As Mulheres em Big Sur
por Maria José Marques
Os homens da Beat Generation eram
poetas e romancistas talentosos fora das convenções sociais e do cânone
literário dos anos 40 e 50. Dados a excessos no consumo de álcool e drogas, muitos
foram desdenhados e ridicularizados pelos seus pares, perseguidos e presos pelas autoridades devido ao escândalo causado pelas obras que
publicavam e pelos desmandos das suas atitudes. Muitas das mulheres que fizeram
parte deste grupo tiveram pior sorte.
Nos anos 1940s, 1950s as mulheres
pertenciam primeiro aos seus pais e
depois aos maridos. A sua independência, era limitada ou não existia de todo.
Se saíssem da linha ou embaraçassem a família eram severamente castigadas,
algumas brutalmente castigadas. Se um homem podia ser rejeitado, posto de
parte, excluído da família, forçado a “ take the Beatnik kick on the road
“ quando saia do caminho convencional e envergonhava a família, para as
mulheres a humilhação familiar resultante do desafio de convenções sociais
podia conduzi-las a um hospital psiquiátrico com tratamento de electro-choques ou
mantê-las fechada em casa. Algumas suicidaram-se. Elise Cowan, por exemplo,foi
namorada de Allen Ginsberg quando ele tentava ser heterossexual , ajudou a
apresentar Kerouac e Joyce Johnson de quem era amiga, mas quando tentou exercer
a sua independência e se juntou ao grupo
Beat de Nova York os pais fizeram o que faziam outras famílias naquela época :
internaram-na num hospital psiquiátrico.
Encurralada, ela suicidou-se.
Caroline Cassady |
As mulheres Beats estavam tão interessadas em “ drinking , fucking and taking drugs “ quanto os homens mas este não é um aspecto a que valha a pena dar relevo quando se procura dar visibilidade à participação feminina no movimento Beat. As mulheres escritoras ou não evidenciavam grande qualidade no início das suas carreiras, ou foram mais conhecidas pela sua associação aos homens de quem foram amigas, namoradas, esposas ou amantes. Algumas partilharam a lamentável misoginia da época que se estendia a todas as mulheres escritoras, muitas vieram a ser reconhecidas pelo seu próprio mérito tais como di Prima, Anne Waldman, Joyce Johnson, Ruth Weiss, Joanne Kyger. Outras são ainda hoje mais lidas pelas biografias que escreveram retratando a vida dos Beatniks vistas pelos seus olhos de testemunhas que partilharam essas vidas. Algumas, como como Carolyn Cassady, foram suficientemente dedicadas ao marido e aos filhos, apesar de todas as vicissitudes do seu casamento com Neal Cassady, para não ser ostracizada e punida pela sociedade, outras tiveram de sobreviver mais à margem.
Em BIG SUR as mulheres aparecem,
chegam à narrativa com os companheiros , maridos ou amantes, e os filhos
pequenos.
Pat McLear and Pat’s wife the
beautiful one and their little sweet 5 year old girl” são uma visão do
paraíso. Jack parece deliciado com esta visão idílica da vida familiar
Cody (…) beside him are ranged
several graduating golden angels from Evelyn golden wife( … ) Emily, Gaby and
Timmy as crianças
Billie( Cody’s mistress ) with son
Elliot
Ron Blake is redhot for Evelyn
Dave Waine and Romana Swartz
Arthur -married to the most beautiful
negro girl in the world
Como dizia o poeta “ beleza é
fundamental “.
As mulheres são sempre “ beautiful “ belas , desejáveis e
disponíveis no presente, nas memórias de encontros passados, são desafio de
conquista, mesmo em segredo
“ Perry loves blonde Billie
secretly “até na expectativa de vidas futuras,”Evelyn is going to get me
in a future lifetime (…) and I seriously believe that will be my
salvation too “e não exclusivamente no envolvimento de sexo, mas para
amparo emocional. Encontra-se conforto no seu regaço. As mulheres põem a mesa e
lavam pratos, (alguém tinha que o fazer) estão atentas aos filhos e até os
acolhem na cama onde fazem sexo com um parceiro de ocasião ( eles têm que
aprender de alguma maneira, é a justificação de Billie).
