CONTOS
22 de Maio de 2017
Eça de Queirós
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
por Margarida Mouta
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
por Margarida Mouta
Cabe-me apresentar o conto “Singularidades de uma rapariga loira”, considerado
por Fialho de Almeida (contemporâneo de Eça) a primeira obra realista
portuguesa. Na época, a recepção do texto não foi pacífica. Alexandre
Herculano, por exemplo, não hesita em apelidá-lo de “má tradução” dos contos
franceses, opinião que não é partilhada por Sampaio Bruno que afirma tratar-se de uma história dramática, construída
com uma linguagem que se ajusta perfeitamente aos quadros apresentados, com
personagens “translúcidas” aos olhos do leitor. Em 2009 Manoel de Oliveira
algum mérito lhe encontra pois recria a narrativa, mantendo-se fiel aos
diálogos, conquanto a situe em ambientes que reflectem os tempos modernos.
Singularidades de Uma rapariga Loura Manuel de Oliveira |
1.
“O que não
contas à tua mulher, o que não contas a um amigo, contas a um estranho, na
estalagem” [Provérbio eslavo, p. 14]
A história anuncia-se desde as
primeiras linhas como “um caso simples”: “Começou
por me dizer que o seu caso era simples – e que se chamava Macário…” (p.11
e p.13). Constrói-se como um longa
analepse, narrada sob o ponto de vista de um narrador participante que connosco
partilha o relato ouvido da boca de um companheiro de viagem que o acaso colocara
ao seu lado numa estalagem do Minho. Esse companheiro de viagem, descrito como
um indivíduo “alto e grosso” com uma “calva larga, luzidia e lisa” cujos olhos
pretos tinham uma “singular clareza e
retidão” será o verdadeiro protagonista, simultaneamente personagem principal
da diegese e interlocutor do narrador que se constitui, como narratário e que,
por sua vez, se irá encarregar de no-la contar, a nós leitores, narratários em
segunda mão desta narrativa.[1]
Vemos assim accionado o Princípio de Realidade onde é
suposto que tudo se passa como no mundo coevo do leitor.
Após os diálogos
iniciais, o narrador apodera-se da narração na terceira pessoa e no pretérito. Há
porém, um brevíssimo momento em que a sequência narrativa, relatada no passado,
aparece cortada pelo regresso ao tempo presente, produzindo-se uma interacção
verbal entre Macário e o narrador que virá a revelar-se importante na economia
da narrativa, ajudando a esclarecer certos indícios. Mas já lá vamos.
À garantia
de fidelidade de quem ouviu em primeira mão (“Macário contou-me” (p.27)), virão juntar-se outros atributos do
narrador que influenciarão subjetivamente o enunciado. Estamos indubitavelmente
perante um narrador que manifesta uma contenção respeitosa pelas razões que
estão na origem da “larga e sentida confidência”: “Não direi os motivos por que ele daí a pouco, já deitado, me disse a
sua história.” (p.14); um narrador que compreende o melodrama (ou a farsa)
por detrás de alguém que responde com silêncios, constrangimentos e lágrimas
aos comentários sobre a beleza feminina: “Vi-o
chorar, àquele velho de quase sessenta anos” (p.14) e, por último, um
narrador que confessa explicitamente uma espécie de empatia identificadora que
desde logo o aproxima da personagem do seu enredo: “Perguntei-lhe então se era de uma família que eu conhecera que tinha o
apelido de Macário. E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo
do seu carácter uma ideia simpática” (p.15)
2- “Cherchez la femme”
Mas vamos à história! O título,
sugestivíssimo, convida-nos a adentrar-nos, no caráter peculiar de uma rapariga
loura que promete ter aqui um papel nuclear.
A existência dessa figura feminina
prenuncia-se na p. 13: “Compreendi que
tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia decerto no destino daquele
velho uma “mulher”. E o nosso narrador não estava enganado. Cherchez la femme, portanto. Mas onde encontrá-la?
