segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Promessa

Os Países Bálticos

 por Conceição Rocha



 Romain Gary – pseudónimo de Roman Kacew – nasceu em Vílnius, Lituânia, em 1914, numa família judia de origem russa. Emigrou com a mãe para a França, Nice, em 1928 e aí fez o fundamental da sua educação. Escritor notável e diplomata, recebeu o prémio Goncourt em 1956. Pôs fim à vida em 1980.
Sobre a Lituânia: O território lituano tem a sua origem (pré-medieval) em várias tribos designadas por bálticas como referência ao nome do mar que as avizinha. Há notícia de que tiveram contacto com o império romano, pois ficavam na rota do âmbar. No século XII a Lituânia constitui-se como nação (Litu quer dizer nação) e até ao século XVI esteve organizada em ducados que pagavam impostos aos príncipes das regiões ucranianas. Alguns dos territórios eram ocasionalmente tomados pela Polónia, depois retomados pela Lituânia, mas esta nunca perdeu a independência até ao século XVIII, quando é anexada pelo império russo, no tempo de Catarina. Restabelece a independência em 1918, mantendo conflitos territoriais com a Polónia até que em 1940 é anexada pela União Soviética graças ao pacto germano-soviético (Molotov – Ribbentrop). Com a derrota da Alemanha em 1945 é anexada à União Soviética, situação que termina com a Perestroika em 1991. Nesse ano é admitida nas Nações Unidas; em 2004 integra a NATO. Realiza, finalmente, o sonho do rei Mindaugas (do século XIII): a pertença de direito político e cultural da Lituânia à Europa.
As anexações soviéticas: • A designação “União Soviética” começa com a revolução de Outubro (Outubro, calendário Juliano, Novembro calendário Gregoriano) de 1917 – plena 1ª guerra, sob a liderança de Lenin, embora tenha sido só oficializada em 1922. Colapsa em 1991 com a dissolução do governo centralizado para as 15 repúblicas. • Entre 1917 e 1922 enormes perdas humanas ocorreram com a 1ª guerra mundial e com a guerra civil que se lhe seguiu entre “russos vermelhos”, pró revolução e “russos brancos”, seus opositores. Estes foram derrotados e o estado socialista organiza-se com um exército cada vez mais poderoso, que consome a maior parte dos recursos materiais, deixando o povo em enormes privações. • Entre 1918 e 1922 a Finlândia (excepto a região da Carélia), Letónia e Estónia tornam-se independentes, aproveitando o enfraquecimento soviético com a guerra civil. A Lituânia e partes da Bielorrússia e da Ucrânia são anexadas pela Polónia. • Entre 1927 e 1953, os países bálticos sofrem o terror de Stalin com os gulags, os assassínios em massa e as perseguições de opositores denunciados por uma teia de delatores e polícias políticas. • 23 de Agosto de 1939 (início da 2ª guerra), o pacto Molotov – Ribbentrop, isto é, o pacto nazi-soviético, divide o leste europeu: Finlândia, Estónia, Letónia e Lituânia para a União soviética e Polónia dividida entre as duas potências. Todos esses países, excepto a Finlândia, são obrigados a assinar a aceitação de tropas soviéticas nos seus territórios, estas muito mais numerosas e bem equipadas do que as nacionais. A lei Berya, soviética, legitima perseguições, prisões e assassínios. (É muito interessante ler o texto da lei Berya para verificar como se assemelha a textos que legitimaram as cruzadas e a inquisição, invocando “a verdade” e a necessidade de impor esta contra “o inimigo”). • Com a derrota da Alemanha em 1945 a U. S. acusa os países bálticos de colaboracionistas com os nazis e substitui os respectivos governos por outros da sua confiança. Estes, por sua vez, criaram parlamentos favoráveis que autorizaram a entrada das tropas soviéticas e reformularam os serviços administrativos, por forma a integrarem formalmente a União Soviética. Dezenas de milhar de opositores foram assassinados e na Ucrânia morreram à fome 10 milhões de pessoas, fome propositadamente provocada por decisão de Stalin. A operação Barbarossa em 27 – 28 de Junho de 1941 foi um massacre que ficou célebre. As ossadas de centenas de opositores políticos, intelectuais e artistas de vários graus de importância estão ainda hoje a ser exumadas e identificadas pelo ADN. 

Fontes de informação das quais tirei os dados para este brevíssimo resumo: .
 Wikipédia 
• www.bbc.com › culture ›

ROMAIN GARY

A PROMESSA

 

A última bola, existe ou não?


por Maria João Leite de Castro

 

Considerando a perspectiva de Romain Gary, penso que a resposta é não.

As expectativas que a mãe tinha em relação a  ele eram tão elevadas e condicionaram tanto a sua relação com o mundo e com os outros que, por mais que se esforçasse, nunca seria possível atingir essa última bola, exactamente porque ela não tem uma existência física, mas é do domínio do maravilhoso, do fantástico, do imaginário.

Desde pequeno, Gary ouve as histórias da mãe que, ao contrário das outras histórias que os miúdos normalmente ouvem, não falam da Branca de Neve, do Gato das Botas ou dos Sete Anões, mas dos deuses inimigos Totoche, Merzavka e Filoche. Estes deuses inimigos personificam muito da realidade humana, aquela que, por mais que se queira contrariar, aparece sempre em focos disseminados e transversais à história da humanidade. Combatê-los será possível, mas nunca derrotá-los de forma definitiva ou, no mínimo, duradoira. Ora, Romain Gary, tem esse objectivo inalcançável: quis disputar, aos deuses, absurdos e ébrios do seu poderio, a posse do mundo, e restituir a terra àqueles que a enchem da sua coragem e do seu amor. (pág. 16).


Dessa forma, lutar contra esses deuses inimigos é querer ultrapassar a condição humana que nos condiciona, impedindo-nos de atingir o que se perfila no horizonte e que será sempre inalcançável: Ficava muitas horas deitado no chão, com a cabeça sobre o paraquedas e tentava lutar contra o sentimento de frustração, contra o tumulto indignado do meu sangue, contra o desejo de ressuscitar, de vencer, de sair dali. Ainda hoje não sei muito bem o que entendia por «ali». A condição humana? (pag. 304).