Billie é a personagem feminina que
Kerouac trata com empatia em BIG SUR. Ela é amante de Cody que vem até Big Sur
acompanhado da mulher e filhos e tenta descartar-se da amante que já não ama
empurrando-a para os amigos. Jack está atento a Billie, ao relacionamento dela
com o filho Elliot, A criança maçadora que faz perguntas intermináveis, que é
extremamente ciosa da mãe de quem leva
uma surra de vez em quando mostra um grande conhecimento de Kerouac do
comportamento infantil e da interacção
de mães e filhos quando amigos, amantes
e pretendentes surgem na vida
deles. Jack está atento a Billie, à evolução do seu estado de espírito até à
ameaça de suicídio. Kerouac dedica-lhe páginas e páginas de profunda
compreensão pelos seus dramas mas as sugestões de vida que surgem como
possíveis não deixam de ser convencionais : casar-se com Perry ou até
refugiar-se num convento. Das personagens femininas Billie ( baseada na pessoa
real Jackie Gibson Mercer que chegou a ser namorada de Kerouac ) tem um maior
desenvolvimento. As restantes mulheres
são apresentadas no seu papel tradicional :acompanham o seu homem ou reagem ao
comportamento dos seus homens, talvez um
tanto à margem das convenções e costumes , nada mais.
Em resumo : em BIG SUR as mulheres
são espectadoras ou intermediárias das interacções das personagens masculinas. Para
além da beleza parecem não trazer muito mais .
Clube de Leitura
Setembro 2021
Maria José Marques
A Cabana
viagem pelos caminhos nebulosos da mente à
procura da redenção
por Manuela Pereira
Big Sur, Jack Kerouac_1962
“E compreendo a insuportável angústia da loucura: como
é possível que os leigos na matéria achem que os loucos são ´felizes` (…) ´Há
uma compressão em torno da cabeça que magoa, há um terror espiritual que magoa
ainda mais, eles são muito infelizes, em especial porque não conseguem explicar
a ninguém o que sentem nem ninguém consegue arrancá-los à paranóia histérica em
que estão mergulhados, é por isso que eles sofrem mais do que quaisquer outros
seres no mundo e até, diria eu, no universo.” Pag.201
Descida para a cabana
A descida de Raton Canyon tem que a fazer
sozinho. É a fuga ao ´desespero ébrio dos últimos três anos que é um desespero
físico e espiritual e metafísico acerca do qual nada se aprende na escola (…)
`11 É a viagem de introspecção, de encontro com a natureza e consigo mesmo.
Raton Canyon |
Raton Canyon
Na penosa caminhada para o
seu refúgio, a cabana perdida no meio de montanhas isoladas e agrestes, vai
encontrar o inferno dos seus medos, das suas angústias e inseguranças. A
natureza com que se depara sozinho na escuridão é medonha, tenebrosa,
desconhecida. Imagens primitivas despertam-lhe medos inconscientes. Isolado do
mundo sente o solo a fugir-lhe debaixo dos pés, ouve uma água negra
desconhecida, ruidosa e em movimento. Ouve o murmúrio incessante das ondas de uma
massa esmagadora presa há milénios pela rocha imóvel da montanha opaca. Uma
matéria desconhecida viva no fundo do desfiladeiro, signo de poderes obscuros.
Sentimos o medo cósmico do homem primitivo entregue à fúria dos elementos. A
narrativa só nos traz um momento de repouso quando no final de todos os
desfiladeiros tortuosos e estreitos, abruptos precipícios chegamos finalmente a
uma subida acentuada. Inverte-se o caminho para as trevas e descansamos. Por
fim descobrimos um riacho e a ponte sobre a água e percebemos as profundezas
cheias de perigos a que chegamos. Mas percebemos que o caminho desamparado que
atravessámos tem também uma ponte aonde podemos voltar e que podemos
atravessar. Do outro lado, `(…) estende-se um prado encantador (…) dou por mim a
percorrer um agradável carreiro de areia que vai serpenteando pelo meio de
urzes secas e perfumadas como se eu tivesse acabado de saltar do inferno para o
velho e conhecido Paraíso na Terra, nem mais nem menos (…) `16 Mas durante
algum tempo Jack Duluoz vive ainda numa ´atmosfera pavorosa` com os ´estertores
