segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Promessa

 

As promessas são para cumprir


por Alexandra Azevedo

 

 

“A Promessa”, no original “La Promesse de l’Aube” é uma narrativa paradoxal como , aliás,   todas as autobiografias são pois,  ao contrário do diário íntimo, uma autobiografia é  simultaneamente retrospectiva quanto à voz e contemporânea quanto à perspectiva. Além disso, autodiegética por inerência à sua especificidade, a narrativa autobiográfica estabelece com o leitor um pacto tácito de sinceridade também ele paradoxal na medida em que  todo o autor autobiográfico é, simultaneamente, um actor  que desempenha o seu papel com o distanciamento que o desempenho de um papel teatral, inevitavelmente, exige.

É, assim,  da praia deserta de Big Sur, na Califórnia e  da perspectiva dos seus 44 anos que o narrador inicia a história da sua vida: “Ainda hoje, mais de vinte anos passados”; “hoje, que já vivi, ao cabo da minha corrida”...Mas mais do que a história da sua vida, é a história da  vida que a mãe sonhara para ele e que ele prometera a si próprio viver para não a desiludir que vai narrar. Tinha de ser um grande homem. Não havia como escapar a essa sina desde que percebera que se só ele é que comia bife era porque não havia dinheiro para mais e não porque a mãe só gostasse de legumes, como esta  afirmava.

Big Sur _ Califórnia 



E, na verdade, ser um grande homem é, à partida, a condição essencial para   escrever uma autobiografia porque

escrever e publicar a narrativa da sua própria vida não esteve sempre no horizonte de possibilidades de qualquer um. O género autobiográfico circunscrevia-se à auto-representação do homem de elite, branco e de algum modo notável. O estabelecimento das regras de género da autobiografia baseava-se nas obras de Rousseau ou Henry Adams e nessa linha inscrevia-se numa política de conservação de hierarquias de identidade em termos de classe social,  sexo e  raça que privilegiava a visão ocidental e androcêntrica  do mundo.

No entanto, apesar de ser  homem e de ser branco, o autor,  imigrante e de obscuras origens russa e judia, não deixava de ser percebido como o Outro, isto é, aquele que na ordem simbólica dominante, é visto negativamente. O romance foi publicado pelas Éditions Gallimard em 1960 e só cerca de uma  década e meia  mais tarde, com o advento do pós-modernismo e a correspondente compressão do tempo e do espaço, é que se assistiu à expansão do cânone da autobiografia  o que veio permitir àqueles  que na cultura ocidental são percebidos  através de uma marca simbólica negativa, representar-se a si próprios e fazer ouvir a sua própria voz. Deste modo, o sujeito autobiográfico não homem, não branco, não ocidentalizado, não famoso, não heterossexual passou a ter, sobretudo a partir da década de setenta, o direito a ver a sua autobiografia publicada e proliferou, então, a publicação de autobiografias de mulheres, de imigrantes, de lésbicas e de gays, tendo-se inclusivamente tornado objecto do  interesse de estudos académicos.

Por isso,  Romain Gary teve mesmo de inventar o seu nome pa

ra ser aceite no universo literário. Aliás, a questão da escolha do nome é narrada com muito humor pelo autor, pondo em relevo a perspicácia da mãe que sabia com uma certeza inabalável que um nome russo lhe seria um entrave intransponível.

“ _ Roland de Chantecler, Romain de Mysore…

_ É talvez preferível um nome sem partícula, pode ainda haver uma revolução_ dizia minha mãe”

Nina Borisovskaia, com o espírito de sobrevivência que a experiência pessoal lhe trouxera,  intuíra décadas antes   da falência, ainda não assumida, da generosa ideia da integração trazida pelo multiculturalismo primeiro e pelo interculturalismo depois, que a assimilação era o único modelo possível para o imigrante triunfar.  O seu filho seria, pois,  mais francês que qualquer um nascido em França no seio de uma família francesa tradicional.

“A minha mãe falava-me da França como outras mães falam da Branca de Neve ou do Gato das Botas e, apesar de todos os meus esforços, nunca pude desembaraçar-me inteiramente dessa imagem feérica duma França de heróis e de virtudes exemplares. Sou talvez um dos raros homens do mundo que se manteve fiel a um conto de fadas.” (42)

Embaixador da França, escritor famoso, (prémio Gocourt em 1956) o autor é, no entanto, uma personagem triste a desempenhar brilhantemente o papel de triunfador que a mãe lhe destinara, mas que parece não sentir como  verdadeiramente  seu. E, assim, há  uma melancolia constante a percorrer o romance, uma melancolia  que o humor, também permanente, não consegue esconder e, afinal, aquelas que conta como as grandes realizações da sua vida são pequenas grandes coisas como salvar um pássaro preso numa sala ou dar um pontapé a tempo num caçador que estava a visar uma gazela imóvel no meio da estrada.

  “E muitas vezes, como hoje, chego a sentir-me feliz, deitado na praia de Big Sur, ao crepúsculo cinzento e vaporoso, enquanto o grito longínquo das focas chega até mim e me basta erguer a cabeça para ver o oceano”


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