Essa crença na vitória final, na superação da existência humana, individual e colectiva e na transformação do mundo, é simultaneamente motivo de angústia e o próprio R. Gary reconhece que essa esperança que «ultrapassa as limitações biológicas, intelectuais e físicas» é uma espécie de estupidez ou de ingenuidade elementar, primária, mas irresistível, que devo ter herdado da minha mãe e de que tenho plena consciência. (pág.205)

É nesse sentido que R. Gary diz aceitar e compreender muito bem os outros, aqueles que se recusaram a seguir o General de Gaulle, porque estes estavam demasiado instalados nisso a que chamavam a condição humana e que era apenas as suas vidas. (pag.234).

Na verdade, a glória desmedida que a mãe idealiza para Gary e os sacrifícios constantes que faz para concretizar esses sonhos, cria nele não só uma responsabilidade imensa, mas também o sentimento de que, tudo o que faça, fica aquém daquilo que foi idealizado. Esse poderoso amor que zelava constantemente por ele e que lhe dava muitas vezes o sentimento de invulnerabilidade, tornava-o também eternamente insatisfeito e levou-o a abordar a vida como uma obra de arte em constante elaboração, e cuja lógica escondida, mas imutável, era a da beleza. (pág.246). Como alcançar essa obra de arte, esse equilíbrio e harmonia, a obra perfeita, a «ultima bola», aquela que implica a superação de todas as limitações antropológicas?

Assim, apesar de ter conseguido realizar todos os desejos que a mãe vaticinara- era um escritor de mérito, recebera a Croix de La Libération, colocado no seu peito pelo próprio General de Gaulle e até vestia fatos com corte inglês – todos esses êxitos arrastavam consigo um sentimento de insuficiência, de insatisfação: falo com toda a sinceridade: nada vejo nos meus pobres esforços nada que tenha merecido uma tal distinção. Aquilo que fiz, que esbocei, é ridículo, inexistente, nulo, se o compararmos com o que a minha mãe esperava de mim, com o que ela me havia ensinado e contado acerca do meu país. (pag.307).

No final do livro, Romain Gary refere-se mais do que uma vez à sua queda.

Como interpretar essa queda? Para além da morte da mãe, o reconhecer de que não tinha chegado a tempo para lhe oferecer aquilo com que toda a vida ela sonhou, mais do que essa circunstância, sem dúvida avassaladora, a «queda» resulta do facto de reconhecer que a vida, afinal, era alheia à Arte, à Beleza e à Justiça. Essa obra prima na qual sempre acreditou, com a morte antecipada/injusta da mãe, desvaneceu-se e deixou um Vazio que nunca mais foi superado. No fundo, não valia a pena continuar a treinar: nunca conseguiria apanhar a última bola, porque ela não existia…

Hoje, que a queda se completou, sei que o talento da minha mãe me impeliu durante muito tempo a abordar a vida como um tema artístico e que eu me perdi ao querer ordená-lo em torno de um ser amado e de acordo com a regra de oiro. O desejo da obra prima, do domínio absoluto, da beleza, levava-me a erguer as minhas mãos impacientes contra uma matéria informe que nenhuma vontade humana poderia modelar, mas que possui o poder insidioso de nos destruir imperceptivelmente. Por cada tentativa que fazeis para lhe incutir a vossa marca, ela impõe-vos um pouco mais, uma forma trágica, grotesca, insignificante ou absurda (…)Em vez de brincar de acordo com as minhas possibilidades com 5, 6 ou 7 bolas, como todos os artistas que se prezam, matei-me ao pretender viver o que, na verdade, apenas pode ser cantado. A minha rota foi uma perseguição errante de qualquer coisa cuja arte me dava sede, mas cuja vida não me podia oferecer apaziguamento .Há muito tempo que já não me deixo enganar por essa inspiração e se continuo a pensar em transformar o mundo num jardim feliz, sei que não tanto pelo amor dos homens, como pelo amor dos jardins.(págs. 258/259).

Abordando a questão, já não sob a perspectiva de Romain Gary, poderíamos dizer que essa última bola existe, enquanto ideia em cada um de nós, por vezes tentando constituir-se num querer colectivo ao qual chamamos Utopia. Essa ideia de perfeição, de obra prima, de beleza e de justiça é, de alguma forma, algo que nos impele mas que não tem uma realidade objectiva, à maneira platónica de um Mundo das Ideias, mas que se vai constituindo subjectiva e historicamente levando a nossa marca eternamente humana e por isso, sujeita a regressões, a falhas, a injustiças e a deformações…

A ilusão de Romain Gary foi, a meu ver, acreditar como ele próprio diz, ingenuamente, que a Perfeição, a Beleza e a Justiça estavam ao alcance do seu desmesurado esforço…


Big Sur


por Tom Berning

 Below is a brief description of Big Sur and some of my impressions.  It has probably been nearly 40 years since I last visited/drove through Big Sur, but some things do not change.  I’m sure that my experiences still hold true.

 

Big Sur is a rugged coastal area of California  fronting to the Pacific Ocean located south of Carmel-by-the-Sea and north of San Simeon (Hearst Castle).  In order to visit Big Sur, a person MUST have a car.  Even with a car, this is a difficult area to visit because there is only one road – Highway 1. (To call this a highway may be misleading to visitors of the area.  This is a two lane paved road with infrequent areas to pass other cars).  Highway 1 is a coastal road, running north to south, perched immediately above the ocean.  To the west of the road is the ocean, to the east of the road are the California Coastal Mountains.  There are no material roads over the mountains – only forest service roads, as a result, visitors to the Big Sur area drive from the north or the south.  The distance where the road is isolated is approximately 200 kilometers and takes about 3.5 to 4 hours to drive if one does not stop, but of course everyone stops because the views are STUNNING.  In practice, if a driver wants to drive this route and not stay overnight at one of the retreats, they should allocate one full day to make the transit.  There are limited services on the road. Restaurants, fuel stations and rest stops are infrequent.  There are a few small towns along this area of Highway 1, but they are fairly isolated.  In addition to isolation, the road is frequently damaged by landslides during the winter rainy months.  Sometimes the slides are small and only close a lane of traffic, sometimes they damage the road substantially and close the road for months.  About 2-3 years ago there was a major landslide on Highway 1 which closed the road for over a year and caused the road to be re-engineered and re-routed permanently due to unstable soils.

 


Besides the beautiful scenery, Big Sur is the location for some of the most elite retreat centers in the United States due to their location, isolation and scenery.  The most famous of these retreat centers is called Esalen Institute.  Esalen has been in existence for about 50 years and offers visitors the ability to participate in a large variety of “workshops and programs each year devoted to cultivating deep change in self and society”.  Examples of topics available in their workshops are: Yoga, Relationship Communication, Transpersonal Psychology, Personal Reflection, Shamanism, Meditation, Massage and Spiritual Studies. It is common for people to visit Esalen for extended periods of time to do “self-work”.  There are a few other retreat centers in the Bis Sur area including New Camaldoli Hermitage (a Benedictine Hermitage) and Tassajara Hot Springs.  Besides the retreat centers, camping and hiking are popular activities in Big Sur. 