de uma Criação gemebunda em estado bruto` com ´quilómetros e quilómetros de um
horrível vaivém aquoso`18 ´E o pior de tudo é a ponte!`17 ´Depois de dormir na
areia branca mesmo ao lado da falésia (…) erguemos os olhos para o céu (…)
estamos precisamente debaixo daquela ponte vertiginosa com a sua delgada linha
branca que se estende de um rochedo a outro e aqueles carros insensatos
cruzam-na velozmente como num sonho (…) `18 A ponte tem a verticalidade de uma
torre, elevando-se das mais terrestres e aquáticas profundezas até ao céu. A
torre é o lugar do devaneio, o lugar dos grandes sonhos, sempre inacessível. ´E
ao erguermos os olhos para aquela ponte inacreditavelmente alta sentimos a
presença da morte (…) `17
A cabana
´Eis a morada do bhikku na floresta, tudo o
que ele pede é sossego, sossego ele terá.` 21
A cabana não precisa de
descrição. A cabana leva-nos para um outro lugar, longe das preocupações
citadinas e da casa atravancada. É o verdadeiro refúgio, sonho de evasões
longínquas. A cabana pertence às lendas. É o refúgio primitivo onde nos
encontramos na solidão extrema e no despojamento absoluto. O centro da cabana é
a morada do ser_ o eu, fora da cabana é o universo primitivo_ o não eu. ´(…) a
cabana transforma-se subitamente na minha casa só porque lá cozinhei uma
refeição (…) então chega o crepúsculo, arde a chama sagrada de vestal do belo
candeeiro de querosene (…) ´Cai a noite, o candeeiro de querosene projecta a
sua luz no interior da cabana.` ´ (…) Ouve-se o ruído monótono das abelhas (…)
quando o zumbido volteja cada vez mais próximo (outra vez o nó na garganta)
refugiamonos dentro da cabana e esperamos (…) finalmente habituo-me ao zumbido
das abelhas, o qual parece ocorrer uma vez por semana, como uma grande festa --
E portanto acabo por achar tudomaravilhoso.`23 Embora perdida no universo, a
cabana tem sempre um ponto de referência, uma luz. A luz ao mesmo tempo vela e
vigia. É a protecção da cabana contra as forças que a sitiam. É também a
ligação ao mundo exterior que nos permite manter afastados e ao mesmo tempo
ligados. Há mais uma luz em Big Sur sozinha no alto da falésia, uma lâmpada à
janela de uma casa distante. A luz íntima do refúgio sugere uma imagem de
repouso e confiança e aceitamos a amizade do mundo. A cabana tem o fogo e o
calor ´De regresso à cabana acendo o lume e sento-me com um suspiro e há folhas
roçagando no telhado de zinco, é Agosto em Big Sur (…) `30 ´Entretanto a
propósito e todavia, todos os dias são frios e nublados, ou húmidos (…) Mas
também isso acaba por revelar-se uma circunstância maravilhosa (…) `31 O Verão
enevoado na floresta húmida foi sublime e além disso quando o sol triunfou em
Agosto produziu-se um fenómeno horrível, grandes rajadas de um vento assustador,
tempestuoso, desataram a jorrar para dentro do desfiladeiro fazendo com que
todas as árvores bramissem com uma intensidade verdadeiramente assustadora (…)
`31 Mas quanto mais a cabana no valezinho é fustigada pelo vento mais forte o
seu abrigo, o seu valor de intimidade e Jack sente-se em segurança. ´Mas a
cabana de Monsanto tinha defeitos como o facto de não haver redes nas janelas
(…) apenas grandes portadas de madeira (…) se as deixo abertas fica demasiado
frio, se as deixo fechadas não se vê nada (…) `27 A janela/porta é o contacto
do ser do homem com o ser do mundo, é através dela que se faz a ligação do eu
_aqui e do outro_aí. Às vezes a porta está bem fechada, outras vezes está
escancarada. Depois de nos isolarmos do mundo para encontrarmos a paz, depois
de encontrarmos a segurança e a ventura, volta o desejo de socializarmos.
Fechado no ser, sempre há-de ser necessário sair dele. A experiência de
intimidade convida à imaginação. A porta desperta em nós direcções de sonho E é
quando a porta está entreaberta que o futuro se desenha., quando a porta vem
proporcionar as imagens da hesitação, do desejo, da segurança ou da liberdade.
