domingo, 20 de novembro de 2022

O Som e a Fúria

 


 

O discurso de Benjy 


por Margarida Mouta



 

A abrir a narrativa, e ao longo das primeiras 80 páginas, ouvimos a voz de Benjy, o louco da família, a produzir um discurso linear, fragmentado e incompreensível, que espelha o seu desconjuntado espaço interior. É guiados por esta voz que penetramos na casa dos Compson, que o mesmo é dizer, no seio de um velho mundo em decadência, o de uma família aristocrática em declínio, vivendo no Sul dos Estados Unidos nas primeiras duas décadas do século XX. Será através da voz e do olhar deste homem de trinta e três anos cuja idade mental não ultrapassa os três, que nos aperceberemos de uma parte desse mundo e das teias que se tecem entre as personagens que o habitam.

Todavia, entrar nesse mundo guiados pela fala de Benjy não será tarefa fácil. Mesmo cientes, à partida, de que é intenção deliberada do Autor captar o fluxo da consciência, o pré-aviso não basta e as dificuldades surgirão de imediato. O artifício estilístico é por demais artificioso e leva-nos a tropeçar inúmeras vezes no pensamento irregular da personagem, no seu articulado confuso, fragmentário, incongruente e inconclusivo, para só citar alguns dos adjetivos que nos ocorrem quando lemos o texto. Quantas vezes voltei atrás? Quantas vezes dei comigo a ler em voz alta a ver se entendia? Percebi depois que não estava sozinha. Próximos de mim, havia alguns desabafos que revelavam o desconforto da leitura e não tão próximas nem no tempo nem no espaço, as vozes de todos aqueles que ousaram um dia confessar ao autor que não entendiam plenamente a sua escrita, mesmo depois de a lerem duas ou três vezes, todos esses, a quem Faulkner se limitava a responder: “Leiam uma quarta vez”[1].


Não descoroçoei. Fui resiliente, como agora se diz, e, seguindo o conselho do autor e as diretivas da nossa mestra, insisti na leitura. A dada altura, dei comigo a encontrar no discurso do Benjy uma poeticidade que me surpreendeu. Momentos houve em que me veio à cabeça o interseccionismo presente nos poemas de Fernando Pessoa, tal a correspondência que encontrava entre o eu fragmentado de um e de outro, entre os paradoxos visuais de um e de outro e sobretudo entre o cruzamento de planos posto em prática no discurso de ambos. Uma conexão talvez absurda, mas no meu entender legítima, pois de poetas e loucos todos temos um pouco. E se o primeiro, sendo poeta, tinha muito de louco, o segundo, sendo louco, também tinha inquestionavelmente, a sua quota-parte de poeta.  

Passei a andar com a personagem na cabeça o que em mim é um sinal de adesão ao texto. Apesar desta aproximação, a ideia de escrever sobre algo que continuava a ser inextricável surgia-me como um berbicacho insolúvel ou, pelo menos, de resolução duvidosa. Se está a ser difícil ler este discurso, mais difícil será analisá-lo – dizia de mim para mim. Se calhar, talvez não haja mesmo forma de chegar à compreensão. Ao fim e ao cabo, aceitar sem reservas a insanidade de um louco é sinal de sanidade mental. E se em vez de buscar o entendimento, me dispusesse a ver neste arrazoado de palavras apenas o espelho que me dá livre acesso ao espírito conturbado de um louco no remoinho das sensações que viveu num determinado instante de um determinado dia, o 7 de Abril de 1928? Mas se assim fosse, porque insistiria então o autor no conselho dado aos leitores frustrados para que não desistissem dos esforços até encontrarem a chave para o entendimento?[2]

Foi então que travei conhecimento, via net, com um artigo publicado por uma senhora chamada Lucie Tangy[3], uma análise a meu ver muitíssimo interessante que veio projetar uma vigorante luz sobre o texto só igualável à das lâmpadas LED. Na realidade, as explicações que encontrei neste artigo revelaram-se, tal como as lâmpadas LED, energeticamente eficientes. Foram preciosas pelo empurrão que deram à concretização deste textinho que agora vos leio. Devo-lhes muito.

