Gershom Wald, o corifeu
por Alexandra Azevedo
Gershom Wald, é o corifeu desta
história.
De facto, tal como os
coreutas das tragédias gregas clássicas, o rosto de Wald é uma máscara trágica
na sua fealdade – “…aquela cara informe,
como se o escultor tivesse desistido do trabalho a meio, com o queixo afiado a
apontar para a frente e o bigode branco desgrenhado” (173); “a cabeça
inclinada sobre o ombro esquerdo, um olho franzido e o outro bem aberto, como
quem aguarda o levantar da cortina e o início da representação, na qual não
deposita a menor esperança, e a quem nada mais resta senão esperar
pacientemente pelo mal que as várias personagens se preparam para fazer umas às
outras: como se vão precipitar mutuamente até ao fundo da desventura, se é que
ela tem fundo, e de que forma cada personagem se prepara para atrair a si a
desgraça que lhe é exclusivamente destinada” (30)
É justamente esta
função de espectador, afastado da acção principal e encarregado de, através dos seus
comentários, analisar as personagens e moderar-lhes os ímpetos, função que o
coro desempenhava na tragédia clássica, aquela que o autor reserva a Wald.
Assim, as suas
análises penetrantes e argutas desvendam a essência de cada uma das personagens,
nomeadamente, Samuel e Atalia. Samuel, um romântico: “ Mas você é um rapaz tão
romântico” (98); um homem puro: “ Por que se preocupa comigo?, perguntou
Samuel. Talvez porque haja em você algo que nos comove: qualquer coisa do homem
das cavernas com uma alma exposta como um relógio de pulso a que tiraram a tampa
de vidro” (97); “Às vezes você
parece uma tartaruga que perdeu a carapaça pelo caminho” (174); um
sonhador: “Eu estou satisfeito consigo
mesmo que se atrase. Os sonhadores estão sempre atrasados” (133)
E Atalia, a mulher
fatal marcada pela tragédia: “Ela possui
uma espécie de frieza quente, uma distância que vos atrai a ela como as traças
para a luz do candeeiro. “ (175); ou a mulher lúcida que odeia a febre de
guerra de todos os homens: “ E Atalia? Estava próxima das ideias do
pai? Ela é ainda mais extremista do que ele. Disse-me uma vez que a existência
dos judeus em Israel se fundamenta na injustiça.”(199)
Por outro lado, a
função moderadora dos ímpetos das personagens é desempenhada por Wald, por
exemplo, nos conselhos que dá a Samuel: “Ouça-me,
é para seu bem. Se puder, não se apaixone por Atalia. Não vale a pena. Mas se
calhar já é tarde” (97 .
Há ainda toda a
reflexão que a personagem faz acerca da política e da guerra, uma reflexão
amarga e distanciada de alguém que já em nada participa, mero espectador
acantonado a uma sala/biblioteca em que, em mais uma flagrante semelhança com o
coro trágico, deambula numa estranha coreografia: “…o homem apoiou as duas mãos sobre a escrivaninha e colocando todo o
peso do corpo sobre os músculos dos braços começou a avançar devagar, com um
esforço enorme, agarrado à mesa: parecia um polvo gigante que foi atirado para
terra e se arrasta penosamente ao longo da costa para o mar. Assim se arrastou
ele com a força dos braços, da sua cadeira, ao longo da escrivaninha, até uma
espreguiçadeira em vime, forrada, que o esperava junto da secretária, debaixo
da janela da biblioteca. Aqui, fora do círculo de luz do candeeiro de mesa,
começou a executar uma série complicada de inclinações, de contorções, procura
de pontos de apoio, até conseguir estender o corpanzil dentro daquela espécie
de berço.” (31)
E, assim, o movimento lento e pesado do corpanzil de Wald transforma-se,
ele próprio, no corpo colectivo do coro que evolui no palco trágico
da Pólis
Alexandra Azevedo
4 de Abril de 2017
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