A viagem enquanto peregrinação
por Mercês Coelho
Viagens é trabalho de patchwork de mão hábil, numa escrita invulgarmente poderosa
onde sobressai um fio condutor inovador, quer nas circunstâncias espaciais de
tempo e modo, quer na abordagem variada e peregrina que a autora propõe “num lugar em movimento, que avança pela
escuridão e os leva pela noite fora, sem conhecerem ninguém e sem serem
reconhecidos, saindo da sua própria vida para depois a ela regressarem, em
segurança”.
A minha mãe, avós e tias,
preenchiam os serões descosendo peças de vestuário gastas pelo uso, repetições,
ou falta de préstimo, que talhavam em formas geométricas como, rectângulos,
quadrados, hexágonos ou circunferências, ordenavam esteticamente, partindo dos
tons claros para os escuros, para finalmente serem cosidas manualmente. Das
sobras dos recortes desses tecidos, designados como “louquinhos”, também se
formavam novas peças. Se não havia meios ou liberdade física ou cultural para
outras mundividências, as mãos do mulherio, essas, bailavam produzindo ou
inventando peças decorativas, ou de utilidades, de agasalho para camas, ou
abafadores para aguentarem o calor das panelas.
Extrapolando o meu
imaginário concreto, encontro em Olga Tokarczuk a percepção duma solidão
primordial, numa enxuta abordagem no capítulo A Psicologia da Ilha, dito assim“
O estádio da ilha é um estádio de socialização
em que o homem, não tendo ainda sofrido qualquer influência do exterior,
permanece dentro dos seus limites, numa espécie de autismo e narcisismo”.
Viagens resultou da tradução do título original “Bieguni”, uma seita nómada que exorcizava
os malefícios decorrentes da obediência ou fixação em espaços ou objectos, que
lhes impedissem uma liberdade total.
A Senhora Tokarczuk mete
ombros a uma narrativa impressionante, estilhaçada, em capítulos curtos, uns que
se presumem vivenciados subjectivamente, para depois se alongar noutros, em
contextos e épocas passadas, ficcionando personagens, circunstâncias enigmáticas,
interrompidas e logo reacendidas, numa lógica que não é fácil de percorrer, num
permanente movimento como o de um “ rio,
uma corrente, água que flui de lugar para lugar e cria redemoinhos e ondas“.
Fruto dos
condicionamentos nacionais da sua pátria polaca, espartilhada e invadida por
regimes políticos e económicos que a dominaram durante a história recente, a
escritora indelevelmente influenciada por barreiras impostas, veio a exercer com
voragem a liberdade de viajar, para percepcionar o mundo e o caldo de outras
culturas, logo que em 1989 se possibilitou a abertura de fronteiras.
É selectiva na escolha da
caminhada.
A autora não se conforma
com as litanias de catálogos, ou dos pacotes de viagens turísticas massificadas,
de que restam recordações de passagens fugazes que ocasionalmente são lembradas
pelas fotos, souvenir, ou vislumbres de algo impressivo ou episódico, e bem
assim, o senso de viajar para destinos, que podem ser “vazios e tristes”, ou que permaneçam “numa teimosa existência imota”, ou aquelas “sem jovialidade num mundo de brutalidade e de imundice”.
Questionando se a viagem se
adequa ao conceito duma peregrinação, define-a pela negativa. Argumenta que a
ida a lugares sagrados, nem confere santidade, nem a absolvição dos pecados.
Segundo ela a finalidade
e a psicologia da viagem é o desejo, o qual permite a acção e o movimento
humano. Usa da ciência e da física para viajar pelo interior do próprio corpo, com
vista ao conhecimento aprofundado das características humanas.
Olga Tokarczuk dá mostras
duma grande maturidade na abordagem das diferentes personagens transpostas para
diferentes épocas históricas.
Destaco Annuszka que centraliza
uma intensidade dramática muito feminina, dividida que se apresenta entre o
poder e o querer. Entre o dever de cuidadora maternal que é, e o de alcançar uma
desejada mobilidade sem horas nem prazos. Então, experimenta deambular no
exterior, demorando-se num anonimato vazio, doloroso, após o que, esgotada e
rendida, regressa a casa para atear o fogão e debruçar-se na cabeceira da cama
do filho. Quão utópica e inalcançável é a liberdade sensorial. É uma outra
solidão.