Segundo o artigo, a estranheza advém sobretudo da sobreposição no discurso de Benjy de duas insularidades: a do monólogo interior e a do seu autismo. No entender de Tangy, a voz de abertura de “O Som e a Fúria” desconcerta o leitor pelo efeito conjunto causado por uma fala papagueada e nominativa e pelo fluxo infraconceptual[4] que leva o leitor a confrontar-se com um espaço hermético.

Mas, no entender da autora, se inicialmente o discurso insular de Benjy nos remete para a imagem de um espelho quebrado, de tal modo fragmentado que se torna uma afronta para o sentido -- a própria imagem da incomunicabilidade entre o louco e a as personagens que o rodeiam (entre as quais se encontra o leitor) – esse discurso irá afirmar-se, na realidade, como um espelho onde se reconstituem as unidades de sentido que permitirão ao leitor a reconstrução do discurso através da leitura. Sendo assim, o distúrbio mental da personagem justificaria a criação de um espaço literário específico, uma espécie de mimeses linguística de uma infralíngua[5] que esconde uma espécie de paradoxo, uma vez que o autor nos leva a aderir a uma convenção literária (relato de 1ª pessoa) que logo a seguir será posta em causa pela existência de um narrador louco (Tangy considera-o autista), estatuto que não admite o discurso autorreflexivo do eu.

Por outro lado, interrogar a permeabilidade do monólogo interior de Benjy enquanto ser portador de uma profunda deficiência mental, permite-nos refletir sobre a capacidade desta “ilha textual[6] de criar um espaço de comunicação com o leitor.

Seduzida pelo discurso esclarecedor de Lucie Tangy, decidi então penetrar nesse espaço de comunicação, fazendo uma análise do discurso de Benjy. E isto, tão só, tão só, com o modestíssimo propósito de tentar desvendar no texto (e nas suas margens) algo que pudesse, em certa medida, explicar as idiossincrasias deste narrador-personagem com que Faulkner abre o jogo.

Para isso, elegi quatro tópicos que me pareceram susceptíveis de fazer descer alguma luz tanto sobre a personagem como sobre o artifício de linguagem escolhido por W. Faulkner para caracterizar a voz que dá início ao romance. Desta forma, decidi dar uma atenção especial ao léxico, à construção sintáctica, aos efeitos sinestésicos e ao modo como é concebida no discurso a percepção do espaço e do tempo.   

 

1.        O léxico

“Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira e eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.” p. 19

Estamos aqui perante um discurso essencialmente atomista, sem espessura, que privilegia a literalidade, reservando lugar de destaque aos nomes. Nesta sequência inicial é visível a repetição do vocábulo “cerca” (5x), uma repetição que permite avaliar o caráter obsessivo do narrador e simultaneamente a sua incapacidade de variação no eixo paradigmático.[7] [Veja-se também: “um dava tacadas e o outro dava tacadas” em vez da síntese que seria expectável, “ambos davam tacadas.”]. Quanto à adjetivação, o único adjetivo presente, “encaracoladas” remete para uma imagética próxima dos sentidos que não indicia nenhuma apreciação crítica. Importa também referir que o discurso atribuído às outras personagens que surge no tecido monológico de Benjy se limita a uma reprodução em discurso direto, sem qualquer filtro ou mediação. Benjy apresenta-se aos olhos do leitor como um mero receptáculo do mundo exterior. O discurso dos outros é mais um elemento exterior percepcionado pelos sentidos.

 

2.        A sintaxe

Encontramos no discurso de Benjy o predomínio da parataxe, frases de estrutura simples reveladoras de mera justaposição ou simultaneidade temporal, facto que não é de estranhar se aceitarmos a sua notória incapacidade para relacionar objetos, factos e ações entre si ou para estabelecer mecanismos de causa/efeito entre as personagens e as suas ações:

Fomos para a biblioteca. O Luster acendeu a luz. As janelas ficaram pretas e o sítio alto e escuro da parede veio direito a mim e eu avancei e toquei-lhe.” [orações independentes; orações coordenadas].