Vamos avistá-la, abanando-se com um
magnífico leque, à janela da sua casa, um edifício situado em frente daquele
onde mora Macário, na companhia do seu tio Francisco que era também seu patrão.
Luísa (assim se chama a jovem) “tinha o carácter louro
como o cabelo - se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava
pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»;
era muito simples, quase indiferente, cheia de transigências". É por esta rapariga,
aparentemente dócil e sem vontade própria que Macário se vai apaixonar. Ele que
até então fora um rapaz “naturalmente
linfático e mesmo tímido cuja existência se centrava num “trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras
merendas no campo e um apuro saliente de fato e de roupas brancas”, (p.15),
que rapidamente ascendera de caixeiro a guarda-livros, mas que aos 22 anos não
tinha ainda “sentido Vénus”, não
precisou de mais de cinco dias para se declarar “doudo” por ela. A paixão
altera-lhe os nervos e perturba o ritmo do seu trabalho, deixando-o distraído e
absorto. Graças à intervenção de um amigo “de chapéu de palha”, Macário
consegue entrar nas boas graças de Luísa. Os encontros sucedem-se e os dois
partilham a companhia um do outro em serões em que se recitam poemas, se evocam
os tempos do senhor D. José I e se joga a dinheiro. Chegam mesmo a trocar um
beijo fugitivo, superficial, efémero que levará o espírito recto e severo de
Macário a determinar o casamento. Luísa, que às vezes naqueles encontros
nocturnos, “tinha sono” (p.30), ama
Macário em doses homeopáticas, “com todo
o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula”. Em Macário, porém, a paixão é ardente. De tal modo que, perante a
desaprovação do casamento por parte do tio Francisco não hesitará em sair de
casa e, após tempos difíceis em que conhece o desemprego, a pobreza e o
desespero, aceitar a via que o destino lhe reserva e ir até Cabo Verde com o
propósito de enriquecer para assim conquistar a sua amada, o que acaba por
acontecer. Antes da partida, Luísa, com a sua
passividade habitual, mal reage. Quando Macário regressa, financeiramente
recuperado, aceita-o. Também a mãe, a quem ele fora pedir “sofregamente” a sua
mão, ao vê-lo abastado, está pronta a recebê-lo, abrindo-lhe “uns grandes braços amigos, cheia de exclamações”
(p.32).
A narrativa avança com uma
certa simetria, pois a situação voltará a reverter-se quando Macário se vê na
obrigação moral de liquidar as dívidas do amigo de chapéu de palha de quem era
fiador e volta a encontrar-se sem dinheiro. Após uma deambulação pelas antigas
ruas e uma espécie de rememoração nostálgica do passado, Macário, que já se via
na iminência de sofrer de novo as agruras do trabalho na colónia para voltar a
recuperar a estabilidade financeira, acaba por se reconciliar com o tio que,
reconhecendo a rectidão do seu carácter, o convida a retomar o seu antigo posto
e lhe oferece mesmo sociedade na firma, tratando-o com inesperada e comovida
estima familiar. Esta nova situação vai mergulhar Macário na “plenitude do amor
e da alegria”, permitindo-lhe abreviar o prazo do casamento: “E Luísa começou a tratar do enxoval.” (p.35).
O conto vai, assim, progredindo dentro do paralelismo.
No entanto, apesar de todo o
esforço empregue para se unir a Luísa, esse intento
não se realiza. O conto apresenta um epílogo deceptivo: numa manhã em que ambos
entram numa ourivesaria para Macário lhe oferecer o anel de noivado, ele
constata que a noiva comete um roubo e, em nome de sua honra familiar,
desiste do casamento. Este momento pós-roubo é traduzido por uma cena
claramente impressionista que contrasta com o estado de espírito de Macário: “Deram alguns passos na rua. Um largo sol
aclarava o gênio feliz: as seges passavam,
rolando ao estalido do chicote; figuras risonhas
passavam conversando: os
pregões ganiam os seus gritos alegres: um cavalheiro
de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua
estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol”. (p. 39). Este contraste é
acentuado pela figura de Luísa, antitética por excelência: por um lado, branca,
loura e delicada; por outro, fria, indiferente e ladra.