 

If a person finds themselves in this part of California, at minimum a drive through Big Sur is a requirement.  If time permits it is a wonderful place to stay for a few days.

 


 





A Promessa

 

As promessas são para cumprir


por Alexandra Azevedo

 

 

“A Promessa”, no original “La Promesse de l’Aube” é uma narrativa paradoxal como , aliás,   todas as autobiografias são pois,  ao contrário do diário íntimo, uma autobiografia é  simultaneamente retrospectiva quanto à voz e contemporânea quanto à perspectiva. Além disso, autodiegética por inerência à sua especificidade, a narrativa autobiográfica estabelece com o leitor um pacto tácito de sinceridade também ele paradoxal na medida em que  todo o autor autobiográfico é, simultaneamente, um actor  que desempenha o seu papel com o distanciamento que o desempenho de um papel teatral, inevitavelmente, exige.

É, assim,  da praia deserta de Big Sur, na Califórnia e  da perspectiva dos seus 44 anos que o narrador inicia a história da sua vida: “Ainda hoje, mais de vinte anos passados”; “hoje, que já vivi, ao cabo da minha corrida”...Mas mais do que a história da sua vida, é a história da  vida que a mãe sonhara para ele e que ele prometera a si próprio viver para não a desiludir que vai narrar. Tinha de ser um grande homem. Não havia como escapar a essa sina desde que percebera que se só ele é que comia bife era porque não havia dinheiro para mais e não porque a mãe só gostasse de legumes, como esta  afirmava.

Big Sur _ Califórnia 



E, na verdade, ser um grande homem é, à partida, a condição essencial para   escrever uma autobiografia porque

escrever e publicar a narrativa da sua própria vida não esteve sempre no horizonte de possibilidades de qualquer um. O género autobiográfico circunscrevia-se à auto-representação do homem de elite, branco e de algum modo notável. O estabelecimento das regras de género da autobiografia baseava-se nas obras de Rousseau ou Henry Adams e nessa linha inscrevia-se numa política de conservação de hierarquias de identidade em termos de classe social,  sexo e  raça que privilegiava a visão ocidental e androcêntrica  do mundo.

No entanto, apesar de ser  homem e de ser branco, o autor,  imigrante e de obscuras origens russa e judia, não deixava de ser percebido como o Outro, isto é, aquele que na ordem simbólica dominante, é visto negativamente. O romance foi publicado pelas Éditions Gallimard em 1960 e só cerca de uma  década e meia  mais tarde, com o advento do pós-modernismo e a correspondente compressão do tempo e do espaço, é que se assistiu à expansão do cânone da autobiografia  o que veio permitir àqueles  que na cultura ocidental são percebidos  através de uma marca simbólica negativa, representar-se a si próprios e fazer ouvir a sua própria voz. Deste modo, o sujeito autobiográfico não homem, não branco, não ocidentalizado, não famoso, não heterossexual passou a ter, sobretudo a partir da década de setenta, o direito a ver a sua autobiografia publicada e proliferou, então, a publicação de autobiografias de mulheres, de imigrantes, de lésbicas e de gays, tendo-se inclusivamente tornado objecto do  interesse de estudos académicos.

Por isso,  Romain Gary teve mesmo de inventar o seu nome pa

ra ser aceite no universo literário. Aliás, a questão da escolha do nome é narrada com muito humor pelo autor, pondo em relevo a perspicácia da mãe que sabia com uma certeza inabalável que um nome russo lhe seria um entrave intransponível.

“ _ Roland de Chantecler, Romain de Mysore…

_ É talvez preferível um nome sem partícula, pode ainda haver uma revolução_ dizia minha mãe”

Nina Borisovskaia, com o espírito de sobrevivência que a experiência pessoal lhe trouxera,  intuíra décadas antes   da falência, ainda não assumida, da generosa ideia da integração trazida pelo multiculturalismo primeiro e pelo interculturalismo depois, que a assimilação era o único modelo possível para o imigrante triunfar.  O seu filho seria, pois,  mais francês que qualquer um nascido em França no seio de uma família francesa tradicional.

“A minha mãe falava-me da França como outras mães falam da Branca de Neve ou do Gato das Botas e, apesar de todos os meus esforços, nunca pude desembaraçar-me inteiramente dessa imagem feérica duma França de heróis e de virtudes exemplares. Sou talvez um dos raros homens do mundo que se manteve fiel a um conto de fadas.” (42)

Embaixador da França, escritor famoso, (prémio Gocourt em 1956) o autor é, no entanto, uma personagem triste a desempenhar brilhantemente o papel de triunfador que a mãe lhe destinara, mas que parece não sentir como  verdadeiramente  seu. E, assim, há  uma melancolia constante a percorrer o romance, uma melancolia  que o humor, também permanente, não consegue esconder e, afinal, aquelas que conta como as grandes realizações da sua vida são pequenas grandes coisas como salvar um pássaro preso numa sala ou dar um pontapé a tempo num caçador que estava a visar uma gazela imóvel no meio da estrada.

  “E muitas vezes, como hoje, chego a sentir-me feliz, deitado na praia de Big Sur, ao crepúsculo cinzento e vaporoso, enquanto o grito longínquo das focas chega até mim e me basta erguer a cabeça para ver o oceano”


segunda-feira, 4 de maio de 2020

A PROMESSA _ Romain Gary




Porque VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT  aqui vão os temas de reflexão sobre "A Promessa"