“O Quentin agarrou-me por um braço e fomos para o estábulo. Mas o estábulo não estava lá e tivemos de esperar que ele voltasse. Não o vi chegar. Veio por detrás de nós e o Quentin sentou-me na manjedoura das vacas. Agarrei-me a ela. Mas ela também ia a fugir e eu agarrado a ela.”[8]

Pelos mesmos motivos, não encontramos frases interrogativas ou quaisquer estruturas de caráter mais complexo (como a subordinação) que apontem para a possibilidade de conceptualizar hipóteses ou sintetizar as perceções que tem do real.  Esta construção demasiado simples, próxima do discurso infantil, pode indiciar a inocência, mas pode remeter também para as características do discurso do alienado mental.

 

3.        As Sinestesias

Cedo nos apercebemos que em Benjy, a enfermidade é compensada pela acuidade sensorial. O seu único modo de apreender o real é através do uso dos sentidos. Daí que o seu discurso se apresente como uma verdadeira “coreografia dos sentidos”[9].  Os efeitos sinestésicos pontuam o discurso, deixando nele a sua marca singular:

Ela cheirava como as árvores. No canto estava escuro, mas eu via a janela. Deixei-me lá ficar agachado com o chinelo na mão. Não o conseguia ver, mas as minhas mãos viam-no, e ouvia a noite a aproximar-se, e as minhas mãos viam o chinelo, mas eu não me via, mas as minhas mãos viam o chinelo, e eu estava ali agachado a ouvir a noite chegar. p. 79.

Associadas ou atuando de forma isolada, as sensações olfactivas, visuais, tácteis e auditivas presentes no discurso de Benjy permitem-nos dar forma a momentos cruciais da narrativa ou até mesmo perscrutar as suas fragilidades. Logo no parágrafo inicial, a sensação auditiva (o som da palavra caddie proferida pelos jogadores) dá-nos de imediato a possibilidade de perceber a forte ligação afetiva existente entre Benjy e a irmã.  Através do olfacto (o cheiro de Caddy) entendemos o modo como o narrador a identifica com o mundo natural (ela cheirava como as árvores) ou como reconhece o momento em que ela tem relações sexuais pela primeira vez. A sensação táctil contribui de forma decisiva para a tomada de consciência da relação intensa que une os dois irmãos. É através do seu abraço (na infância) ou do toque do seu chinelo (na idade adulta) que nos apercebemos do efeito calmante que Caddy exerce sobre Benjy.

 

4.      A percepção do espaço e do tempo

Da mesma maneira que a percepção do real surge muitas vezes associada ao irreal imaginário sem que haja um “como se” que autorize a interpenetração dos dois mundos, também as categorias de espaço e tempo surgem embrincadas de forma surreal. Reduzido àquilo que é susceptível de chamar a sua atenção, Benjy constrói para si um mundo onde se pode orientar e movimentar, percepcionando o passado e presente num mesmo plano. Isto é particularmente visível no modo como mistura as memórias da sua infância com o que está a vivenciar no presente, o que o leva, por vezes, a bruscos e dilatados saltos no espaço e no tempo, que confundem o leitor:

 – ‘Pere aí – disse o Luster. – Lá ficou outra vez preso no prego. Será que não é capaz de passa por aqui sem ficá preso nesse prego. A Caddy soltou-me e passámos de gatas para o outro lado. O tio Maury disse para não deixarmos que ninguém nos visse e por isso é melhor irmos agachados. Agacha-te Benjy (…) p. 20. Os verbos lembrar / recordar / evocar (porque verbos de pensamento) estão, naturalmente, ausentes do discurso.

Pensando bem, não será também, esta ausência de ancoragem num tempo e num espaço definidos (ausência de referência deíctica), este constante oscilar entre o passado da narrativa e a ação presentificada nos diálogos, um reflexo do próprio corpo de Benjy, sempre em movimento, sempre a brincar com as flores, ou a correr pela cerca, ou, mesmo quando parado, em luta com as “formas brilhantes” que não param de rodopiar?

 Tentei tirá-las da minha cara, mas as formas brilhantes começaram outra vez a passar. Elas iam pela encosta acima, para onde ela caia para o outro lado, e eu tentei gritar. Mas quando metia ar, não conseguia fazê-lo sair para gritar, e tentava a todo o custo não cair da colina, mas caí da colina para o meio das formas brilhantes que não paravam de rodopiar.” p. 62.