Se “peregrino é alguém que não precisa de partilhar em companhia o que encontra
de invulgar ou belo numa viagem” Olga Tokarczuk assegura que “o objectivo da minha peregrinação é sempre
encontrar outro peregrino”, “que a mudança é sempre melhor do que a
estabilidade”.
Viagens é uma leitura inquietante que não se faz num fôlego, antes propõe à
reflexão o quanto vale encontrar uma cor que nos preencha e nos impressione. É
um esforço nunca acabado, um movimento ondulado, em que o sentido da existência
não se esgota.
Será que nas entrelinhas
a autora procura respostas numa abordagem duma dimensão espiritual, ou mística,
quando diz que “só não podemos alcançar
uma coisa, a imortalidade, e valha-nos Deus, de onde nos veio a ideia de sermos
imortais?”
Graciosa, Abril de 2020
Maria das Mercês Coelho
O que penso é que a literatura é o que não
parece literatura, o que não soa a belo. A literatura vai ao osso, nunca soa a
literatura, soa a verdade. E procura uma verdade que não é a do jornalismo ou a
da História, mas uma verdade diferente, moral, universal
Javier Cercas (entrevista ao Expresso, Abril
2020)
VIAGENS
OLGA
TOKARCZUK
por Maria João Leite de Castro
Neste livro, a autora equaciona uma série de
questões, não apenas sobre o sentido ou finalidade das viagens, os seus
diferentes tipos, as características dos viajantes ou peregrinos mas, através
delas, questões antropológicas que remetem para o sentido da nossa existência,
para a procura da verdade e muitas outras questões filosóficas fundamentais.
Assim,
como refere, Olga Tokarczuk, podemos viajar ao encontro de nós próprios (No
curso, aprendemos que somos feitos de defesas, escudos, de armaduras, que somos
cidades, cuja arquitectura é formada por muros, bastiões e fortificações e que
somos estados repletos de «bunkers» -- pág.16). Podemos viajar pelo nosso
corpo, pelos corpos dos outros, conservados em compostos químicos, e até por
membros amputados, minuciosamente desenhados e cartografados. De que andamos à procura?
Viajamos
também na procura da Verdade que, para a autora, se revela no que é aberrante,
anómalo (É precisamente isto que me move pacientemente nas minhas viagens –
rastrear erros de criação e desacertos da natureza - pág.20). Viajamos em
busca de um “mistério trivial” que temos dificuldade em definir e que por vezes
se ilude e se define com “apropriação”. Quando dizemos que “estivemos lá”
significa que aquilo que eu vi, é meu? Ou viajamos porque nos tornamos aquilo
em que participamos: sou aquilo que olho? (pag.151) O centro da viagem
estará em mim ou no outro?
Viajamos
porque desde pequenos a nossa índole ou natureza nos apontou o mundo e porque
aderimos à mudança e ao movimento ao invés da estabilidade e da estagnação. É
uma índole nómada, que não viaja para regressar a casa, mas encontra a sua
energia no movimento da trepidação dos autocarros, da zoadeira dos aviões, da
oscilação dos comboios e dos barcos (pag.12).
O
viajante é, portanto e sobretudo, um
observador daquilo que flui, de outros viajantes, de histórias desconexas que
se vão cruzando no caminho, no espaço e no tempo, histórias de fugas, de
viagens outras…e, por isso, as suas
ocupações têm de ser voláteis e a sua escrita terá de retratar histórias
incompletas, relatos oníricos, enredos confusos (pág.17).
Nessa
procura incessante, o viajante não pode ficar preso a ideias pré-concebidas, a
princípios estabelecidos ou axiomas inquestionáveis. Ele “viaja” pelas
diferentes ideias, desfoca evidências, põe em causa ideias irrefutáveis (era
um vício meu, uma perversa ginástica mental do meu cérebro – pág.18).
E
assim, as histórias vão surgindo e desaparecendo, fluindo na vertigem do
movimento, num registo semelhante aos Bieguni mas talvez ainda de uma
forma mais radical, pois trespassam não só fronteiras geográficas, mas também
temporais.