  • A última bola _existe ou não?
  • Totoche, Merzavka e Filoche _ainda actuais? 
  • Nina Borisovskaia _ o poder do sonho ou a incapacidade de desesperar
  • Os refugiados da revolução russa _ uma história por contar
  • A história épica dos pilotos da II Grande Guerra
  • Valentine_ "a história da minha vida"

terça-feira, 28 de abril de 2020

A Janela


  
Texto de Olga Tokarczuk

                                                                             LÁ FORA 







Vista da janela da casa da escritora em Wroclaw, na Polónia Fotografia de Olga Tokarczuk
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande batalha de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando devagarinho à conclusão de que nada jamais será como era antes
TEXTO OLGA TOKARCZUK PRÉMIO NOBEL DE LITERATURA
Da minha janela vejo uma amoreira branca, uma árvore que me fascina e foi uma das razões pelas quais decidi morar aqui. A amoreira é uma planta generosa — durante toda a primavera e todo o verão, alimenta dezenas de famílias de aves com os seus frutos doces e sãos. Mas, nesta altura do ano, a amoreira não tem folhas, e, por isso, eu avisto um pedaço da rua, agora silenciosa, por onde raramente passa alguém a caminho do parque. O tempo em Wrocław é quase estival, brilha um sol que encandeia, o céu está azul e o ar limpo. Hoje, enquanto passeava com o cão, vi duas pegas a escorraçar uma coruja do ninho delas. Eu e a coruja olhámo-nos nos olhos a uma distância de um metro apenas.
Tenho a impressão de que os animais também se encontram na expectativa, aguardando aquilo que irá acontecer.
Para mim, já há muito tempo que havia mundo em demasia. Demasiado, demasiado acelerado, demasiado ruidoso.
Por conseguinte, não possuo o ‘trauma do isolamento’ e não sofro pelo facto de não poder encontrar-me com outras pessoas. Não lamento que os cinemas tenham sido encerrados; é-me indiferente que os centros comerciais não estejam abertos. Mas preocupo-me, sim, quando penso em todas as pessoas que ficaram sem trabalho. Quando tomei conhecimento da quarentena preventiva, senti uma espécie de alívio e sei que muitas pessoas pensam da mesma maneira, embora tenham vergonha de o dizer. A minha introversão, há muito estrangulada e maltratada pelas diretrizes dos extrovertidos hiperativos, sacudiu-se e saiu do armário.
Da janela, avisto o vizinho, um advogado, cheio de trabalho, que ainda há bem pouco tempo via sair de casa para o tribunal, logo de manhã, com a toga pendurada no ombro. Agora, vestido com um fato de treino folgado, luta contra um ramo — deve ter decidido dar um jeito ao seu jardim. Avisto um casal jovem que leva a passear o seu cão velhinho, o qual, desde o inverno, já mal consegue andar. O cão anda vacilando, e eles acompanham o seu passo pacientemente, caminhando muito devagarinho. E o camião de recolha de resíduos urbanos recolhe o lixo com grande estrondo.
A vida continua, claro, mas a um ritmo completamente diferente. Fiz arrumações no armário e levei os jornais já lidos para o contentor do papel. Recoloquei as plantas em novos vasos. Fui buscar à oficina a bicicleta que estava para consertar. Cozinhar dá-me prazer.
É com insistência que me ocorrem imagens da infância, quando havia muito mais tempo e era possível ‘desperdiçá-lo’, ficando horas a fio a olhar pela janela, a observar as formigas, deitada debaixo da mesa, imaginando estar dentro de uma arca. Ou, então, a ler a enciclopédia.
Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal? Afinal de contas, o vírus veio lembrar-nos aquilo que apaixonadamente negávamos — que somos seres frágeis, feitos da mais delicada matéria. Que morremos, que somos mortais.
Que não estamos separados do mundo através da nossa ‘humanidade’ e excecionalidade, que o mundo é antes uma espécie de grande rede, da qual somos cativos e onde estamos ligados a outros seres por linhas invisíveis de dependência e influência. Que dependemos uns dos outros e que, independentemente da distância dos países dos quais provimos, da língua que falamos e da cor da nossa pele, adoecemos da mesma maneira, sentimos medo da mesma maneira e da mesma maneira morremos.
Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?
Consciencializou-nos de que, independentemente de nos sentirmos fracos e indefesos perante o perigo, existem à nossa volta pessoas que são ainda mais fracas e precisam de ajuda. Fez-nos lembrar o quão frágeis são os nossos pais e avós, idosos, e o quanto eles precisam dos nossos cuidados.
Mostrou-nos que a nossa agitação frenética ameaça o mundo. E voltou a colocar-nos a pergunta que raramente tivemos coragem de colocar a nós próprios: o que é que, em verdade, procuramos?
Assim, o medo de adoecermos afastou-nos do nosso caminho sinuoso e, por força das circunstâncias, fez-nos lembrar a existência dos ninhos, dos quais provimos e onde nos sentimos em segurança. E mesmo se fôssemos grandes viajantes, numa situa­ção como esta, iríamos sempre ansiar por chegar a uma espécie de casa.
Deste modo, foram-nos reveladas tristes verdades — que, em momentos de perigo, o nosso pensamento volta a recorrer a categorias que encerram fronteiras e excluem nações. Neste difícil momento, verificou-se o quão frágil era na prática a ideia de uma comunidade europeia. A União Europeia perdeu a partida por desistência, delegando as decisões a tomar, em tempos de crise, a cada um dos Estados-membros. O encerrar das fronteiras nacionais é para mim o maior fracasso destes míseros tempos — voltaram os antigos egoísmos e as categorias ‘nós’ e ‘os estrangeiros’, ou seja, aquilo contra o qual lutámos durante os últimos anos, na esperança de que tal nunca mais formatasse as mentes.
O medo do vírus evocou automaticamente as mais simples convicções atávicas de que a culpa é dos estrangeiros, que sempre trazem ameaças, vindas de algures. Na Europa, o vírus vem ‘de algures’, não é nosso, é estrangeiro. Na Polónia, são suspeitos todos os que, agora, regressam do estrangeiro. A onda de fronteiras encerradas e os engarrafamentos monstruosos nos pontos de passagem de fronteira devem ter constituído um choque para muitos jovens. O vírus veio lembrar-nos — as fronteiras existem e estão em boa forma.
De igual modo, receio que o vírus depressa nos lembre de outra velha verdade — o quanto não somos iguais uns aos outros. Alguns de nós viajam em aviões particulares para a sua casa numa ilha ou para o seu refúgio numa floresta, enquanto outros permanecem nas cidades para prestar serviço nas centrais elétricas e nas estações de fornecimento de água. Outros, ainda, arriscam a vida, trabalhando em lojas e hospitais. Há quem lucre com a pandemia e há quem perca o trabalho de uma vida inteira. A crise que se avizinha irá certamente minar princípios que nos pareciam sólidos; muitos países não serão capazes de lidar com a situação e, perante a sua desintegração, surgirá uma nova ordem, como é costume depois das crises.
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande batalha de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando devagarinho à conclusão de que nada jamais será como era antes.
Esta situação de quarentena forçada e confinamento da família à casa poderá consciencializar-nos daquilo que não queríamos admitir — que a família nos incomoda, que os laços do casamento há muito afrouxaram. Os nossos filhos sairão da quarentena viciados na internet, e muitos de nós ficaremos cientes da falta de sentido e da infertilidade da situação, da qual somos mecanicamente cativos por força da inércia das circunstâncias. E se o número de homicídios, suicídios e doenças mentais aumentar?
Diante dos nossos olhos, dissipa-se, como fumaça, o paradigma civilizacional, que nos moldou durante os últimos duzentos anos —o de que somos senhores da criação, que podemos fazer tudo e que o mundo nos pertence.
Novos tempos se avizinham.
Tradução do polaco de Teresa Fernandes Swiatkiewicz


