terça-feira, 28 de abril de 2020

A Janela


  
Texto de Olga Tokarczuk

                                                                             LÁ FORA 







Vista da janela da casa da escritora em Wroclaw, na Polónia Fotografia de Olga Tokarczuk
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande batalha de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando devagarinho à conclusão de que nada jamais será como era antes
TEXTO OLGA TOKARCZUK PRÉMIO NOBEL DE LITERATURA
Da minha janela vejo uma amoreira branca, uma árvore que me fascina e foi uma das razões pelas quais decidi morar aqui. A amoreira é uma planta generosa — durante toda a primavera e todo o verão, alimenta dezenas de famílias de aves com os seus frutos doces e sãos. Mas, nesta altura do ano, a amoreira não tem folhas, e, por isso, eu avisto um pedaço da rua, agora silenciosa, por onde raramente passa alguém a caminho do parque. O tempo em Wrocław é quase estival, brilha um sol que encandeia, o céu está azul e o ar limpo. Hoje, enquanto passeava com o cão, vi duas pegas a escorraçar uma coruja do ninho delas. Eu e a coruja olhámo-nos nos olhos a uma distância de um metro apenas.
Tenho a impressão de que os animais também se encontram na expectativa, aguardando aquilo que irá acontecer.
Para mim, já há muito tempo que havia mundo em demasia. Demasiado, demasiado acelerado, demasiado ruidoso.
Por conseguinte, não possuo o ‘trauma do isolamento’ e não sofro pelo facto de não poder encontrar-me com outras pessoas. Não lamento que os cinemas tenham sido encerrados; é-me indiferente que os centros comerciais não estejam abertos. Mas preocupo-me, sim, quando penso em todas as pessoas que ficaram sem trabalho. Quando tomei conhecimento da quarentena preventiva, senti uma espécie de alívio e sei que muitas pessoas pensam da mesma maneira, embora tenham vergonha de o dizer. A minha introversão, há muito estrangulada e maltratada pelas diretrizes dos extrovertidos hiperativos, sacudiu-se e saiu do armário.
Da janela, avisto o vizinho, um advogado, cheio de trabalho, que ainda há bem pouco tempo via sair de casa para o tribunal, logo de manhã, com a toga pendurada no ombro. Agora, vestido com um fato de treino folgado, luta contra um ramo — deve ter decidido dar um jeito ao seu jardim. Avisto um casal jovem que leva a passear o seu cão velhinho, o qual, desde o inverno, já mal consegue andar. O cão anda vacilando, e eles acompanham o seu passo pacientemente, caminhando muito devagarinho. E o camião de recolha de resíduos urbanos recolhe o lixo com grande estrondo.
A vida continua, claro, mas a um ritmo completamente diferente. Fiz arrumações no armário e levei os jornais já lidos para o contentor do papel. Recoloquei as plantas em novos vasos. Fui buscar à oficina a bicicleta que estava para consertar. Cozinhar dá-me prazer.
É com insistência que me ocorrem imagens da infância, quando havia muito mais tempo e era possível ‘desperdiçá-lo’, ficando horas a fio a olhar pela janela, a observar as formigas, deitada debaixo da mesa, imaginando estar dentro de uma arca. Ou, então, a ler a enciclopédia.
Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal? Afinal de contas, o vírus veio lembrar-nos aquilo que apaixonadamente negávamos — que somos seres frágeis, feitos da mais delicada matéria. Que morremos, que somos mortais.
Que não estamos separados do mundo através da nossa ‘humanidade’ e excecionalidade, que o mundo é antes uma espécie de grande rede, da qual somos cativos e onde estamos ligados a outros seres por linhas invisíveis de dependência e influência. Que dependemos uns dos outros e que, independentemente da distância dos países dos quais provimos, da língua que falamos e da cor da nossa pele, adoecemos da mesma maneira, sentimos medo da mesma maneira e da mesma maneira morremos.
Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamente o contrário — o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?
Consciencializou-nos de que, independentemente de nos sentirmos fracos e indefesos perante o perigo, existem à nossa volta pessoas que são ainda mais fracas e precisam de ajuda. Fez-nos lembrar o quão frágeis são os nossos pais e avós, idosos, e o quanto eles precisam dos nossos cuidados.
Mostrou-nos que a nossa agitação frenética ameaça o mundo. E voltou a colocar-nos a pergunta que raramente tivemos coragem de colocar a nós próprios: o que é que, em verdade, procuramos?
Assim, o medo de adoecermos afastou-nos do nosso caminho sinuoso e, por força das circunstâncias, fez-nos lembrar a existência dos ninhos, dos quais provimos e onde nos sentimos em segurança. E mesmo se fôssemos grandes viajantes, numa situa­ção como esta, iríamos sempre ansiar por chegar a uma espécie de casa.
Deste modo, foram-nos reveladas tristes verdades — que, em momentos de perigo, o nosso pensamento volta a recorrer a categorias que encerram fronteiras e excluem nações. Neste difícil momento, verificou-se o quão frágil era na prática a ideia de uma comunidade europeia. A União Europeia perdeu a partida por desistência, delegando as decisões a tomar, em tempos de crise, a cada um dos Estados-membros. O encerrar das fronteiras nacionais é para mim o maior fracasso destes míseros tempos — voltaram os antigos egoísmos e as categorias ‘nós’ e ‘os estrangeiros’, ou seja, aquilo contra o qual lutámos durante os últimos anos, na esperança de que tal nunca mais formatasse as mentes.
O medo do vírus evocou automaticamente as mais simples convicções atávicas de que a culpa é dos estrangeiros, que sempre trazem ameaças, vindas de algures. Na Europa, o vírus vem ‘de algures’, não é nosso, é estrangeiro. Na Polónia, são suspeitos todos os que, agora, regressam do estrangeiro. A onda de fronteiras encerradas e os engarrafamentos monstruosos nos pontos de passagem de fronteira devem ter constituído um choque para muitos jovens. O vírus veio lembrar-nos — as fronteiras existem e estão em boa forma.
De igual modo, receio que o vírus depressa nos lembre de outra velha verdade — o quanto não somos iguais uns aos outros. Alguns de nós viajam em aviões particulares para a sua casa numa ilha ou para o seu refúgio numa floresta, enquanto outros permanecem nas cidades para prestar serviço nas centrais elétricas e nas estações de fornecimento de água. Outros, ainda, arriscam a vida, trabalhando em lojas e hospitais. Há quem lucre com a pandemia e há quem perca o trabalho de uma vida inteira. A crise que se avizinha irá certamente minar princípios que nos pareciam sólidos; muitos países não serão capazes de lidar com a situação e, perante a sua desintegração, surgirá uma nova ordem, como é costume depois das crises.
Ficamos em casa, lemos livros e assistimos a séries na televisão, mas, de facto, estamos a preparar-nos para a grande batalha de uma nova realidade, que nem somos capazes de imaginar, chegando devagarinho à conclusão de que nada jamais será como era antes.
Esta situação de quarentena forçada e confinamento da família à casa poderá consciencializar-nos daquilo que não queríamos admitir — que a família nos incomoda, que os laços do casamento há muito afrouxaram. Os nossos filhos sairão da quarentena viciados na internet, e muitos de nós ficaremos cientes da falta de sentido e da infertilidade da situação, da qual somos mecanicamente cativos por força da inércia das circunstâncias. E se o número de homicídios, suicídios e doenças mentais aumentar?
Diante dos nossos olhos, dissipa-se, como fumaça, o paradigma civilizacional, que nos moldou durante os últimos duzentos anos —o de que somos senhores da criação, que podemos fazer tudo e que o mundo nos pertence.
Novos tempos se avizinham.
Tradução do polaco de Teresa Fernandes Swiatkiewicz


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