Neste
fluir, destaco a história de Annuszka e de seu filho doente Pietia, um filho
que a prende à casa, a sedentariza e atormenta. A sua viagem é uma fuga, uma
rejeição que o corpo lhe provoca e a impede de a fazer retornar ao destino. Na
estação de metro de Kiev, Annuszka encontra uma certa liberdade, mudando de
linha, de carruagem, viajando durante o dia amparada pelo calor dos
subterrâneos do metro. Tal como Galina, sente a liberdade do esquecimento, do
despojamento. Dorme sobre papelão de
caixas, junto a um monte de carvão e experimenta uma alegria que já não sentia
desde que era criança…
Mas
a atracção de Annuszka por Galina, pela liberdade que ela proclama não pode, no
entanto, realizar-se. Pelo filho, Pietia, qual Pietá, Annuszka está condenada a
ficar presa a uma morada – Kouzretskaia, 46, apart. 78. Essa morada que,
perante a polícia, a libertou da prisão, é também aquela que a aprisiona e a
impede de ser, tal como Annuszka, um membro da seita Bieguni. É por isso
obrigada a parar, a ter o seu lugar permanente no mundo, a ser “alfinetada
como um insecto, o seu coração será trespassado por uma agulha de madeira, as
suas mãos e pés serão furados e pregados às ombreiras das portas”.( pag.225).
A
história de Annuszka – como tantas outras aqui retratadas - é um grito lancinante
de dor. Não apenas pela circunstância familiar que a atormenta, mas uma dor
muito mais abrangente que se estende ao mundo que a cerca, às diferentes
prisões que a todos nos aprisionam. Como diz a enroupada da Seita dos Bieguni:
vai ocupar a tua mente com coisas sem importância: o que comprar, o que vender,
onde é mais barato, onde é mais caro. Vai fazer com que te preocupes só com
ninharias – o preço da gasolina e o seu efeito na liquidação do empréstimo
bancário. Viverás cada dia com grande sofrimento, como se vivesses por castigo,
sem jamais saber qual o crime cometido, por quem, onde e quando. (pag.225).
É
por isso, que viajamos procurando renascer, e desta vez, no tempo certo e no
lugar certo.(pag.343)
Maria João Leite de Castro
O fascínio do corpo
por Conceição Rocha
Começo
Viajei na “Viagens” aos solavancos durante
mais de 50 páginas até me integrar na paisagem de palavras que se ia sucedendo.
Meio sonolenta e desinteressada, fui levada até um topos que finalmente
me prendeu e é sobre esse – cuja responsabilidade de tratar assumi – que vou
escrever um pouco, tão pouco quanto possível e quanto devo. Desculpem-me pelo
fastidioso.
1. O fascínio do corpo
Desde o início que Olga T. sugere que
a viagem começa por ser um movimento do corpo que convoca músculos, sangue,
ossos, pensamento. O corpo transporta-nos àquilo “de que andamos à procura”,
transporta-nos a encontros que, no livro, são tão fragmentados, inconclusos,
insólitos, formados por lapsos que acabam por encontrar um nexo – um corpo –
tão multifacetado que quase não se consegue agarrar no seu movimento em ordem
sabe-se lá a quê.
Num momento desse percurso o
movimento entra em contradição consigo mesmo: é capturado e aprisionado em
frascos, é empalhado, engarrafado, decorado com rendas e folhos, exibido na sua
morte monstruosa em gabinetes de curiosidades. Foi, no livro, a viagem que mais
me atraiu – pelos corpos monstruosos na sua anatomia defeituosa, dissecados com
rigor e decorados por duas irmãs artistas que imagino de bisturi e caixa de
costura num laboratório de Frankeinstein.