´E aqui não há quase espaço; e tu quase te acalmas com o pensamento de que é
impossível que alguma coisa de muito grande possa caber nessa estreiteza.`, diz
Rilke, para logo o texto viver a dialéctica ´Mas lá fora, lá fora tudo é
desmedido. E no momento em que o nível de fora sobe, também em ti ele se eleva
(…) aspirado para o alto até às últimas ramificações da tua existência
infinitamente ramificada (…) Teu coração te expulsa para fora de ti mesmo, teu
coração te persegue, e já estás quase fora de ti, e já não podes mais. (…) `in
A poética do Espaço, Gaston Bachelar 231 E a noite sem limite deixa de ser um
espaço vazio. Todos os sentidos estão despertos. E depois do ´dia mais
maravilhoso de todos, em que eu me esqueci completamente de quem era onde
estava ou que horas seriam (…) ` ´e observo maravilhado a água límpida,
gorgolejante e rápida no seu novo percurso (…) `32 ´E outras coisas assim ---
Uma amálgama de pequenas alegrias deste género (…) `33 ´(…) comecei a fartar-me
e anotei no meu diário com estupefacção ´Já farto?` 35 (…) ´E assim parto`.49
Mais tarde, no regresso à cabana com os amigos ´O dia começa normalmente (…)
183 mas tudo se transfigura rapidamente. A cabana já não é mais uma cabana, Big
Sur transfigura-se torna-se lugar de férias, lugar de excessos, e todos os
fantasmas voltam para persegui-lo. E tudo recomeça.
Manuela Pereira
Clube Leitura_23/2/ 2021 (terceira vaga)
O EXISTENCIALISMO EM KEROUAC
por Maria João leite de Castro
To be “beat” is to be at the bottom of your
personality, looking up; to be existencial in the Kierkegaard rather than the
Jean-Paul Sartre sense
John
Clellon Holmes (cit in”A Estrada de Jack Kerouac: uma viagem existencial”, Sara
Sá Jones, Univ. Porto, 2014).
Em
“Big Sur”, tal como em “Pela Estrada Fora”, a estrada, a viagem e o movimento
que lhes é inerente, são elementos fulcrais das suas obras. Esta viagem é,
sobretudo, uma viagem existencial ao fundo de si próprio e às margens últimas
da consciência para, a partir dela, criar a sua própria voz enquanto escritor
e, de alguma forma, encontrar a tal «coisa desconhecida e central à
existência». O mundo que Kerouac descobre no âmbito dessa viagem é um mundo
confuso, habitado por fantasmas e demónios e também por sinais de
espiritualidade perdida, como a Cruz que se revela na fase final do seu
delírio.
Só no
início do sec. XXI se recuperou a importância da influência que o
existencialismo exerceu sobre os “beats” e nomeadamente sobre Kerouac. John C.
Holmes , em 1958, considerou que esta influência se inspirava muito mais em
Kierkegaard do que em Sartre. (“The
Philosophy of the beat generation”, cit in “A Estrada de Jack Kerouac:
uma viagem existencial”, Sara Sá Jones, Univ. Porto, 2014).
Tal
como em Kierkegaard, para Kerouac, o substracto da existência é a procura do
sentido final, mas sempre misterioso. Essa «coisa central» é dificilmente
penetrável “ainda que por vezes, no sopro do saxofone desgarrado e
incentivado pela electrificação ambiente, ou no veloz ziguezaguear da estrada
(…) os protagonistas acreditem absolutamente «tê-lO», sem precisarem de se
ralar com defini-lo” (Margarida Vale do gato, Pela Estrada Fora
,Introdução).Ou se revele em momentos inesperados : (…) e sinto-me invadido
pelo amor quando me dou conta que a vida, tão sôfrega e incompreendida, não
deixa por isso de estender a mão magra e esquelética para mim e para Billie (…)
(Kerouac,Big Sur, pág.195)
Tal como em Kierkegaard, há a recusa de uma
evolução racional colectiva, que tudo esclarece, à maneira hegeliana, e que
dissolve o eu individual numa síntese final e conciliadora. Para Kierkegaard, a
existência individual torna-se a medida de tudo e o processo de crescimento
interior leva a um máximo grau de individualidade. A verdade é estritamente
pessoal e fruto da movimentação do individuo na linha do tempo, da tensão entre
duas fontes internas, nomeadamente o finito e o infinito. Esta procura é
sobretudo vivida com paixão num presente que a cada minuto se transforma e se
esvai e num paradoxo que nenhuma síntese consegue conciliar e apaziguar.
Também
para Kerouac, a paixão é o elemento central da existência vivida intensamente e
expressa através de uma escrita que se desenvolve “no calor do momento
e não a posteriori, numa cama de enfermo. (Jack Kerouac, Big Sur, Introdução).