Termino este textinho certa de que muito ficou por dizer. Principalmente no tocante ao segundo eixo explorado no artigo que me inspirou: o do convite à reconstrução do romance que deverá ser levada a cabo pelo leitor em simultâneo com a experiência de desconstrução operada pela linguagem de Benjy. Tarefa que pressupõe, obviamente, uma leitura no plano simbólico e que exigirá da minha parte o tal esforço de co-criação que a obra convoca. 

Confesso que me faltou tempo para reler o texto com olhos mais poéticos ou mais perscrutadores e para me embrenhar nos processos de inferência que essa reconstrução exige. Talvez num outro momento me volte a reaproximar da obra e consiga descobrir o som e a fúria no seu esplendor em tudo o que há de implícito no texto e que permanece por enquanto imerso no tecido do texto.

Por agora, despeço-me do livro com a sensação de ser aquele ser inacabado e imperfeito que a leitura de todas as grandes obras deixa em mim, mas acreditando que é possível lidar com os desafios que os textos que nos deixam inquietos nos colocam.



William Faulkner, O Som e a Fúria, trad. de Ana Maria Chaves, ed. Leya - Livros RTP, col. Essencial, 2017, p. 19


 

Margarida Mouta

Porto, 8 de novembro de 2022



[1]  Cf. Prefácio de Rui Vieira Nery, p. 14

[2] Sobre este ponto, não estou muito certa. Inclino-me mais a concordar com o que disse David Lodge numa entrevista à BBC: “A consciência é algo muito privado. Em parte, enveredamos pela literatura nas suas diversas formas para compensar ou inventar os solipsismos das nossas próprias vidas internas".

[3] Lucie TANGY, «Insularité et idiotie. Le monologue intérieur de Benjy dans Le Bruit et la Fureur », Tracés. Revue de Sciences humaines [En ligne], 3 | 2003, mis en ligne le 03 février 2009, consultado a 9 de setembro de 2022

 

[4] Tanto quanto me foi dado apurar, a noção de infraconceptual tem que ver com a forma indistinta como as percepções se apresentam, uma espécie de magma pré-existente aos processos de elaboração das representações que as transformam em entidades significativas. 

 

[5] Tangy é de opinião que a “insularidade discursiva” está, aliás, presente em toda a obra. “(…) o monólogo do idiota funciona, na economia do romance, como um lugar fechado, sinónimo de uma relação primitiva com o mundo de uma consciência balbuciante. Ele inicia a exploração progressiva da consciência esboçada em “O Som e a Fúria”. Nesta parte liminar, Faulkner apresenta a matéria prima do seu romance, os elementos ainda informes do seu universo, elementos que as partes seguintes irão desenvolver. A matriz do processo de criação do romanesco exibida de modo reflexiva” (Tradução minha).

 

[6] Termo roubado à autora do artigo.

[7] Por outro lado, é também impossível para nós leitores, não evocarmos, sob o efeito desta repetição, o simbolismo contido no vocábulo cerca que aponta de imediato para o fechamento da personagem num duplo espaço de clausura: o da casa, reduto da família e o da sua própria mente. Por outro lado, ainda, a reiteração anafórica autoriza-nos a aproximar este modo de narrar primário decorrente da sua linguagem de deficiente mental, ao discurso poético

[8] Aqui a sequência frásica segue o ritmo vertiginoso do delírio mental em que o estábulo e a manjedoura, (espaço e objeto inanimado) adquirem vida própria e se movimentam.

[9] Outra expressão pedida de empréstimo a Madame Tangy.

 

O Som e a Fúria: os negros


por Conceição Rocha

 

Como será previsível, falar de negros numa quinta do sul dos Estados Unidos na década de 20 será falar já não de escravos (em 1863 Lincoln publica “The imancipation proclamation”, documento que põe fim estatutariamente à escravatura), mas de pessoas servas, exploradas pelos patrões  e desprezadas por toda a comunidade  branca.