A inquietude dos
séculos XVI e XVII sobre o mundo, o cosmos e tudo o que aí habita, levam alguns
homens e possivelmente mulheres a ultrapassar toda a espécie de obstáculos para
conhecer, conferir sentido às coisas e às relações entre elas. Desde logo
perceberam que, a haver VERDADE, esta é oculta, precisa de método para se
desvendar, de coragem para enfrentar os interditos e de paixão para não
esmorecer na procura. É a viagem fascinante da modernidade que passa também por
conhecer o corpo. Morto, para que se entenda como é o vivo, monstruoso e
encenado para satisfazer o gosto da colecção, da posse de objecto raro,
especial, requintado. Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo dissecaram
clandestinamente cadáveres nos fundos recônditos das suas oficinas; Rembrandt
imortalizou a “Lição de anatomia do dr. Tulp”; Vermeer, Rafael e tantos outros
desenharam e esculpiram músculos e movimentos com tal rigor que só um profundo
olhar pela anatomia tornaria possível. O corpo, na modernidade, fascina o
artista e o cientista na sua autenticidade de vivo e de
cadáver, de tal modo que até anjos e
arcanjos foram destituídos do seu misticismo gótico para exibir coxas, rabos
exuberantes e lábios lascivos, numa
humanidade latejante e despudorada. O corpo é, antes de mais,” um mecanismo”
(p. 176). Mesmo depois de amputado, a sua integridade permanece na dor
fantasmática (como ocorre com a perna do dr. Philip Verheyen: “por que me doi
algo que não existe”?(p. …)
2. A ânsia de saber – o fascínio pelo
corpo não é um fascínio pela Pessoa
O corpo – os corpos – nas mãos de
Philip Verheyen, das filhas e do dr. Ruysch, são modelos mecânicos que,
dissecados, engarrafados, acondicionados, deverão ajudar a compreender como Totam naturam unum esse individuum. Com efeito,
“era isso que realmente mais interessava [estes homens]: de que modo
substâncias tão distintas como corpo e alma se unem em um corpo humano e
interagem entre si?” (p. 181)[1]
3. Uma pausa com os cadáveres, vamos aos
vivos
Quem eram Philip Verheyen , o
obcecado coleccionador de monstros e o dr. Ruysch, o académico anatomista?
Cirurgião flamengo, Philip Verheyen
viveu entre 1617 e 1711 nos Países Baixos, hoje Bélgica. Formou-se em Artes
Liberais na universidade de Luvaina em 1675 e prosseguiu com estudos de
Teologia para se tornar padre. Um acidente ocasionou-lhe a gangrena e posterior
amputação de uma perna (que amorosamente mergulhou num antisséptico por si
criado). Na impossibilidade de ser padre (?), estudou medicina e foi professor
de anatomia e cirurgia. O “Corporis humani anatomia”, de que foi autor,
era um manual de enorme reputação na
época. A sua colecção de anormalidades anatómicas dissecadas, conservadas e
decoradas com flores, conchas e rendas fez as delícias do próprio e seus
discípulos e mais tarde de reis e príncipes. Um luxo possuir numa vitrina uns
gemiosinhos siameses com duas cabeças descansando para a eternidade entre uma
grinalda de florinhas, o útero de uma desgraçada acabada de enforcar por crime
de infanticídio, um lagarto de duas caudas ou um homem negro empalhado, um
cortesão cuja condição aristocrática não apagou o estigma racial. Francisco da
Prússia ou o czar russo exibiram os horrores do dr. Verheyen com o fascínio
pelo que, oriundo da mesma natureza, celebra a diferenças.
O dr. Frederic Ruysch, holandês (1638
– 1731) foi botânico, anatomista formado em Leiden e pioneiro em técnicas de
preservação de órgãos e tecidos. Nutria a sua paixão pela anatomia pagando a
coveiros que lhe trouxessem cadáveres recentemente falecidos. Demonstrou a
existência de vasos sanguíneos em todos os tecidos do corpo e foi o primeiro a
provar que os fetos se alimentam pelo cordão umbilical. Polemizou as teorias
galénicas vigentes com grande êxito. A “Lição de anatomia do dr. Ruysch” ,
pintada em 1683 por Jan van Neck mostra-o esventrando o cadáver de uma criança,
material muitíssimo abundante na época graças à imensa mortalidade infantil.
Curiosamente, no quadro está presente um miúdo, o filho do dr. Ruysch, de 9
anos, com um brinquedo (preferido?) – um esqueletozinho.
4. Epílogo, que o texto já vai longo
O meu tema – O
fascínio do corpo - deveria também contemplar as sugestivas cartas da filha
do aristocrata negro aos possuidores e exibidores do corpo de seu pai. O
racismo, nessa época ainda sem nome mas na evidência da sua brutalidade
ingénua. Outros lapsos de história – a viagem do coração de Chopin, o génio frágil e sofredor, seriam também de
figurar aqui na minha vitrina de corpos e frascos que, se me perturbaram a mim,
talvez vos tenham também perturbado. A verdade é que só há pouco tempo – um ou
dois anos – me apercebi que o corpo enquanto cadáver exerce um certo fascínio:
é um objecto de descoberta, tão imenso e eficaz como uma carta geográfica o é
de um espaço determinado. Tal aprendi com os drs. Verheyen e Ruysch de Olga T.
e, antes mesmo, com os policiais da Fox Crime (que adoro) nos quais, em acético
laboratório ou até no fundo de um barranco, um médico (geralmente uma médica)
forense lê a vida inteira de uma vítima, ao contrário da cigana que lê a cina:
o corpo morto só tem passado.