Aliás, Kerouac considera que a vida é de tal forma sagrada que a única coisa
a fazer é vivê-la, escrever não passa do fruto de uma reflexão tardia,
não é mais do que um mero arranhão superficial (pág.159). Por isso há uma
contradição entre a escrita e a vida, pois como refere Cody, o espírito flui
o espírito eleva-se e ninguém tem a mais pequena hipótese de…- (pág.159).
mas a contradição faz também parte da vida, não pode ser resolvida e tem, por
isso de se expressar de alguma forma seja nos sons circulares e desconexos do
jazz, seja numa escrita que se quer, também ela, circular e desviante.
Para
dar voz à narração dessa existência fugidia, absurda e impossível de fixar, é
necessário um novo vocabulário e novas categorias. Tanto em Kierkegaard como em
Kerouac questões como o tempo, a identidade, a santidade,
a redenção, movimento/devir e morte são conceitos chave.
Em On
the Road e em Big Sur novos heróis se desenham, heróis subterrâneos no
sentido dostoiévskiano (Kerouac partilha
com Allen Ginsberg grande fascínio por Dostoievski). No toxicodependente, nos
sem abrigo, nos que vivem à margem da sociedade encontra uma maior pureza, um
regresso à infância e autenticidade perdida que os eleva a uma espécie de anjos
deambulantes em oposição a uma sociedade materialista e fútil. Dave Wain,
Pascal, Johnson, Joey Rosenberg, Cody, o próprio Kerouac…todos eles representam
este tipo de herói que, embora vivendo contrariando os códigos sociais e morais
são, de alguma forma santificados.(…) durante as minhas sessões de meditação
budista nos bosques (…) passei a ver-me como um anjo solitário enviado
especialmente à terra como mensageiro do Céu para dizer a toda a gente ou
mostrar a toda a gente através do exemplo que a sua sociedade indiscreta e
trocista era na verdade uma Sociedade Satânica e que eles estavam todos no
caminho errado.
(Kerouac,Big
Sur, pag. 133).
Estes
heróis, movidos no excesso, procuram através dele uma redenção que, também ela, se vislumbra em momentos
fugidios e através de diferentes formas, seja num momento de ligação amorosa: (…)
dançámos os dois e o Cody observou-nos ansiosamente, formávamos uma espécie de
par romântico e às vezes estremeço quando penso no mistério estelar de saber
como é que ela irá encontrar-me numa existência futura, uau!-e acredito
sinceramente que isso representará a minha salvação.(Kerouac, Big Sur,
pág.155) seja num momento de delírio alcoólico: (…)e eis senão quando a Cruz
aparece diante de mim – Tenho os olhos cheios de lágrimas - «Vamos ser todos
salvos»- (Kerouac, Big Sur, pag. 229).
A
ideia de redenção, está também muito próxima da formação religiosa de Kerouac e
serve de pano de fundo a uma espiritualidade que se procura através de
diferentes meios, seja através do contacto com a natureza, da influência
budista, das conversas com Cody e até dos excessos (porque em certa medida o
alcoólico alcança a sabedoria, nas palavras de Goethe ou de Blake ou lá de quem
foi “O caminho para a sabedoria passa pelo excesso” – (Kerouac, Big Sur,pág.129).Espiritualidade
latente mas que nunca se alcança verdadeiramente contribuindo para o “ciclo de
desespero” que caracteriza a vida e obra de Kerouac.
A Natureza enquanto personagem
por Alexandra Azevedo
Quem te disse que
tinhas um chapéu na cabeça? A minha cabeça nunca interroga chapéus.
|
Em Big Sur, a Natureza
é uma das personagens e, do meu ponto de
vista, é mesmo a personagem principal.
Não acidentalmente, a palavra que inaugura o romance é um dos
quatro elementos clássicos da Natureza, o Ar _O vento arrasta os tristes
acordes da «Kathleen». Aliás, a referência à melodia que os sinos tocam não
é também, ela própria, acidental. “I’ll
take you home Kathleen” é uma canção popular de 1875, escrita por Westendorf, um americano de origem alemã, para a
mulher quando esta, acometida de saudades, regressa a Nova Iorque, donde
era natural. É também um regresso, um “regresso
secreto” a S. Francisco que Jack Duluoz quis programar com o seu amigo Lorenzo
Monsanto para que este o conduzisse, igualmente em segredo, à sua cabana na
floresta de Big Sur para poder enfim “ficar sozinho e tranquilo durante seis
semanas”. Mas este regresso, tal como indiciam “os tristes acordes de Kathleen” , “tocado nos sinos em notas tão tristes pelos ventos da neblina que
sopram sobre os telhados da velha e lúgubre Frisco”(10)não passará, ele também,
de um regresso triste e não trará a
redenção que o encontro a sós com a natureza selvagem e, por isso, pura, numa
concepção ainda muito romântica da pureza essencial do natural não contaminado
pelo homem, faria expectar.
