As promessas são para cumprir
por Alexandra Azevedo
“A Promessa”, no original “La
Promesse de l’Aube” é uma narrativa paradoxal como , aliás, todas
as autobiografias são pois, ao contrário
do diário íntimo, uma autobiografia é
simultaneamente retrospectiva quanto à voz e contemporânea quanto à
perspectiva. Além disso, autodiegética por inerência à sua especificidade, a
narrativa autobiográfica estabelece com o leitor um pacto tácito de sinceridade
também ele paradoxal na medida em que
todo o autor autobiográfico é, simultaneamente, um actor que desempenha o seu papel com o
distanciamento que o desempenho de um papel teatral, inevitavelmente, exige.
É, assim, da praia deserta de Big Sur, na Califórnia
e da perspectiva dos seus 44 anos que o
narrador inicia a história da sua vida: “Ainda hoje, mais de vinte anos
passados”; “hoje, que já vivi, ao cabo da minha corrida”...Mas mais do que
a história da sua vida, é a história da vida que a mãe sonhara para ele e que ele
prometera a si próprio viver para não a desiludir que vai narrar. Tinha de ser
um grande homem. Não havia como escapar a essa sina desde que percebera que se
só ele é que comia bife era porque não havia dinheiro para mais e não porque a
mãe só gostasse de legumes, como esta afirmava.
Big Sur _ Califórnia |
E, na verdade, ser um grande homem é,
à partida, a condição essencial para
escrever uma autobiografia porque
escrever e publicar a narrativa da
sua própria vida não esteve sempre no horizonte de possibilidades de qualquer
um. O género autobiográfico circunscrevia-se à auto-representação do homem de
elite, branco e de algum modo notável. O estabelecimento das regras de género
da autobiografia baseava-se nas obras de Rousseau ou Henry Adams e nessa linha
inscrevia-se numa política de conservação de hierarquias de identidade em
termos de classe social, sexo e raça que privilegiava a visão ocidental e
androcêntrica do mundo.
No
entanto, apesar de ser homem e de ser
branco, o autor, imigrante e de obscuras
origens russa e judia, não deixava de ser percebido como o Outro, isto é,
aquele que na ordem simbólica dominante, é visto negativamente. O romance foi
publicado pelas Éditions Gallimard em 1960 e só cerca de uma década e meia mais tarde, com o advento do pós-modernismo e
a correspondente compressão do tempo e do espaço, é que se assistiu à expansão
do cânone da autobiografia o que veio
permitir àqueles que na cultura
ocidental são percebidos através de uma marca
simbólica negativa, representar-se a si próprios e fazer ouvir a sua própria
voz. Deste modo, o sujeito autobiográfico não homem, não branco, não
ocidentalizado, não famoso, não heterossexual passou a ter, sobretudo a partir
da década de setenta, o direito a ver a sua autobiografia publicada e proliferou,
então, a publicação de autobiografias de mulheres, de imigrantes, de lésbicas e
de gays, tendo-se inclusivamente tornado objecto do interesse de estudos académicos.
Por
isso, Romain Gary teve mesmo de inventar
o seu nome pa
ra
ser aceite no universo literário. Aliás, a questão da escolha do nome é narrada
com muito humor pelo autor, pondo em relevo a perspicácia da mãe que sabia com
uma certeza inabalável que um nome russo lhe seria um entrave intransponível.
“
_ Roland de Chantecler, Romain de Mysore…
_
É talvez preferível um nome sem partícula, pode ainda haver uma revolução_
dizia minha mãe”
Nina
Borisovskaia, com o espírito de sobrevivência que a experiência pessoal lhe
trouxera, intuíra décadas antes da
falência, ainda não assumida, da generosa ideia da integração trazida pelo
multiculturalismo primeiro e pelo interculturalismo depois, que a assimilação
era o único modelo possível para o imigrante triunfar. O seu filho seria, pois, mais francês que qualquer um nascido em França
no seio de uma família francesa tradicional.
“A
minha mãe falava-me da França como outras mães falam da Branca de Neve ou do
Gato das Botas e, apesar de todos os meus esforços, nunca pude desembaraçar-me
inteiramente dessa imagem feérica duma França de heróis e de virtudes
exemplares. Sou talvez um dos raros homens do mundo que se manteve fiel a um
conto de fadas.” (42)
Embaixador
da França, escritor famoso, (prémio Gocourt em 1956) o autor é, no entanto, uma
personagem triste a desempenhar brilhantemente o papel de triunfador que a mãe
lhe destinara, mas que parece não sentir como verdadeiramente seu. E, assim, há uma melancolia constante a percorrer o romance,
uma melancolia que o humor, também
permanente, não consegue esconder e, afinal, aquelas que conta como as grandes
realizações da sua vida são pequenas grandes coisas como salvar um pássaro
preso numa sala ou dar um pontapé a tempo num caçador que estava a visar uma
gazela imóvel no meio da estrada.
“E
muitas vezes, como hoje, chego a sentir-me feliz, deitado na praia de Big Sur,
ao crepúsculo cinzento e vaporoso, enquanto o grito longínquo das focas chega
até mim e me basta erguer a cabeça para ver o oceano”
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