As minhas desculpas
pelo tamanho do texto, mas a quarentena é má conselheira.
Chegada aqui, lembro o fabuloso “Obra ao negro” de Marguerite Yourcenar, com o seu inquietadíssimo Zenão/Boherave médico, cientista, filósofo.
Em
prisão domiciliária mas não conservada em formol,
Porto, 20 de Abril de
2020,
Conceição
Viagens
Olga
Tokarczuc
A verdadeira plastinação
por Alexandra Azevedo
Tenho apenas alguns anos, estou sentada no parapeito da
janela, observo o pátio frio. As luzes da cozinha da escola estão desligadas.
Já se foram todos embora. As lajes de betão do pátio mergulharam na escuridão e
deixei de as ver. Portas fechadas, toldos recolhidos, estores descidos. Queria
sair, mas não tenho para onde ir. Somente a minha presença adquire agora
contornos bem definidos, contornos que estremecem, ondulam, e isso dói. E,
subitamente, descubro a verdade: não há nada a fazer_ existo. (p 7)
É com a epifania da sua própria existência, ocorrida na
infância, que a autora inaugura “Viagens”.
A compreensão súbita e surpreendente dessa verdade essencial com o que ela tem
de irremediável e solitário, constitui o momento fundador da narrativa de uma
viagem, de uma peregrinação, que é comum a todos os homens,
cujo ponto de chegada é também o mesmo para todos e em que todos carregam uma
única e mesma bagagem, o próprio corpo. Quem
inventou o corpo humano? E, nesta sequência, quem detém sobre ele os eternos
direitos de autor? (p 111)
O rio Oder, lugar da sua primeira fuga peregrina, ainda em
criança, um rio irregular, sempre em movimento e imprevisível, é a metáfora da
própria vida porque apesar de todos os perigos,, tudo
o que está em movimento é sempre melhor do que aquilo que está em repouso, (…)
a mudança é mais nobre do que a estabilidade, (…) tudo o que estagna acabará
por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo
que está em movimento consegue durar eternamente. (p 9)
Durar eternamente. O grande, o único desiderato.
Para o conseguir é necessário evitar a decomposição do corpo,
afinal a única coisa que verdadeiramente possuímos. O doutor Blau, por exemplo,
considera que Todo o corpo humano merecia ser preservado. É um escândalo que seja tão
frágil e delicado. É um escândalo deixá-lo decompor-se debaixo da terra ou
entregá-lo às chamas como quem queima lixo. (p 114) Por isso, se interessa
pela técnica inovadora de conservação por plastinação à base de silicone que permite que os tecidos preservem a sua cor natural e uma certa
plasticidade e, para ele, num mundo mais justo, não seriam apenas os ricos a
poderem dar-se ao luxo de serem embalsamados.
Durar eternamente.
Para o conseguir é necessário estar sempre em movimento, viajar incessantemente como Ulisses, num
movimento perpétuo que perpetuamente evitaria a chegada à meta. Mas talvez não
exista qualquer movimento e talvez não exista meta como diz o professor
especialista em cultura helénica _ Na realidade, não existe qualquer movimento.
É como a tartaruga de Zenão. Nós não avançamos para lugar nenhum, apenas nos
movemos para o interior de um momento e, assim sendo, não existe qualquer
limite ou meta. E o mesmo princípio poder-se-á
aplicar ao espaço _ já que todos estamos igualmente distantes do
infinito, então também não existe qualquer «algures»_ ninguém está confinado a
um determinado momento ou a um determinado lugar (p 328)
Ou talvez haja um outro modo de ultrapassar a relação sempre tensa e dúbia entre tempo e
espaço. Se para o doutor Blau o mundo poderia ter sido criado de outra
forma: a alma poderia ser mortal_ afinal de contas, para que serve a alma, _mas
o corpo seria imortal, para o
escritor é a alma que importa preservar. E a plastinação da alma faz-se com o
silicone das palavras. E tal como para preservar um corpo é preciso retalhar e
esventrar também a escrita precisa de aventais de açougueiro, botas de borracha
e, na mão, uma faca para estripar. (p 17) A faca do escritor é a
esferográfica com que discretamente tira
apontamentos do mundo que o rodeia em qualquer espaço, em qualquer aeroporto
porque todo o escritor é um viajante. Não se envergonhem _ estou a pensar nos
outros , naqueles que estão à espera que as portas de embarque se abram_ saquem
dos vossos diários e escrevam. Afinal de contas, há muita gente, como nós, a
tirar apontamentos. Não deixamos ninguém perceber que olhamos uns para os
outros; não levantamos os olhos acima dos nossos sapatos. Iremos tomar notas
uns sobre os outros _ é a maneira mais segura de comunicarmos. Iremos
transformar-nos mutuamente em letras e iniciais, eternizar-nos em folhas de
papel, plastinar-nos e mergulhar-nos no formaldeído das frases (p 342)
Assim, ao responder às perguntas Para onde vão? E para quê?