Viagens _ Olga Tokarczuk





A viagem enquanto peregrinação

por Mercês Coelho

Viagens é trabalho de patchwork de mão hábil, numa escrita invulgarmente poderosa onde sobressai um fio condutor inovador, quer nas circunstâncias espaciais de tempo e modo, quer na abordagem variada e peregrina que a autora propõe “num lugar em movimento, que avança pela escuridão e os leva pela noite fora, sem conhecerem ninguém e sem serem reconhecidos, saindo da sua própria vida para depois a ela regressarem, em segurança”.
A minha mãe, avós e tias, preenchiam os serões descosendo peças de vestuário gastas pelo uso, repetições, ou falta de préstimo, que talhavam em formas geométricas como, rectângulos, quadrados, hexágonos ou circunferências, ordenavam esteticamente, partindo dos tons claros para os escuros, para finalmente serem cosidas manualmente. Das sobras dos recortes desses tecidos, designados como “louquinhos”, também se formavam novas peças. Se não havia meios ou liberdade física ou cultural para outras mundividências, as mãos do mulherio, essas, bailavam produzindo ou inventando peças decorativas, ou de utilidades, de agasalho para camas, ou abafadores para aguentarem o calor das panelas.
Nos tempos da minha infância assim se mitigava a melancolia.
Extrapolando o meu imaginário concreto, encontro em Olga Tokarczuk a percepção duma solidão primordial, numa enxuta abordagem no capítulo A Psicologia da Ilha, dito assim“ O estádio da ilha é um estádio de socialização em que o homem, não tendo ainda sofrido qualquer influência do exterior, permanece dentro dos seus limites, numa espécie de autismo e narcisismo”.
Viagens resultou da tradução do título original “Bieguni”, uma seita nómada que exorcizava os malefícios decorrentes da obediência ou fixação em espaços ou objectos, que lhes impedissem uma liberdade total.
A Senhora Tokarczuk mete ombros a uma narrativa impressionante, estilhaçada, em capítulos curtos, uns que se presumem vivenciados subjectivamente, para depois se alongar noutros, em contextos e épocas passadas, ficcionando personagens, circunstâncias enigmáticas, interrompidas e logo reacendidas, numa lógica que não é fácil de percorrer, num permanente movimento como o de um “ rio, uma corrente, água que flui de lugar para lugar e cria redemoinhos e ondas“.
Fruto dos condicionamentos nacionais da sua pátria polaca, espartilhada e invadida por regimes políticos e económicos que a dominaram durante a história recente, a escritora indelevelmente influenciada por barreiras impostas, veio a exercer com voragem a liberdade de viajar, para percepcionar o mundo e o caldo de outras culturas, logo que em 1989 se possibilitou a abertura de fronteiras.
É selectiva na escolha da caminhada.
A autora não se conforma com as litanias de catálogos, ou dos pacotes de viagens turísticas massificadas, de que restam recordações de passagens fugazes que ocasionalmente são lembradas pelas fotos, souvenir, ou vislumbres de algo impressivo ou episódico, e bem assim, o senso de viajar para destinos, que podem ser “vazios e tristes”, ou que permaneçam “numa teimosa existência imota”, ou aquelas “sem jovialidade num mundo de brutalidade e de imundice”.
Questionando se a viagem se adequa ao conceito duma peregrinação, define-a pela negativa. Argumenta que a ida a lugares sagrados, nem confere santidade, nem a absolvição dos pecados.
Segundo ela a finalidade e a psicologia da viagem é o desejo, o qual permite a acção e o movimento humano. Usa da ciência e da física para viajar pelo interior do próprio corpo, com vista ao conhecimento aprofundado das características humanas.
Olga Tokarczuk dá mostras duma grande maturidade na abordagem das diferentes personagens transpostas para diferentes épocas históricas.
Destaco Annuszka que centraliza uma intensidade dramática muito feminina, dividida que se apresenta entre o poder e o querer. Entre o dever de cuidadora maternal que é, e o de alcançar uma desejada mobilidade sem horas nem prazos. Então, experimenta deambular no exterior, demorando-se num anonimato vazio, doloroso, após o que, esgotada e rendida, regressa a casa para atear o fogão e debruçar-se na cabeceira da cama do filho. Quão utópica e inalcançável é a liberdade sensorial. É uma outra solidão.
Se “peregrino é alguém que não precisa de partilhar em companhia o que encontra de invulgar ou belo numa viagem” Olga Tokarczuk assegura que “o objectivo da minha peregrinação é sempre encontrar outro peregrino”, “que a mudança é sempre melhor do que a estabilidade”.
Viagens é uma leitura inquietante que não se faz num fôlego, antes propõe à reflexão o quanto vale encontrar uma cor que nos preencha e nos impressione. É um esforço nunca acabado, um movimento ondulado, em que o sentido da existência não se esgota.
Será que nas entrelinhas a autora procura respostas numa abordagem duma dimensão espiritual, ou mística, quando diz que “só não podemos alcançar uma coisa, a imortalidade, e valha-nos Deus, de onde nos veio a ideia de sermos imortais?”