Os curiosos leitores, que no início do conto criaram expectativas sobre as causas possíveis para o estado de
espírito do homem de sessenta anos com quem o narrador partilha o quarto da
estalagem do Minho, ficam finalmente de posse da verdade dos factos. Os
curiosos, mas desatentos leitores, porque os outros, os que desde cedo se
interrogaram sobre os sucessivos e enigmáticos desaparecimentos associados à presença
de Luísa (o pacote de lenços da Índia na loja do tio Francisco, a peça de ouro
no fim do jogo) ou mesmo a impressão que a “meiga e amorosa pequenez da sua mão com
uma unha mais polida que o marfim de Dieppe “ou
ainda a desconfiança sobre a proveniência do luxuoso leque de Luísa.
Em princípio, a estética do melodrama
impõe que leitor tome o partido de Macário que é no fim de contas, um homem de histórico familiar considerado honrado,
de uma inquestionável rectidão de carácter. No polo oposto encontramos a sedutora
mas decadente Luísa que apresenta imperdoáveis falhas de carácter. A beleza
posta em cheque ante o carácter, numa clara crítica ao Romantismo. Será? Não, se
aceitarmos realisticamente que Luísa não passa de uma pobre vítima de
cleptomania que rouba mesmo sem necessidade, em vésperas do casamento e de ser
aceite socialmente ao lado de um respeitável comerciante. Não se virmos neste
traço de carácter uma das manifestações psicopatológicas que cedo retiveram a
atenção de Eça. Não, se virmos na renúncia, no sacrifício e no sofrimento de
Macário (o mesmo que se envolvera de modo absoluto com Luísa a ponto de
perder a razão) uma escolha entre os sentimentos e as suas consequências.
Ao respeitar os valores morais da honra que herdara da família, repudiando
a mulher que ama (e condenando-a provavelmente a uma vida de miséria) Macário
irá condenar-se a si próprio a uma vida infeliz de celibato e solidão. Esta visão
harmoniza-se mais, quanto a mim, com os processos realistas/naturalistas de construção do conto que estão já muito bem delineados em
1873, data em que Eça o escreve estas singularidades.
Margarida Mouta
Clube de Leitura, 22 de
Maio de 2017
[1] Este processo no qual o protagonista
pressupostamente narra a sua história ou uma testemunha a enuncia,
inculcando-se no leitor a ideia de que se trata de uma história verdadeira, não
parece ser exclusivo da ficção realista. Veja-se
o conto Ele e ela de Ramalho Ortigão
que faz parte da coletânea Histórias
cor-de-rosa ou a novela Vinte horas
de liteira de Camilo Castelo Branco.
O conto “Civilização” é extremamente rico e actual,
abrindo-se a diferentes abordagens, como por exemplo:
· Quais
as diferenças e/ou semelhanças entre este conto e a obra “A Cidade e as
Serras”, escrita 9 anos depois?
Será que o conceito de “Civilização” se
manteve inalterável ao longo destes anos, ou é aprofundado e aprimorado?
· O
conto e mais tarde o romance têm subjacente um conceito de Felicidade. Qual?
· Qual
os quais as semelhanças e diferenças entre a vida supercivilizada de Jacinto e
a vida actual, especialmente naquilo que diz respeito à utilização das
tecnologias e nas consequências que daí advêem.
· Poderemos
comparar Jacinto de Torges a Alberto Caeiro?
O que é certo é que Jacinto
era o homem mais “complexamente civilizado” que o seu amigo e vizinho conhecera
ou, segundo as suas palavras e clarificando o conceito, “aquele que se munira
da mais vasta soma de civilização material, ornamental e intelectual”!!