No Som e a Fúria, os negros aparentemente não diferem daquilo que conhecemos das narrativas de época, sobretudo daquelas em que não se notam revolta e resistência a um estatuto de servidão. Um dos debates em torno de Faulkner é justamente sobre o seu possível racismo, ou seja, se a força da sua narrativa que envolve negros está no facto de descrever com extraordinário realismo os comportamentos tidos como padrão ou se, utilizando linguagens e comportamentos padrão, faz sobressair as contradições sociais e as debilidades da sociedade branca decadente, dependente, vulnerável e, no fundo, não respeitada pelo círculo negro do seu ambiente doméstico e local, este sim inteligente, sagaz e capaz de ir sobrevivendo e dando a volta às circunstâncias em seu proveito.

Não vale a pena aqui descrever as passagens em que os criados dos Compson intervêm, pois toda a gente leu a obra. Além disso, surgem não como um enredo contínuo, mas como um somatório de episódios narrados por diferentes narradores. Recordo só quem são:

·       Dilsey, a cozinheira e personagem central do romance, mulher com autoridade baseada na sensatez e capacidade de agir e reagir e, assim, ascender sobre os outros. È quem põe ordem no caos sempre que este ocorre;

·        Frony, filha de Dilsey;

·       Luster, neto de Dilsey e filho de Frony, cuidador de Benjy;

·       Versh, criado jovem;

·       Roskus, criado velho;

·       TP, criado velho.

·       Roskus, o pacificador

Assim, este pequeno apontamento referirá sobretudo o contexto em que O Som e a Fúria se passa, para compreender a acção e a época em que ela decorre no que diz respeito à população negra do sul agrário e racista.




Faulkner é contemporâneo de novas políticas raciais nos Estados Unidos, sem que tal melhorasse significativamente o estatuto dos negros nos estados do sul. O decreto de Lincoln de 1863, que já mencionei, dá origem a partir do início do século XX a um grande movimento migratório dos ex-escravos das plantações para os guetos das periferias urbanas industriais. Os que permaneceram de algum modo ligados às famílias agrárias em situação de servidão mais ou menos explícita, não experimentaram qualquer dignificação do seu estatuto ou melhoramento da sua respeitabilidade. A religião metodista e a baptista, que professava a maioria dos brancos aceitava o esclavagismo e encarava os negros com paternalismo racial – crianças intelectualmente débeis, carenciadas de tutela. No pós-esclavagismo postulava-se um proteccionismo brando, mas autoritário, sem agressão física mas dureza moral e consciência da subalternidade.

O romance situa-se na década de 20, menos de um século após a guerra civil (1861 – 1865) e a derrota do Sul esclavagista e considerado pelo Norte como bárbaro, conservador, inculto e violento, desestruturará muitíssimo as famílias ora poderosas, depois empobrecidas, com personagens frequentemente enlouquecidos e com dificuldade em interiorizar a nova realidade (e identidade).


Nesta família Compson que Faulkner faz reproduzir os padrões do início do século XX sulista, Dilsey adquire um protagonismo especial, é a voz do juízo no meio da loucura decadente da família.

Na 4ª parte do romance especialmente, o seu esforço  em manter a ordem na propriedade, apesar dos insultos de Jason que diz serem os negros parasitas, mentirosos, preguiçosos e arruaceiros, é notável. Acredito que essa força anímica assenta na consciência da sua própria vulnerabilidade estatutária: se o mundo que conhece e em que se move ruir, vive ela própria a crise de identidade que os patrões experimentam e lhes cria enormes dificuldades de sobrevivência. A crença cristã tem também nela o seu papel: sente na mensagem do sermão da ressureição de Cristo a esperança de redenção, do fim dos tempos em que haverá igualdade entre os homens e extrapula até para a família Compson a convicção de que a fuga e o suicídio do Quentin representarão essa redenção.

Nessa 4ª parte, que foca mais do que nas 3 outras a importância dos criados, não só Dilsey é uma referência decisiva na narrativa, como Luster, o companheiro de Benjy, que o entende e ampara e Roskus, que silencia humilhações sucessivas, pois filosoficamente considera que “coisas de brancos são coisas de brancos”.