Na verdade, as expectativas que a personagem criara
relativamente à natureza/ refúgio que
idealizara serão dramaticamente desmentidas pela realidade que encontrará. Em
vez de “um sítio acolhedor, bucólico, todo ele florestas rústicas e alegria”(17),
o que encontra é “uma algazarra fantasmagórica e misteriosa na escuridão”(17). A
noite, a escuridão, a ausência de luz acentuam a fragilidade do homem só diante
da natureza.
A Terra, o segundo elemento clássico da Natureza, não é, assim, a mãe que ama e acode. Pelo contrário, as
escarpas, os arbustos, os “fetos horrendos”, as “grandes árvores perigosas”
tudo se conjura para expulsar o intruso que o homem é. “Tenho medo” confessa a personagem. ”Tenho
medo como se um chicote, ainda por cima, molhado, fosse vergastar-me a pele.__
Ouço a restolhada de um dragão verde e viscoso nos arbustos_ _Uma guerra
furiosa que recusa a minha intromissão. Dura há um milhão de anos e não quer
que eu irrompa nas suas trevas”(19). E
nem quando regressou uma segunda vez a Big Sur com “uma chusma de acompanhantes”
a visão do desfiladeiro foi menos assustadora “Como se a natureza tivesse uma
face gargantuesca e leprosa com narinas largas e grandes papos por baixo dos
olhos e uma boca suficientemente grande para engolir quinhentas carrinhas
todo-o-terreno e dez mil Dave Wains e Cody Pomerays sem soltar um suspiro de
saudade ou de arrependimento”(104). Os cenários grandiosos e inóspitos que
permitiam aos heróis românticos do século XIX europeu respirarem livremente por
neles verem reflectidas a sua coragem e a sua ânsia de absoluto revelam-se
insolitamente inapropriados para o
anti-herói que Duluoz aqui encarna. O escritor aclamado, o Rei dos Beatniks, o
famoso autor de On The Road sente-se
encurralado e quer desesperadamente fugir da ditadura do novo, da ditadura do
original, da ditadura da ruptura e do desregramento que os bandos de
admiradores lhe impõem sem piedade. Duluoz quer apenas estar só, quer apenas ser
simples e crê que só o poderá conseguir longe da civilização que o consagra
como seu herói. As religiões, o budismo,
o hinduísmo, o catolicismo também não apaziguam os seus medos e , consternado,
verifica que a natureza não tem por ele qualquer apreço ou sentimento.
Apenas o Fogo
surge aqui e ali como símbolo de algum conforto da alma e as escolhas lexicais são, a
esse respeito, inequívocas (acolhedora, brilho, quente, refúgio, querido,
cativante)
_na penumbra acolhedora da cabana, junto ao brilho quente e
vermelho do
fogo de lenha” (139)
_”o interior da cabana com o lume finalmente aceso volta a
ser o refúgio querido e cativante, agora
tão nítido no meu espírito enquanto o contemplo como uma fotografia
invulgarmente bem focada” (109);
“Oh os bons velhos tempos quando ficávamos acordados até
tarde junto à lareira acesa a debater a personalidade do Cody” (144)
Mas esse conforto é fugaz e não o livra da angústia interior
que o consome verdadeiramente: “Sinto remorsos por pertencer à raça
humana”(185); “e eis-me aqui um escritor americano de uma imbecilidade óbvia e perfeita”(186);
“tenho medo… Quero ir para casa e morrer junto do meu gato” (187)
E só a Água, o mar
imenso, glorificado nesse indefinível poema com que termina o romance, o “Mar Pacífico”(287) com “as suas
absurdas cidades silenciosas” poderá
finalmente pacificar as também silenciosas e horríveis tempestades interiores
que o atormentam :”Nenhuma tempestade é tão silenciosa e tão horrível como a
tempestade interior”(287)
O Sur, o Big Sur é,
assim, o verdadeiro protagonista deste romance atormentado e melancólico, mas
acima de tudo um romance lúcido que, não por acaso , o toma para título
“Adeus, Sur” (289)
Porto, 8 de Setembro de 2021
Alexandra Azevedo
Sem comentários:
Enviar um comentário