No entanto, Jacinto de
Torges era também um homem profundamente entediado, expressando esse seu estado
com constantes bocejos “cavos”, “lentos”, “perpétuos” e “vagos”!
Na verdade, nada faltava a
Jacinto: em termos materiais, nascera num palácio, possuía 40 contos de renda,
uma biblioteca notável (25000 títulos - representativos de “todas as obras
essenciais da inteligência e até da estupidez”- 1817 sistemas filosóficos, 8
metros de economia política…), uma panóplia de instrumentos moderníssimos:
máquina de escrever, autocopistas, telégrafo morse, fonógrafo, telefone, teatrofone
e tantos outros, brilhantes, sonoros, “mergulhados em forças universais” e tudo
aquilo que a civilização poderia materialmente oferecer de mais actual e
sofisticado.
Em termos ornamentais, tanto
a casa (atente-se nos pormenores das janelas do quarto, da mesa de toilette, da biblioteca…), como as
“operações de alindamento” de Jacinto, o traje dos criados, a magnificência da
mesa e da forma como eram apresentados os alimentos, espelhavam um esmero e
cuidado únicos que só um homem extremamente sofisticado poderia conseguir.
Quanto à intelectualidade,
os “Banquetes de Platão”, as leituras constantes e intensas (atente-se no
pormenor de “devorar” em 3 meses, 77 volumes sobre a “Evolução das ideias morais entre as nações negroides”), a
correspondência com Édison, revelavam uma personalidade ávida de saber e de
problematizar o conhecimento, confrontando-o com filósofos, homens da Arte e da
Ciência!
Mas esse ser complexamente
civilizado era também, como referi, um ser penosamente entediado, que se
refugiava na leitura de Schopenhauer e do Eclesiastes
e que, embora tivesse apenas 30 anos, apresentava um semblante enrugado, uma palidez schopenháurica e um corpo
definhado e corcovado.
É por um conjunto de razões
infelizes ou felizes que Jacinto chega a Torges desprovido de todas as
comodidades e se vê obrigado a viver na simplicidade quase absoluta. É aí que
um novo Jacinto renasce, deslumbrando-se
com o despertar dos sentidos e na comunhão com a natureza. É aí que descobre
que a “sapiência, portanto, está em recuar até esse honesto mínimo de
civilização, que consiste em ter um tecto de colmo, uma leira de terra e o grão
para nela semear”.
O Tesouro
por Manuela Pereira
No Purgatório,
de Dante, os avarentos são penitentes vergados, com as faces viradas para o
chão. Por terem acumulado e desejado demais, nos seus pensamentos terrenos, são
obrigados a carregar pesos do tamanho da sua riqueza.
A avareza, com a sua insaciável ganância,
e a soberba que a acompanha quase sempre, são dois pecados capitais que, desde
o princípio do mundo, levaram os homens a quererem mais do que o necessário
para viverem bem.
O desejo de terem sempre mais – bem-estar,
dinheiro, poder, estatuto social – é interminável. Por isso, os avarentos nunca
se sentem realizados ou satisfeitos e, ou são ultrapassados por outros
avarentos e sofrem, ou vivem a frustração de nunca atingirem os seus objectivos
por quererem sempre mais.
De imperadores a banqueiros, políticos e
ditadores, todos os donos do mundo acabam por cair na armadilha desta história
tão simples. E todos acabam mal.
Romances, contos, personagens imaginárias
e heróis da banda desenhada, imagens e filmes foram avisando para os perigos da
avareza 1, ensinando virtudes e valores morais.
Mas a soberba, a convicção de serem mais e melhores que os outros, faz com que
os soberbos se convençam que com eles tudo será diferente.
Eça escreveu O Tesouro, conto onde em poucas páginas nos mostra uma das origens
do mal e as maldades que lhe são implícitas: a manha, o engano, o roubo, o
assassínio.