Interessante é sabermos que Faulkner tirou o título do romance do Macbeth, que diz que a sua é “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”.

 Senti que um dos aspectos geniais do romance é a sua forma caótica e por vezes confusa de nos apresentar uma família disfuncional, fruto do tempo e do espaço em que se situou, mas mais ainda do que isso: um microcosmos cheio de som e fúria, mas uma fúria geralmente sem as lutas sangrentas, assassínios, emboscadas, as grandes crueldades que com a questão racial nos revoltamos. Um quotidiano de fúria controlada que adivinha um trajecto dramático, com as suas erupções, como ainda hoje testemunhamos. A realidade é muito complexa.

O Som e a Fúria

 

                                       William Faulkner,  O Som e a Fúria

                                                            Água e sombras


por Maria José Marques

 

Ler O Som e a Fúria foi para mim um desafio e tanto! Se ao menos os editores tivessem seguido a sugestão do autor e imprimissem em cores diferenciadas os diversos tempos da narrativa parte do esforço do leitor para arrumar, ordenar a sequência do que é narrado estaria facilitado mas não resultaria na mesma experiência, seguramente.

As quatro secções em que está dividida a obra sobrepõem-se de muitas maneiras mas, no essencial contam a mesma história . Candace , Caddy, que estando no centro de toda a história na verdade não chega a aparecer nela .Ela é reconstruída a partir das memórias dos seus três irmãos ,e cada um a recorda à sua maneira.

Na primeira secção, a de Benjy, a água aparece como um leitmotiv associado a Caddy. Brincando no riacho em criança Caddy é inocente mas já infringe as regras molhando as roupas e muito mais quando se deixa enlamear e os irmãos lhe apontam os culotes sujos sem se intimidar com a ideia do consequente castigo. É o prenúncio da promiscuidade de Caddy. Mais tarde, quando Benjy fica perturbado ao cheirar o perfume da irmã pela primeira vez, e ela , virgem ainda, lava o perfume, do mesmo modo que lava a boca com sabão quando Benjy a apanha no baloiço com Charlie mesmo sabendo que não há água que a purifique. Nas memórias de Benjy a ligação carinhosa que tinha com Caddy  é reavivada pela imagem da filha dela, Miss Quentin, que, ao contrário da mãe, o repudia.

Na segunda secção, é Quentin que narra as suas memórias. Quentin orgulha-se do passado mais ou menos nobre da família, apesar de precisarem de vender terras para financiar a sua estadia em Harvard, tal era o declínio económico, mas parece ser o único que dá valor à honra, à justiça, ao amor. Ele ama a irmã, talvez excessivamente, e a sua obsessão com a virgindade dela representa o desejo de encontrar algo de puro e intacto. Embora a família o aconselhe a esquecer a desonra de Caddy, o seu casamento com um banqueiro estando grávida de outro homem,  Quentin não quer esquecer porque isso tornaria a sua dor, o seu desgosto, uma coisa sem sentido e quando já não há nada para dar um propósito à vida, o suicídio é o único caminho. Os preparativos para o suicídio, depois de escrever cartas, comprar ferros de engomar e simbolicamente cortar com o passado partindo o relógio herdado do avô, levam Quentin até Charles River Bridge de onde contempla a sua sombra na superfície da água. Tanto na secção de Benjy como na de Quentin ele se mostra sensível à presença de sombras que lembram de forma subtil a passagem do tempo à medida que mudam durante o dia, e têm associada a ideia de que a própria família Compson é uma sombra do que foi.

             “A sombra da ponte, as grades da balaustrada e a minha sombra estendida sobre a água, que eu tinha sabido aliciar tão bem que nunca mais me abandonara”

            “ Saltei para cima da minha sombra”

 A água é o destino que apaga, apazigua e purifica e guardará sua sombra.

  

 

 

Maria José Marques

Novembro, 2022




Os negros de “O Som e a Fúria”


por Delfina Rodrigues

 

Opto pela abordagem do tema proposto a partir da personagem Dilsey, a criada negra.

