Texto de Olga Tokarczuk
LÁ FORA
LÁ FORA
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos
a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande batalha
de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando devagarinho
à conclusão de que nada jamais será como era antes
TEXTO OLGA TOKARCZUK PRÉMIO
NOBEL DE LITERATURA
Da minha janela vejo uma
amoreira branca, uma árvore que me fascina e foi uma das razões pelas quais
decidi morar aqui. A amoreira é uma planta generosa — durante toda a primavera
e todo o verão, alimenta dezenas de famílias de aves com os seus frutos doces e
sãos. Mas, nesta altura do ano, a amoreira não tem folhas, e, por isso, eu
avisto um pedaço da rua, agora silenciosa, por onde raramente passa alguém a
caminho do parque. O tempo em Wrocław é quase estival, brilha um sol que
encandeia, o céu está azul e o ar limpo. Hoje, enquanto passeava com o cão, vi
duas pegas a escorraçar uma coruja do ninho delas. Eu e a coruja olhámo-nos nos
olhos a uma distância de um metro apenas.
Tenho a impressão de que os animais também
se encontram na expectativa, aguardando aquilo que irá acontecer.
Para mim, já há muito tempo que havia
mundo em demasia. Demasiado, demasiado acelerado, demasiado ruidoso.
Por conseguinte, não possuo o ‘trauma do
isolamento’ e não sofro pelo facto de não poder encontrar-me com outras
pessoas. Não lamento que os cinemas tenham sido encerrados; é-me indiferente
que os centros comerciais não estejam abertos. Mas preocupo-me, sim, quando
penso em todas as pessoas que ficaram sem trabalho. Quando tomei conhecimento
da quarentena preventiva, senti uma espécie de alívio e sei que muitas pessoas
pensam da mesma maneira, embora tenham vergonha de o dizer. A minha
introversão, há muito estrangulada e maltratada pelas diretrizes dos
extrovertidos hiperativos, sacudiu-se e saiu do armário.
Da janela, avisto o vizinho, um advogado,
cheio de trabalho, que ainda há bem pouco tempo via sair de casa para o
tribunal, logo de manhã, com a toga pendurada no ombro. Agora, vestido com um
fato de treino folgado, luta contra um ramo — deve ter decidido dar um jeito ao
seu jardim. Avisto um casal jovem que leva a passear o seu cão velhinho, o
qual, desde o inverno, já mal consegue andar. O cão anda vacilando, e eles
acompanham o seu passo pacientemente, caminhando muito devagarinho. E o camião
de recolha de resíduos urbanos recolhe o lixo com grande estrondo.
A vida continua, claro, mas a um ritmo
completamente diferente. Fiz arrumações no armário e levei os jornais já lidos
para o contentor do papel. Recoloquei as plantas em novos vasos. Fui buscar à
oficina a bicicleta que estava para consertar. Cozinhar dá-me prazer.
É com insistência que me ocorrem imagens
da infância, quando havia muito mais tempo e era possível ‘desperdiçá-lo’,
ficando horas a fio a olhar pela janela, a observar as formigas, deitada
debaixo da mesa, imaginando estar dentro de uma arca. Ou, então, a ler a
enciclopédia.
Não se terá dado o caso de termos
regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma,
mas precisamente o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?
Afinal de contas, o vírus veio lembrar-nos aquilo que apaixonadamente negávamos
— que somos seres frágeis, feitos da mais delicada matéria. Que morremos, que
somos mortais.
Que não estamos separados do mundo através
da nossa ‘humanidade’ e excecionalidade, que o mundo é antes uma espécie de
grande rede, da qual somos cativos e onde estamos ligados a outros seres por
linhas invisíveis de dependência e influência. Que dependemos uns dos outros e
que, independentemente da distância dos países dos quais provimos, da língua
que falamos e da cor da nossa pele, adoecemos da mesma maneira, sentimos medo
da mesma maneira e da mesma maneira morremos.