Graciosa, Abril de 2020
Maria das Mercês Coelho


O que penso é que a literatura é o que não parece literatura, o que não soa a belo. A literatura vai ao osso, nunca soa a literatura, soa a verdade. E procura uma verdade que não é a do jornalismo ou a da História, mas uma verdade diferente, moral, universal


                                                                      Javier Cercas (entrevista ao Expresso, Abril 2020)
                                     
VIAGENS
OLGA TOKARCZUK


por Maria João Leite de Castro


 Neste livro, a autora equaciona uma série de questões, não apenas sobre o sentido ou finalidade das viagens, os seus diferentes tipos, as características dos viajantes ou peregrinos mas, através delas, questões antropológicas que remetem para o sentido da nossa existência, para a procura da verdade e muitas outras questões filosóficas fundamentais.
Assim, como refere, Olga Tokarczuk, podemos viajar ao encontro de nós próprios (No curso, aprendemos que somos feitos de defesas, escudos, de armaduras, que somos cidades, cuja arquitectura é formada por muros, bastiões e fortificações e que somos estados repletos de «bunkers» -- pág.16). Podemos viajar pelo nosso corpo, pelos corpos dos outros, conservados em compostos químicos, e até por membros amputados, minuciosamente desenhados e cartografados. De que andamos à procura?
Viajamos também na procura da Verdade que, para a autora, se revela no que é aberrante, anómalo (É precisamente isto que me move pacientemente nas minhas viagens – rastrear erros de criação e desacertos da natureza - pág.20). Viajamos em busca de um “mistério trivial” que temos dificuldade em definir e que por vezes se ilude e se define com “apropriação”. Quando dizemos que “estivemos lá” significa que aquilo que eu vi, é meu? Ou viajamos porque nos tornamos aquilo em que participamos: sou aquilo que olho? (pag.151) O centro da viagem estará em mim ou no outro?
Viajamos porque desde pequenos a nossa índole ou natureza nos apontou o mundo e porque aderimos à mudança e ao movimento ao invés da estabilidade e da estagnação. É uma índole nómada, que não viaja para regressar a casa, mas encontra a sua energia no movimento da trepidação dos autocarros, da zoadeira dos aviões, da oscilação dos comboios e dos barcos (pag.12).
O viajante é, portanto e sobretudo,  um observador daquilo que flui, de outros viajantes, de histórias desconexas que se vão cruzando no caminho, no espaço e no tempo, histórias de fugas, de viagens outras…e,  por isso, as suas ocupações têm de ser voláteis e a sua escrita terá de retratar histórias incompletas, relatos oníricos, enredos confusos (pág.17).
Nessa procura incessante, o viajante não pode ficar preso a ideias pré-concebidas, a princípios estabelecidos ou axiomas inquestionáveis. Ele “viaja” pelas diferentes ideias, desfoca evidências, põe em causa ideias irrefutáveis (era um vício meu, uma perversa ginástica mental do meu cérebro – pág.18).
E assim, as histórias vão surgindo e desaparecendo, fluindo na vertigem do movimento, num registo semelhante aos Bieguni mas talvez ainda de uma forma mais radical, pois trespassam não só fronteiras geográficas, mas também temporais.
Neste fluir, destaco a história de Annuszka e de seu filho doente Pietia, um filho que a prende à casa, a sedentariza e atormenta. A sua viagem é uma fuga, uma rejeição que o corpo lhe provoca e a impede de a fazer retornar ao destino. Na estação de metro de Kiev, Annuszka encontra uma certa liberdade, mudando de linha, de carruagem, viajando durante o dia amparada pelo calor dos subterrâneos do metro. Tal como Galina, sente a liberdade do esquecimento, do despojamento.  Dorme sobre papelão de caixas, junto a um monte de carvão e experimenta uma alegria que já não sentia desde que era criança…
Mas a atracção de Annuszka por Galina, pela liberdade que ela proclama não pode, no entanto, realizar-se. Pelo filho, Pietia, qual Pietá, Annuszka está condenada a ficar presa a uma morada – Kouzretskaia, 46, apart. 78. Essa morada que, perante a polícia, a libertou da prisão, é também aquela que a aprisiona e a impede de ser, tal como Annuszka, um membro da seita Bieguni. É por isso obrigada a parar, a ter o seu lugar permanente no mundo, a ser “alfinetada como um insecto, o seu coração será trespassado por uma agulha de madeira, as suas mãos e pés serão furados e pregados às ombreiras das portas”.( pag.225).
A história de Annuszka – como tantas outras aqui retratadas - é um grito lancinante de dor. Não apenas pela circunstância familiar que a atormenta, mas uma dor muito mais abrangente que se estende ao mundo que a cerca, às diferentes prisões que a todos nos aprisionam. Como diz a enroupada da Seita dos Bieguni: vai ocupar a tua mente com coisas sem importância: o que comprar, o que vender, onde é mais barato, onde é mais caro. Vai fazer com que te preocupes só com ninharias – o preço da gasolina e o seu efeito na liquidação do empréstimo bancário. Viverás cada dia com grande sofrimento, como se vivesses por castigo, sem jamais saber qual o crime cometido, por quem, onde e quando. (pag.225).
É por isso, que viajamos procurando renascer, e desta vez, no tempo certo e no lugar certo.(pag.343)
                                                                                     Maria João Leite de Castro



O fascínio do corpo

por Conceição Rocha

Começo

Viajei na “Viagens” aos solavancos durante mais de 50 páginas até me integrar na paisagem de palavras que se ia sucedendo. Meio sonolenta e desinteressada, fui levada até um topos que finalmente me prendeu e é sobre esse – cuja responsabilidade de tratar assumi – que vou escrever um pouco, tão pouco quanto possível e quanto devo. Desculpem-me pelo fastidioso.

1.    O fascínio do corpo

Desde o início que Olga T. sugere que a viagem começa por ser um movimento do corpo que convoca músculos, sangue, ossos, pensamento. O corpo transporta-nos àquilo “de que andamos à procura”, transporta-nos a encontros que, no livro, são tão fragmentados, inconclusos, insólitos, formados por lapsos que acabam por encontrar um nexo – um corpo – tão multifacetado que quase não se consegue agarrar no seu movimento em ordem sabe-se lá a quê.
Num momento desse percurso o movimento entra em contradição consigo mesmo: é capturado e aprisionado em frascos, é empalhado, engarrafado, decorado com rendas e folhos, exibido na sua morte monstruosa em gabinetes de curiosidades. Foi, no livro, a viagem que mais me atraiu – pelos corpos monstruosos na sua anatomia defeituosa, dissecados com rigor e decorados por duas irmãs artistas que imagino de bisturi e caixa de costura num laboratório de Frankeinstein.
A inquietude dos séculos XVI e XVII sobre o mundo, o cosmos e tudo o que aí habita, levam alguns homens e possivelmente mulheres a ultrapassar toda a espécie de obstáculos para conhecer, conferir sentido às coisas e às relações entre elas. Desde logo perceberam que, a haver VERDADE, esta é oculta, precisa de método para se desvendar, de coragem para enfrentar os interditos e de paixão para não esmorecer na procura. É a viagem fascinante da modernidade que passa também por conhecer o corpo. Morto, para que se entenda como é o vivo, monstruoso e encenado para satisfazer o gosto da colecção, da posse de objecto raro, especial, requintado. Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo dissecaram clandestinamente cadáveres nos fundos recônditos das suas oficinas; Rembrandt imortalizou a “Lição de anatomia do dr. Tulp”; Vermeer, Rafael e tantos outros desenharam e esculpiram músculos e movimentos com tal rigor que só um profundo olhar pela anatomia tornaria possível. O corpo, na modernidade, fascina o artista e o cientista na sua autenticidade de vivo e de
cadáver, de tal modo que até anjos e arcanjos foram destituídos do seu misticismo gótico para exibir coxas, rabos exuberantes  e lábios lascivos, numa humanidade latejante e despudorada. O corpo é, antes de mais,” um mecanismo” (p. 176). Mesmo depois de amputado, a sua integridade permanece na dor fantasmática (como ocorre com a perna do dr. Philip Verheyen: “por que me doi algo que não existe”?(p. …)

