quinteiro com Marta, escreveu-me um bilhete em papel almaço, cheio
de erros de português, elas não eram muito fortes nas letras. Questionava-me, sobre
o que encontrava eu na songuinha da Marta para só ter olhos para ela, e não reparar
nas outras, nomeadamente nela, que era rapariga louçã com pernas e seios que se
podiam ver. O meu colega Osório chegou um dia a dizer-me: ainda bem Zé que não
vais ordenar-te, porque com o sucesso que tens com o femeaço, era de recear que
não cumprisses o sexto, e lá iam os votos para o galheiro.
Lamento que o meu pai, influenciado por um clínico de meia
tijela, me fizesse desistir dos estudos. Os professores sempre realçaram a
minha curiosidade e facilidade de aprendizagem. O novelista de Seide afirma,
com seu buçal anticlericalismo, que os padres do Minho ordenavam-se tão alheios às faculdades da alma, que sem memória nem
entendimento e às vezes sem vontade eram sofríveis sacerdotes. Aqui toma a
parte pelo todo, e quanto a mim posso considerar ter uma cultura superior à
média, aliada a uma educação e maneiras, que sempre me distinguiram dos meus
colegas, grosseiros no trato e burgessos culturalmente. É que isto de educação
e cultura, quando se vem sobrepor a gente de fraca extração, não há volta a
dar-lhe, permanece sempre a animalidade latente!
Mas na verdade o amor da minha vida foi a Marta, que ao
contrário das outras, era muito loira e alva, magrinha, com pernas finas e bem
torneadas e pezinhos delicados e pequenos. Tinha um olhar sério e tímido, uma
formosura meiga, que lhe dava um ar de santa de altar. Como sabem esta moça
delicada e virginal agradava também ao bronco do Zeferino, que daria a sua
fortuna por casar com ela, mas para quem ela nunca olhou, a não ser perdida de
riso quando o cão o deixou sem calças. Coitado do Zeferino até lhe perdoei
quando o vi assim, apesar das alarvidades com que me mimoseou. Não tinha
maneiras nem educação!
Eu amei-a pudica e castamente, mas como sabem, minha mãe
jurava que enquanto fosse viva jamais haveria de ter como nora a filha da
Genoveva de Prazins. Dizia que Genoveva além de dar desgostos ao homem, foi
falada com um frade de Santo Tirso, pintava a manta em festas e romarias, tinha
o demónio no corpo e morreu louca atirando-se ao rio Ave. Esta doidice já vinha
do pai, avô de Marta, que ao que diziam também não era escorreito. O meu pai,
menos exagerado, que ela também não concordava com o casamento.
O Sr. Camilo Castelo Branco não percebeu todo o conflito que
tive em casa por causa do meu amor contrariado. A minha mãe, mulher pretensamente
devota e muito rezadeira, não se convencia com argumentos racionais, que eu bem
tentei. O resultado, foi berrar que eu merecia ser posto fora de casa com um
pontapé como um cão, porque não merecia a família que tinha e os sacrifícios
que tinham feito por mim. O meu pai também se acoitava nas opiniões da mulher e
jamais teria força para lhe fazer frente. As discussões lá em casa eram
terríveis e o meu irmão chegou a dizer-me: esta casa tornou-se um inferno desde
que te apaixonaste por essa lambisgoia, não tens tu moças por aí mais bonitas e
mais prendadas para quem olhes? Irra que nem me apetece entrar nesta porta!
Eu desesperado, só pensava numa solução para casar com Marta,
em segredo, apresentaria depois o facto
consumado. O problema era encontrar um padre
que desse a sua bênção, já que o Osório se negava. Só conseguia ter paz,
abraçado a ela pelas noites dentro, em que penetrava na sua casa quando todos
dormiam. Às juras de amor e ao chamegos, seguiam-se soluços tristes quando
dávamos conta da nossa infelicidade e do futuro incerto que nos esperava.
Tínhamos já decidido fugir, com promessas de um padre de
Santo Tirso que aceitava unir-nos com o sacramento da Santa Madre Igreja,
porque o casamento já estava consumado de corpo e alma.
Neste ínterim as forças iam-me faltando a tosse assaltava-me
com tal intensidade pela noite dentro, com o calor dos lençóis e da paixão, que
cheguei a recear que o velho Simeão acordasse e fizesse ali um escândalo. É que
este desgraçado já andava a matutar casar a minha Marta com o seu irmão que
vinha do Brasil, podre de rico. A Marta quando ouvia falar no tio soluçava de
tal maneira que me deixava de coração despedaçado Vai daí, numa noite frígida de
Janeiro, ao saltar da janela do quarto dela, fui parar a uma poça de água
gélida e cheguei a casa tolhido de febrões que não me largaram mais. Este foi o
princípio do fim, cheguei a melhorar, mas por pouco tempo. A minha mãe dava-lhe
para gritar que a maluca de Prazins era a culpada do meu mal. Já não me
bastavam os sofrimentos físicos, as saudades de Marta e a histeria da minha mãe
levaram-me quase à loucura. Pedi ao Osório que retirasse a minha mãe do meu
quarto para sempre.
O resto, vossas excelências já sabem, finei-me e o destino da
minha amada foi o que conhecem.
Haverá heroína romântica sem o respetivo herói? A resposta é
clara para os meus preclaros auditores e leitores. Mas para o novelista de
Seide não foi assim. Foi capaz de colocar a figura do mastronço do Zeferino
numa posição mais importante que a minha. Deixemo-lo em paz, se é que a tem,
com morte tão nefanda, o desgraçado de Seide. Pelo menos dei a conhecer-vos o
relato verídico da minha infelicidade, parece que merecia honras de herói
romântico, não vos parece?
Muito bom dia e até mais ver, cumprimentos deste herói
romântico injustiçado:
José Dias de Vilalba
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