terça-feira, 18 de abril de 2017

Judas de Amos OZ



Gershom Wald, o corifeu



por Alexandra Azevedo





Gershom Wald, é o corifeu desta história.
De facto, tal como os coreutas das tragédias gregas clássicas, o rosto de Wald é uma máscara trágica na sua fealdade – “…aquela cara informe, como se o escultor tivesse desistido do trabalho a meio, com o queixo afiado a apontar para a frente e o bigode branco desgrenhado” (173);  “a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo, um olho franzido e o outro bem aberto, como quem aguarda o levantar da cortina e o início da representação, na qual não deposita a menor esperança, e a quem nada mais resta senão esperar pacientemente pelo mal que as várias personagens se preparam para fazer umas às outras: como se vão precipitar mutuamente até ao fundo da desventura, se é que ela tem fundo, e de que forma cada personagem se prepara para atrair a si a desgraça que lhe é exclusivamente destinada” (30)
É justamente esta função de espectador, afastado da acção principal  e encarregado de, através dos seus comentários, analisar as personagens e moderar-lhes os ímpetos, função que o coro desempenhava na tragédia clássica,  aquela que o autor reserva a Wald.
Assim, as suas análises penetrantes e argutas desvendam a essência de cada uma das personagens, nomeadamente, Samuel e Atalia. Samuel, um romântico: Mas você é um rapaz tão romântico” (98); um homem puro: “ Por que se preocupa comigo?, perguntou Samuel. Talvez porque haja em você algo que nos comove: qualquer coisa do homem das cavernas com uma alma exposta como um relógio de pulso a que tiraram a tampa de vidro” (97); “Às vezes você parece uma tartaruga que perdeu a carapaça pelo caminho” (174); um sonhador: “Eu estou satisfeito consigo mesmo que se atrase. Os sonhadores estão sempre atrasados” (133)
E Atalia, a mulher fatal marcada pela tragédia: “Ela possui uma espécie de frieza quente, uma distância que vos atrai a ela como as traças para a luz do candeeiro. “ (175); ou a mulher lúcida que odeia a febre de guerra de todos os homens:  “ E Atalia? Estava próxima das ideias do pai? Ela é ainda mais extremista do que ele. Disse-me uma vez que a existência dos judeus em Israel se fundamenta na injustiça.”(199)
Por outro lado, a função moderadora dos ímpetos das personagens é desempenhada por Wald, por exemplo, nos conselhos que dá a Samuel: “Ouça-me, é para seu bem. Se puder, não se apaixone por Atalia. Não vale a pena. Mas se calhar já é tarde” (97 .
Há ainda toda a reflexão que a personagem faz acerca da política e da guerra, uma reflexão amarga e distanciada de alguém que já em nada participa, mero espectador acantonado a uma sala/biblioteca em que, em mais uma flagrante semelhança com o coro trágico, deambula numa estranha coreografia: “…o homem apoiou as duas mãos sobre a escrivaninha e colocando todo o peso do corpo sobre os músculos dos braços começou a avançar devagar, com um esforço enorme, agarrado à mesa: parecia um polvo gigante que foi atirado para terra e se arrasta penosamente ao longo da costa para o mar. Assim se arrastou ele com a força dos braços, da sua cadeira, ao longo da escrivaninha, até uma espreguiçadeira em vime, forrada, que o esperava junto da secretária, debaixo da janela da biblioteca. Aqui, fora do círculo de luz do candeeiro de mesa, começou a executar uma série complicada de inclinações, de contorções, procura de pontos de apoio, até conseguir estender o corpanzil dentro daquela espécie de berço.” (31)
E, assimo  movimento lento e pesado do corpanzil de Wald transforma-se, ele  próprio, no corpo  colectivo do coro que evolui no palco trágico da Pólis


Alexandra Azevedo

4 de Abril de 2017



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