2.    A ânsia de saber – o fascínio pelo corpo não é um fascínio pela Pessoa

O corpo – os corpos – nas mãos de Philip Verheyen, das filhas e do dr. Ruysch, são modelos mecânicos que, dissecados, engarrafados, acondicionados, deverão ajudar a compreender como Totam  naturam unum esse individuum. Com efeito, “era isso que realmente mais interessava [estes homens]: de que modo substâncias tão distintas como corpo e alma se unem em um corpo humano e interagem entre si?” (p. 181)[1]


3.    Uma pausa com os cadáveres, vamos aos vivos

Quem eram Philip Verheyen , o obcecado coleccionador de monstros e o dr. Ruysch, o académico anatomista?

Cirurgião flamengo, Philip Verheyen viveu entre 1617 e 1711 nos Países Baixos, hoje Bélgica. Formou-se em Artes Liberais na universidade de Luvaina em 1675 e prosseguiu com estudos de Teologia para se tornar padre. Um acidente ocasionou-lhe a gangrena e posterior amputação de uma perna (que amorosamente mergulhou num antisséptico por si criado). Na impossibilidade de ser padre (?), estudou medicina e foi professor de anatomia e cirurgia. O “Corporis humani anatomia”, de que foi autor, era um  manual de enorme reputação na época. A sua colecção de anormalidades anatómicas dissecadas, conservadas e decoradas com flores, conchas e rendas fez as delícias do próprio e seus discípulos e mais tarde de reis e príncipes. Um luxo possuir numa vitrina uns gemiosinhos siameses com duas cabeças descansando para a eternidade entre uma grinalda de florinhas, o útero de uma desgraçada acabada de enforcar por crime de infanticídio, um lagarto de duas caudas ou um homem negro empalhado, um cortesão cuja condição aristocrática não apagou o estigma racial. Francisco da Prússia ou o czar russo exibiram os horrores do dr. Verheyen com o fascínio pelo que, oriundo da mesma natureza, celebra a diferenças.
 










O dr. Frederic Ruysch, holandês (1638 – 1731) foi botânico, anatomista formado em Leiden e pioneiro em técnicas de preservação de órgãos e tecidos. Nutria a sua paixão pela anatomia pagando a coveiros que lhe trouxessem cadáveres recentemente falecidos. Demonstrou a existência de vasos sanguíneos em todos os tecidos do corpo e foi o primeiro a provar que os fetos se alimentam pelo cordão umbilical. Polemizou as teorias galénicas vigentes com grande êxito. A “Lição de anatomia do dr. Ruysch” , pintada em 1683 por Jan van Neck mostra-o esventrando o cadáver de uma criança, material muitíssimo abundante na época graças à imensa mortalidade infantil. Curiosamente, no quadro está presente um miúdo, o filho do dr. Ruysch, de 9 anos, com um brinquedo (preferido?) – um esqueletozinho.





4.    Epílogo, que o texto já vai longo

O meu tema – O fascínio do corpo - deveria também contemplar as sugestivas cartas da filha do aristocrata negro aos possuidores e exibidores do corpo de seu pai. O racismo, nessa época ainda sem nome mas na evidência da sua brutalidade ingénua. Outros lapsos de história – a viagem do coração de Chopin,  o génio frágil e sofredor, seriam também de figurar aqui na minha vitrina de corpos e frascos que, se me perturbaram a mim, talvez vos tenham também perturbado. A verdade é que só há pouco tempo – um ou dois anos – me apercebi que o corpo enquanto cadáver exerce um certo fascínio: é um objecto de descoberta, tão imenso e eficaz como uma carta geográfica o é de um espaço determinado. Tal aprendi com os drs. Verheyen e Ruysch de Olga T. e, antes mesmo, com os policiais da Fox Crime (que adoro) nos quais, em acético laboratório ou até no fundo de um barranco, um médico (geralmente uma médica) forense lê a vida inteira de uma vítima, ao contrário da cigana que lê a cina: o corpo morto só tem passado.

As minhas desculpas pelo tamanho do texto, mas a quarentena é má conselheira.



Chegada aqui, lembro o fabuloso “Obra ao negro” de Marguerite Yourcenar, com o seu inquietadíssimo Zenão/Boherave médico, cientista, filósofo.


                                   Em prisão domiciliária mas não conservada em formol,
Porto, 20 de Abril de 2020,
Conceição