Como no filme de Sérgio Leone_O Bom, o Mau e o Vilão, também neste
conto três homens tentam vigarizar-se mutuamente, na tentativa de ficarem com
um enorme tesouro só para si.
Os três homens são irmãos. Sobreviviam
com dificuldade e entreajudavam-se na procura de alimento e abrigo. Uniam os
seus esforços contra a adversidade comum.
Ao descobrirem um grande tesouro, a
adversidade desaparece e o instinto de sobrevivência torna-se egoísta.
O desejo de poder e de dinheiro fá-los
lutar entre si. Avaros, e não querendo partilhar a fortuna, planeiam uma forma
de matar os outros dois.
A excepção, tal como no filme, é o Bom.
Não porque a bondade seja uma qualidade sua, mas porque o Bom, como em muitas
outras histórias, só é bom porque é tolo.
E por ser tolo, e não ser matreiro
bastante para urdir um plano para eliminar os outros, é o primeiro a morrer. O
que nos leva a pensar que se não fosse tolo…
E pensamos no filme de Oliver Stone_Wall Street e na frase de Gordon Gekko:
“A
avareza, na falta de uma palavra melhor, é boa. A avareza está certa e
funciona. A avareza clarifica, abre caminho, e condensa a essência do espírito
evolucionista.
A
avareza, em todas as suas formas: avareza pela vida, pelo dinheiro, pelo amor,
pelo conhecimento, marcou a elevação da espécie humana.”
Mas a avareza e o desejo insaciável de
bens materiais traz consigo o roubo, a violência e a morte.
Por isso o conto acaba com o desejo nunca
atingido de dinheiro e de poder, e com a morte dos três irmãos.
O tesouro… permanece à espera de outros
incautos!
Se o encontrarem, não pensem que
finalmente terão paz e que todos os vossos desejos serão satisfeitos. Então,
começarão a ter medo de perderem o que conseguiram, de ser roubados, passarão a
sentir-se perseguidos…
“Não poderás servir a Deus e a Mammon!” 2
1 Tio
Patinhas – o supremo pão-duro, unhas-de-fome; Montgomery Burns – a personificação do mal nos Simpson; Shylock – O mercador de Veneza,
Shakespear; Ebenezer Scrooge – Conto
de Natal, Charles Dickens; Harpagon –
O avarento, Moliére
2 Novo
Testamento – Mammon
personifica, na Idade Média, os bens materiais e a avareza, e é uma
divindade incluída nos 7 Príncipes do Mal. É ainda suspeito, pela sua maldade,
de ter um pacto com o Diabo.
Clube de
Leitura, 22 de Maio 2017
Clube de Leitura, 22 de Maio de 2017
José Matias
por Maria Amélia L. V. Correia
Quem sou eu, para me comparar com o narrador desta história,
que se diz filósofo, mas no tocante à explicação da mesma, confessa estar
perante “o incognoscível de uma causa primária, portanto impenetrável “?
Respondo com desfaçatez, que possuindo um “espírito
imprudente”, e bastante atrevido vou tentar uma explicação, à luz de
instrumentos psicológicos, que o narrador na altura não possuía.
Na minha modesta opinião, não seria necessário estender José
Matias no divã, para fazer um diagnóstico certeiro. Trata-se de um problema edipiano,
meus senhores, daqueles de almanaque e de caixão à cova no sentido literal!...
O nosso querido O’Neill sempre com a sua ironia certeira afirmava no poema: “Complexo
de Édipo”:
O Doutor
Segismundo
Que nos
perdoe, se quiser
Mas que
culpa tem o Homem
Que a
sua mãe seja mulher?
Ao que sabemos «Matias Coração de Esquilo» era filho de” uma
delicada e linda senhora”, de quem herdou uma boa renda. Morreu com certeza
sereníssima, ainda jovem e bela, pelo menos para o filho, de consciência tranquila,
e ainda bem, por ter sido uma mãe extremosa de um rebento tão prometedor, sem
lhe passar pela cabeça o destino trágico a que em parte o condenara. Esta linda
e delicada senhora funcionou como uma mãe castradora para este” homem
desconsolador… esta alma escandalosamente banal”, diria mais, para este menino
de mamã.