Não se terá dado o caso de termos regressado a um
ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente
o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?
Consciencializou-nos de que,
independentemente de nos sentirmos fracos e indefesos perante o perigo, existem
à nossa volta pessoas que são ainda mais fracas e precisam de ajuda. Fez-nos
lembrar o quão frágeis são os nossos pais e avós, idosos, e o quanto eles
precisam dos nossos cuidados.
Mostrou-nos que a nossa agitação frenética
ameaça o mundo. E voltou a colocar-nos a pergunta que raramente tivemos coragem
de colocar a nós próprios: o que é que, em verdade, procuramos?
Assim, o medo de adoecermos afastou-nos do
nosso caminho sinuoso e, por força das circunstâncias, fez-nos lembrar a
existência dos ninhos, dos quais provimos e onde nos sentimos em segurança. E
mesmo se fôssemos grandes viajantes, numa situação como esta, iríamos sempre
ansiar por chegar a uma espécie de casa.
Deste modo, foram-nos reveladas tristes
verdades — que, em momentos de perigo, o nosso pensamento volta a recorrer a
categorias que encerram fronteiras e excluem nações. Neste difícil momento,
verificou-se o quão frágil era na prática a ideia de uma comunidade europeia. A
União Europeia perdeu a partida por desistência, delegando as decisões a tomar,
em tempos de crise, a cada um dos Estados-membros. O encerrar das fronteiras
nacionais é para mim o maior fracasso destes míseros tempos — voltaram os
antigos egoísmos e as categorias ‘nós’ e ‘os estrangeiros’, ou seja, aquilo
contra o qual lutámos durante os últimos anos, na esperança de que tal nunca mais
formatasse as mentes.
O medo do vírus evocou automaticamente as
mais simples convicções atávicas de que a culpa é dos estrangeiros, que sempre
trazem ameaças, vindas de algures. Na Europa, o vírus vem ‘de algures’, não é
nosso, é estrangeiro. Na Polónia, são suspeitos todos os que, agora, regressam
do estrangeiro. A onda de fronteiras encerradas e os engarrafamentos
monstruosos nos pontos de passagem de fronteira devem ter constituído um choque
para muitos jovens. O vírus veio lembrar-nos — as fronteiras existem e estão em
boa forma.
De igual modo, receio que o vírus depressa
nos lembre de outra velha verdade — o quanto não somos iguais uns aos outros.
Alguns de nós viajam em aviões particulares para a sua casa numa ilha ou para o
seu refúgio numa floresta, enquanto outros permanecem nas cidades para prestar
serviço nas centrais elétricas e nas estações de fornecimento de água. Outros,
ainda, arriscam a vida, trabalhando em lojas e hospitais. Há quem lucre com a
pandemia e há quem perca o trabalho de uma vida inteira. A crise que se
avizinha irá certamente minar princípios que nos pareciam sólidos; muitos
países não serão capazes de lidar com a situação e, perante a sua
desintegração, surgirá uma nova ordem, como é costume depois das crises.
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos
a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande
batalha de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando
devagarinho à conclusão de que nada jamais será como era antes.
Esta situação de quarentena forçada e
confinamento da família à casa poderá consciencializar-nos daquilo que não
queríamos admitir — que a família nos incomoda, que os laços do casamento há
muito afrouxaram. Os nossos filhos sairão da quarentena viciados na internet, e
muitos de nós ficaremos cientes da falta de sentido e da infertilidade da
situação, da qual somos mecanicamente cativos por força da inércia das
circunstâncias. E se o número de homicídios, suicídios e doenças mentais
aumentar?
Diante dos nossos olhos, dissipa-se, como
fumaça, o paradigma civilizacional, que nos moldou durante os últimos duzentos
anos —o de que somos senhores da criação, que podemos fazer tudo e que o mundo
nos pertence.
Novos tempos se avizinham.
Tradução do polaco de
Teresa Fernandes Swiatkiewicz
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