Viagens
Olga Tokarczuc

A verdadeira plastinação

por Alexandra Azevedo



Tenho apenas alguns anos, estou sentada no parapeito da janela, observo o pátio frio. As luzes da cozinha da escola estão desligadas. Já se foram todos embora. As lajes de betão do pátio mergulharam na escuridão e deixei de as ver. Portas fechadas, toldos recolhidos, estores descidos. Queria sair, mas não tenho para onde ir. Somente a minha presença adquire agora contornos bem definidos, contornos que estremecem, ondulam, e isso dói. E, subitamente, descubro a verdade: não há nada a fazer_ existo. (p 7)
É com a epifania da sua própria existência, ocorrida na infância, que a  autora inaugura “Viagens”. A compreensão súbita e surpreendente dessa verdade essencial com o que ela tem de irremediável e solitário, constitui o momento fundador da narrativa de uma viagem, de uma   peregrinação, que é comum a todos os homens, cujo ponto de chegada é também o mesmo para todos e em que todos carregam uma única e mesma bagagem, o próprio corpo.  Quem inventou o corpo humano? E, nesta sequência, quem detém sobre ele os eternos direitos de autor? (p 111)
O rio Oder, lugar da sua primeira fuga peregrina, ainda em criança, um rio irregular, sempre em movimento e imprevisível, é a metáfora da própria vida porque  apesar de todos os perigos,, tudo o que está em movimento é sempre melhor do que aquilo que está em repouso, (…) a mudança é mais nobre do que a estabilidade, (…) tudo o que estagna acabará por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo que está em movimento consegue durar eternamente. (p 9)
Durar eternamente. O grande, o único desiderato.
Para o conseguir é necessário evitar a decomposição do corpo, afinal a única coisa que verdadeiramente possuímos. O doutor Blau, por exemplo, considera que Todo o corpo humano merecia ser preservado. É um escândalo que seja tão frágil e delicado. É um escândalo deixá-lo decompor-se debaixo da terra ou entregá-lo às chamas como quem queima lixo. (p 114) Por isso, se interessa pela técnica inovadora de conservação por plastinação à base de silicone que permite que os tecidos preservem a sua cor natural e uma certa plasticidade e, para ele, num mundo mais justo, não seriam apenas os ricos a poderem dar-se ao luxo de serem embalsamados.
Durar eternamente.  
Para o conseguir é necessário estar sempre em movimento,  viajar incessantemente como Ulisses, num movimento perpétuo que perpetuamente evitaria a chegada à meta. Mas talvez não exista qualquer movimento e talvez não exista meta como diz o professor especialista em cultura helénica _ Na realidade, não existe qualquer movimento. É como a tartaruga de Zenão. Nós não avançamos para lugar nenhum, apenas nos movemos para o interior de um momento e, assim sendo, não existe qualquer limite ou meta. E o mesmo princípio poder-se-á  aplicar ao espaço _ já que todos estamos igualmente distantes do infinito, então também não existe qualquer «algures»_ ninguém está confinado a um determinado momento ou a um determinado lugar (p 328)
Ou talvez haja um outro modo de ultrapassar  a relação sempre tensa e dúbia entre tempo e espaço. Se para o doutor Blau o mundo poderia ter sido criado de outra forma: a alma poderia ser mortal_ afinal de contas, para que serve a alma, _mas o corpo seria imortal,  para o escritor é a alma que importa preservar. E a plastinação da alma faz-se com o silicone das palavras. E tal como para preservar um corpo é preciso retalhar e esventrar também a escrita precisa de aventais de açougueiro, botas de borracha e, na mão, uma faca para estripar. (p 17) A faca do escritor é a esferográfica  com que discretamente tira apontamentos do mundo que o rodeia em qualquer espaço, em qualquer aeroporto porque todo o escritor é um viajante. Não se envergonhem _ estou a pensar nos outros , naqueles que estão à espera que as portas de embarque se abram_ saquem dos vossos diários e escrevam. Afinal de contas, há muita gente, como nós, a tirar apontamentos. Não deixamos ninguém perceber que olhamos uns para os outros; não levantamos os olhos acima dos nossos sapatos. Iremos tomar notas uns sobre os outros _ é a maneira mais segura de comunicarmos. Iremos transformar-nos mutuamente em letras e iniciais, eternizar-nos em folhas de papel, plastinar-nos e mergulhar-nos no formaldeído das frases (p 342)  
Assim, ao responder às perguntas Para onde vão? E para quê? como fazem  as hospedeiras antes do embarque, é a escrita literária que  verdadeiramente produz um perpétuo movimento de renascimento sem qualquer limite ou meta. Pela escrita entramos num voo em que as hospedeiras, lindas como anjos, conferem a nossa habilitação para viajar e, com um gesto suave, autorizam-nos a mergulhar nas formas arredondadas e macias do túnel alcatifado que nos leva até ao interior do avião que, por sua vez, nos levará por um caminho aéreo e frio rumo a novos mundos. (p 343)  Mas aqui o nosso passaporte e o nosso bilhete de embarque são a  capacidade de nos deixar-nos transportar pelas formas arredondadas da linguagem literária e, assim, podermos viajar para mundos imaginários porque Nos sorrisos destas hospedeiras, esconde-se _ assim nos parece_ a promessa de que talvez possamos renascer e, desta vez, no tempo certo e no lugar certo. (p 343)
Alexandra Azevedo
20 de Abril de 2020  


A estrutura da obra: Tokarczuk e Garrett


por António Nabais

Entra o leitor no livro, começa a ver subtítulos (ou serão só títulos?) e cai na tentação de ir à procura de um índice. Apenas existe o dos mapas e das imagens. Para quem vai à procura de arrumação, começamos mal.
Na realidade, se entendermos estrutura como organização interna da obra, se estivermos à procura das ligações, é fácil perdermo-nos no caminho.
O livro, de muito difícil classificação, diga-se, é um amontoado de narrativas, pequenos ensaios e anotação, como se fosse um caderno de apontamentos, com mudanças abruptas de tempos e de espaços.

O título original já anuncia esta des-estruturação, esta desarrumação. É, a propósito extremamente interessante ler as opiniões dos tradutores para catalão e para castelhano (https://www.lavanguardia.com/vida/20191014/47952611495/un-titulo-intraducible.html). Independentemente das discordâncias, a ideia de movimento está sempre presente. Numa espécie de alinhamento astral, sabe-se que a autora soube do Prémio Nobel quando estava em viagem.
A escrita do livro é, assim, uma viagem em que a preocupação não é o destino, mas a viagem em si, uma busca propositadamente interminável, metáfora, talvez, da própria vida, esse desencontro permanente que julgamos conseguir organizar, mas que é feita de fragmentos. Na p. 49, o narrador exprime-se na primeira pessoa do singular, anunciando que a viagem serve para não estar: “Quando viajo desapareço do mapa. Ninguém sabe onde estou. Se estou no ponto de partida ou se estou já no ponto de chegada.” ‘Ninguém’ pode ser também uma referência ao próprio sujeito da enunciação.
As nossas Viagens, as que se passam na nossa terra, pela pena de Garrett, assumem também um carácter aparentemente fragmentário, com uma mistura de níveis narrativos com reflexões pessoais, também na primeira pessoa, também num triângulo que liga espaço, tempo e reflexão pessoal.
Como autor romântico que era, ainda que a contragosto, Garrett, no entanto, nunca larga a mão do leitor, explicando-nos ligações e anunciando intenções. Tokaczuk deixa-nos sempre desamparados diante da surpresa de narrativas que vão sendo retomadas, não se sabe quando ou onde, numa viagem que não pode ser planeada, ao sabor de ocorrências que não se dominam. Não por acaso, o último mapa é o da viagem de Ulisses, o grande viajante, a vítima das circunstâncias e um dos primeiros heróis a distinguir-se pela capacidade de reflectir.