como fazem as hospedeiras antes do
embarque, é a escrita literária que
verdadeiramente produz um perpétuo movimento de renascimento sem
qualquer limite ou meta. Pela escrita entramos num voo em que as
hospedeiras, lindas como anjos, conferem a nossa habilitação para viajar e, com
um gesto suave, autorizam-nos a mergulhar nas formas arredondadas e macias do
túnel alcatifado que nos leva até ao interior do avião que, por sua vez, nos
levará por um caminho aéreo e frio rumo a novos mundos. (p 343) Mas aqui o nosso passaporte e o nosso bilhete
de embarque são a capacidade de nos
deixar-nos transportar pelas formas arredondadas da linguagem literária e,
assim, podermos viajar para mundos imaginários porque Nos sorrisos destas hospedeiras,
esconde-se _ assim nos parece_ a promessa de que talvez possamos renascer e,
desta vez, no tempo certo e no lugar certo. (p 343)
Alexandra Azevedo
20 de Abril de 2020
A estrutura
da obra: Tokarczuk e Garrett
por António Nabais
Entra o
leitor no livro, começa a ver subtítulos (ou serão só títulos?) e cai na
tentação de ir à procura de um índice. Apenas existe o dos mapas e das imagens.
Para quem vai à procura de arrumação, começamos mal.
Na
realidade, se entendermos estrutura como organização interna da obra, se
estivermos à procura das ligações, é fácil perdermo-nos no caminho.
O livro, de
muito difícil classificação, diga-se, é um amontoado de narrativas, pequenos
ensaios e anotação, como se fosse um caderno de apontamentos, com mudanças
abruptas de tempos e de espaços.
O título
original já anuncia esta des-estruturação, esta desarrumação. É, a propósito
extremamente interessante ler as opiniões dos tradutores para catalão e para
castelhano (https://www.lavanguardia.com/vida/20191014/47952611495/un-titulo-intraducible.html).
Independentemente
das discordâncias, a ideia de movimento está sempre presente. Numa espécie de
alinhamento astral, sabe-se que a autora soube do Prémio Nobel quando estava em
viagem.
A escrita
do livro é, assim, uma viagem em que a preocupação não é o destino, mas a
viagem em si, uma busca propositadamente interminável, metáfora, talvez, da
própria vida, esse desencontro permanente que julgamos conseguir organizar, mas
que é feita de fragmentos. Na p. 49, o narrador exprime-se na primeira pessoa
do singular, anunciando que a viagem serve para não estar: “Quando viajo
desapareço do mapa. Ninguém sabe onde estou. Se estou no ponto de partida ou se
estou já no ponto de chegada.” ‘Ninguém’ pode ser também uma referência ao
próprio sujeito da enunciação.
As nossas Viagens, as que se passam na nossa
terra, pela pena de Garrett, assumem também um carácter aparentemente
fragmentário, com uma mistura de níveis narrativos com reflexões pessoais,
também na primeira pessoa, também num triângulo que liga espaço, tempo e
reflexão pessoal.
Como autor
romântico que era, ainda que a contragosto, Garrett, no entanto, nunca larga a
mão do leitor, explicando-nos ligações e anunciando intenções. Tokaczuk
deixa-nos sempre desamparados diante da surpresa de narrativas que vão sendo
retomadas, não se sabe quando ou onde, numa viagem que não pode ser planeada,
ao sabor de ocorrências que não se dominam. Não por acaso, o último mapa é o da
viagem de Ulisses, o grande viajante, a vítima das circunstâncias e um dos
primeiros heróis a distinguir-se pela capacidade de reflectir.
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