terça-feira, 18 de abril de 2017

Judas de Amos OZ

O espaço que os espaços, interior e exterior, ocupam no romance

 por Manuela Pereira


A casa (…) mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser (…) expulso, posto fora de casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo.”
A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem.”
                                                                                                  Gaston Bachelard, A Poética do Espaço (26/27)   


Nesta história de erro, desejo e amor não correspondido, os espaços, interior e exterior, ocupam todo o espaço do romance.
Judas, todo ele, é um espaço de reflexão e de debate de ideias sobre Israel; reflexão sobre o seu passado e presente, e perspectiva do seu futuro.
Nele todas as descrições apelam aos nossos sentidos e emoções.
O espaço físico-temporal, onde se movimentam as suas personagens – Jerusalém dos anos 50-60 – é também o espaço simbólico e psicológico dos seus habitantes. As suas derivas, interiores e exteriores, reflectem o espaço social e politico que caracteriza a sociedade israelita e descrevem um cenário de guerra.
O espaço físico exterior é o espaço de investigação de Atalia. É pelas ruas escuras e desertas ou junto de fronteiras policiadas que Samuel a acompanha, deixando-se guiar, ultrapassando o espaço restrito do restaurante da Jerusalém pobre, e da biblioteca, onde o passado permanece encerrado e proibido.
Ao mesmo tempo vai-se tornando adulto, enquanto passa pelo cinema que lhe permite sonhar ou pelos montes desertos da solidão introspectiva. Samuel nunca chegou a entrar nos salões onde a elite erudita e abastada de Jerusalém se reúne para dançar. É nesse passo, não dado, que o seu caminho se define.
Tudo se passa no Inverno, espaço de maturação que prepara e nos conduz à Primavera.
O que separa o espaço público do espaço privado não é o portão do jardim. Esse portão tombado, simbolicamente indiferente e descuidado, não é uma verdadeira fronteira, qualquer um o pode transpor sem dificuldade.
A transição tem que ser feita pelo degrau à entrada da porta. Ele é o contraponto entre o aberto e o fechado, o exterior e o interior. Esse degrau hostil, limite do espaço íntimo, inscreve um pequeno desnivelamento da vida anterior e da futura.
É no espaço interior da casa – a casa de Sheatliel Abravnel1 (sendo a casa que simbolicamente nos representa a nós mesmos) – que convivem o passado e o presente e onde o futuro ainda aprisionado se alimenta.
A cozinha – espaço do presente – é o espaço de encontro dentro da casa. Aí Samuel encontra os recursos para enfrentar a vida: é aí que devora sanduiches e bebe leite, alimenta o seu corpo; também aí se encontra com Atalia e se prepara para alcançar com êxito o futuro. Futuro incerto que persegue de forma inquieta, correndo com a cabeça inclinada para a frente. Um futuro socialista, onde haja paz e justiça para todos, e onde árabes e judeus possam viver lado a lado como iguais.
Ao mesmo tempo procura concluir a sua tese e responder à pergunta são os traidores sempre maus?
Tese que resgata a sua culpa em relação ao abandono dos pais e, simultaneamente, resgata a de Abravnel, que viveu o fim da sua vida como um judas e morreu como um profeta sem honra, na sua própria terra – sendo Judas o símbolo da traição ela própria e por sua vez o símbolo de todos os judeus.
O espaço íntimo de Samuel Ash – espaço do futuro – é a mansarda, onde se encontra aprisionado com os seus sonhos de porvir. É o seu refúgio, a sua caverna, onde os posters são como gravuras rupestres em torno duma solidão concentrada, que irradia um universo que medita.
O acesso à mansarda é feito pela escada. A escada de acesso à mansarda é sempre de subida, é o símbolo da ascensão para a mais tranquila solidão.




A biblioteca – espaço do passado – é o espaço de comunicação com Gershom Wald, porque o importante é o que comunicamos aos outros. Aí se debatem ideias e se percorrem vidas anteriores. É um espaço de intimidade e de interiorização. É aí que Wald, velho e inválido, se confessa e esconde o remorso de decisões erradas, que acredita lhe fizeram perder o filho. É aí que passa a palavra aos jovens e lhes transmite a experiência vivida, esperando que se tornem capazes de enfrentar as adversidades do mundo lá fora.
Os quartos, espaço de relações íntimas, são espaços protegidos onde os desgostos de Atalia e Wald se inscrevem, recolhidos e encerrados. Só numa situação de doença e incapacidade é permitido a Samuel entrar num desses templos de dor, que tanto despertam a sua curiosidade.
Para chegar aos quartos é preciso percorrer um corredor. Envolto em sombras impalpáveis que ao mesmo tempo nos escondem e nos protegem, o corredor é um espaço de transição. É a oportunidade de mudança e de evolução.
Atalia, que perdeu o pai e o marido e também os filhos que nunca teve, mantém o seu espaço fechado. Samuel nunca entrou no seu quarto. E é ela que o expulsa da casa e o atira para fora do ninho, agora que ele já aprendeu a voar.

1 Membro do Comité Executivo Sionista que se opôs a Bem-Gurion sobre a fundação do estado de Israel em 1948



Clube de Leitura, 4 de Aril 2017                              Manuela Pereira

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