Referida em todos os capítulos, no fluxo natural do pensamento das diferentes vozes narrativas e no discurso direto das personagens, ela torna-se, no último capítulo, o foco do único narrador heterodiegético da obra, mais próximo, porventura, da voz do autor.

Atravessa, assim, todo o tempo narrativo e todo o tempo da história, ela própria afirmando, já próximo do fim, com uma carga ominosa que atravessa alguns momentos da narrativa, que viu o princípio e o fim.” Vi o começo e o fim”, afirma (p.267)[1].

Ela é a matriarca de uma família de criados negros que servem os Compson, família da aristocracia sulista dos Estados Unidos em inexorável degradação e trágico declínio e, simultaneamente, uma espécie de alma mater da própria família que serve. Ela é, em 1928, diria, suporte de vida dos Compson: suporte material/funcional, emotivo, afectivo.

Sendo figura omnipresente ao longo da obra, em movimento perpétuo — cozinha, serve as refeições, enche sacos de água quente, conforta, deita as crianças, sobe escadas, desce escadas, aconchega, acolhe, mima, admoesta, censura, opina — é na última parte do livro, no dia de Páscoa de 1928, que ganha uma centralidade nova. A imagem vivifica-se, vemo-la assomar à porta do casebre, a avaliar o estado do tempo, antes de iniciar as tarefas e ir à igreja. Surge descrita na sua indumentária, tão esvaída e esfiapada quanto a figura: ergue ”para o ar o rosto milenário e encovado e uma mão descarnada de palma mole como a barriga de um peixe…”; “o vestido caia-lhe…sobre os peitos descaídos”; ” Outrora de fartas carnes, o seu esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico, como se tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força…”

Mais tarde, já na igreja: “Dilsey estava sentada muito hirta com a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas lágrimas rolavam-lhe pelas faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos”.

Também o terreno em torno do casebre que habitava era ”pelado”, ”coberto de uma espécie de pátina do pisar de gerações de pés descalços”.

Esta era a Dilsey que já não subia as escadas, antes se” arrastava “pelas escadas acima, ou descia a escada “com uma lentidão dolorosa e aterradora” (p.242), tão sujeita à erosão do tempo quanto tudo o que a rodeava, mas sem o correspondente direito ao descanso, já que, como afirma, os brancos ficam cansados por qualquer coisa, enquanto ela continuava a fazer todo o trabalho.

Todavia, não se lhe adivinha hostilidade rácica, antes aceitação inelutável de uma condição herdada, que não discute.

Apesar dos anos de convívio estreito e mesmo do acesso silencioso a segredos da família, Dilsey, Roskus, Versh, Fronny, TP e Luster não deixam de ser personagens do background e de downstairs, espaços que ultrapassam apenas no estrito cumprimento das suas tarefas.

As relações são naturalmente marcadas pelos diferentes estatutos, apesar das censuras, conselhos, quase ordens que Dilsey se permite, mesmo in presentiae, ciente de que de si depende a organização do caos que progressivamente se instala à sua volta.

É, contudo, perceptível a imagem que tinha da família que servia: “Pois sempre te digo uma coisa, negrinho duma figa, tens tanta ruindade dos Compson nesse corpo como qualquer deles” (p.248); “O menino é um homem muito duro, Jason, s’é que chega a ser um homem-diz ela-Dou graças ò Sinhô por me ter dado mais coração qu’a si, mesmo qu’o meu seja negro.”

 A alteridade, o racismo, a dualidade do mundo branco e do mundo negro e diferentes cosmovisões são expostas em diversos momentos da obra e na voz de diferentes personagens.


Não é possível desligar o livro do seu contexto histórico. Sublinhe-se que a abolição da escravatura nos EUA era relativamente recente e que a lei não extingue, per se, as suas raízes mais profundas.

Deixemos o texto falar:

“…procurar os 25 cêntimos antes qu’os negros os encontrem” —7 de abril

Oh-disse Caddy - Isso é os negros. Os brancos não fazem prantos” (p.37)

Sempre gostava de sabê porquê - disse a Fronny. Os brancos também morrem. A sua avó tá tão morta como qualquer negra pode tá, acho eu” (p37)

Onde é que arranjaste 25 cêntimos, rapaz. Nos bolsos de algum branco quando ele não tava a ver.” (p.21)

O dinheiro dos negros é tão bom como o dos brancos, acho eu” (p.21)

Os brancos dão dinheiro aos negros porque sabem qu’o apanham de volta outra vez mal aparece um branco a tocá c’uma banda, e depois os negros têm de ir trabalhá mais para arranjarem mais dinheiro “(p.21)

Que tens tu contra os brancos.