Senão vejamos por
quem vai apaixonar-se J. Matias? Pela bela Elisa sua vizinha, sublime beleza
romântica, “que raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais”, mas
que para sublime deleite do vizinho se tornava deliciosamente visível, mal assomava
à janela, atravessava o terraço, colhia flores no jardim, qual deusa
inacessível no inefável Éden.
Elisa era casada com um sujeito avelhado “diabético e
tristonho” que não conseguia macular a idealização de J.Matias . Seria porque
aquele homem tão grave não sugeria” ideias inquietadoras de marido ardente”,
por ter descoberto aquela divina mulher algures em Setúbal e a ter trazido para
perto de si, oferecendo-lhe o maior conforto? Todas estas hipóteses são
viáveis.
A verdade é que dez
anos se passaram, em que José Matias viveu a felicidade total e absoluta, imaginando
a deusa ao seu lado, compondo os decores da maneira que imaginava agradar-lhe.
A felicidade tornara-o extremamente generoso.
Mas eis que morre o marido. Que faz Matias? Abala
imediatamente para o Porto embaraçado, ansioso aterrorizado. Os amigos pensaram
que por nobreza de alma, Matias se queria manter distante durante o luto. Engano
supremo engano, o velho Freud veio desmitificar muitas ilusões, e há quem não
lhe perdoe!...
Depois do luto, a própria deusa, ao que sabemos, escreveu,
implorou, foi mesmo ao Porto a fim de convencer José Matias a casar com ela. Em
vão, nem a humilhação de Elisa o dissuadiu, recusou terminantemente!... Porquê?
O casamento seria a desidealização da deusa, da mãe descarnada, virgem,
incompatível com a mulher esposa conspurcada pelo amor carnal.
Elisa que felizmente era humana e saudável, casou com Torres
Nogueira, jovem bem constituído, dotado de farta bigodaça negra. Enfim, ao que parecia
um macho devotado aos prazeres carnais, capaz de transportar a bela aos
píncaros do prazer.
Como reagiu Matias? Voltou para Arroios desolado, continuou
a espreitar Elisa mas de soslaio por causa do marido. Envelheceu destroçado, sofreu
as penas do inferno e entregou-se aos maiores desvarios e escândalos. Jogava,
bebia, gastava dinheiro à tripa forra. Para grande escândalo de toda a Lisboa ofereceu
uma ceia a trinta ou quarenta prostitutas das mais miseráveis que pode
encontrar, por fim montou-as em burros e conduziu-as sobre um grande cavalo
branco, munido de um chicote, até à Graça para saudar a aparição do sol.
Este episódio é a explicação cabal do seu complexo de Édipo.
Para além da mulher idealizada a Mãe intocável, só pode existir a mulher
prostituta a quem Matias devota o mais profundo desprezo, embora eventualmente sirva
para satisfazer os desejos mais vis. Eis o cúmulo da misoginia, a mulher de
carne e osso está votada à humilhação e ao chicote.
Mas a decadência de José Matias não ficou por aqui. Já
arruinado, esfrangalhado ainda assiste à segunda viuvez da bela Elisa.
Humana demasiado humana, ela apaixona-se por a um jovem que
se torna seu amante. José Matias já um pobre vagabundo, espia-a na nova casa
observando diariamente a entrada do amante pela noitinha para partilhar a cama
da bem-amada. E durante o dia? Investiga o jovem amante para verificar se ele
era fiel a Elisa.
Morreu um desgraçado sem-abrigo vítima de uma paixão ultra
romântica, ou melhor um pobre desgraçado que sofria de uma profunda perturbação
psicológica, sem nunca eventualmente ter suspeitado!...
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