Não tenho nada contra eles. Eu sigo o meu caminho e os brancos que sigam o deles

Quando as pessoas se comportam como pretos” (p.168)

 

Continuando:

Foram andando. Pela rua tranquila, os brancos, em grupos resplandecentes, dirigiam-se para a igreja…” (p.260)

“E ela: eu sei quais são os que falam-disse Dilsey-Escumalha branca. Esses é que falam. Acham que ele não serve pa entrá na igreja dos brancos, mas qu’é bom de mais pa entrá na dos negros. Ninguém qué sabê disso, só os brancos.” (p.260)

“…e as crianças, com roupas compradas aos brancos em 2ª mão…”

Quando…parecia um branco” (p.263)

Nem notaram que a entoação e a pronúncia se haviam tornado negras…” (p.265)

Não por acaso, presuma-se, as afirmações mais racistas encontram-se na voz da personagem mais odiável da obra — o filho Jason:

O que eu lhes digo é Já a minha família era dona de muitos escravos e vocês não passavam de uns reles comerciantes e lavradorzecos de pedaços de terra para quem nem um negro olharia duas vezes” (p.217)

É o que eu digo, o lugar deles é no campo, a trabalharem do nascer ao pôr do sol. Não suportam nem a prosperidade nem o trabalho leve. É deixá-los privar com os brancos e já não valem nem o trabalho de os matarmos… (p.227)

Quando as pessoas se comportam como pretos, seja lá quem for, a única coisa a fazer é trata-los como pretos”.

E são recorrentes as referências aos negros, seis negros, que tem em casa para sustentar, como se de um fardo se tratasse.

A atmosfera do tempo, no que a esta questão diz respeito, é captável também na voz de Quentin, o mais sensível e inteligente dos filhos, em 1910:

Não o encontrei em lado nenhum. Mas também nunca vi um funcionário preto que fosse fácil de encontrar quando precisamos dele, e ainda mais se vive dos rendimentos,” (p.81)

O único lugar vago era ao lado dum negro…Eu costumava pensar que era dever de todo o sulista mostrar sempre consideração pelos negros. Achava que era isso o que os do Norte esperavam deles” (p.84)

Foi nessa altura que percebi que ser-se negro não é tanto o ser-se uma pessoa, é mais um comportamento, uma espécie de reflexo dos brancos com quem convivem

A Dilsey dizia que era por a mãe ter vergonha dele. É assim que eles entram na vida dos brancos sem mais nem menos, infiltrações negras…” (p.159)

 

Concluo, afirmando não ser possível ler “O Som e a Fúria” sem valorizar a dimensão racial, que emerge, aqui e ali, em diferentes tons e contextos. As relações são estabelecidas com base em persistentes pressupostos de alegada supremacia branca, mas também de afirmação da identidade negra, as duas irmanadas, afinal, na sua indesmentida e sublinhada finitude, na voz de Fronny:

 Os brancos também morrem. A sua avó tá tão morta como qualquer negra pode tá

Porto, 8 de novembro de 2022

Delfina Rodrigues

 

P.S. Quando recebeu o prémio Nobel, em 1949, no seu discurso Faulkner terá afirmado: “Acredito que o homem não vai apenas resistir. Ele vai sobreviver. É imortal porque tem uma alma, um espírito capaz de sentir compaixão”[i][2]

Encarnará Dilsey, para o autor, esse símbolo de sobrevivência e de humanidade, assim se explicando o relevo que lhe é dado no último capítulo da obra?

 



[1] Toas as referências a páginas se referem a edição das Publicações D. Quixote, 10.ª edição de fevereiro de 2018.

 

[2] Youtube: Literatura Fundamental 55 – O Som e a Fúria - Munira Mutran