quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Jakc Kerouac

              A “prosa espontânea” de Kerouac 

                                                                 por António Nabais 

O poeta é um fingidor” Fernando Pessoa A expressão “prosa espontânea” pode ser considerada uma contradição nos termos, como demonstrou, pelo menos, Fernando Pessoa, em “Autopsicografia”. Na realidade, no primeiro verso, onde está “poeta” pode ler-se escritor ou mesmo falante. A história está carregada de narrativas, mesmo de ficções, que serviram, durante anos, para perpetuar o mito de que haveria espontaneidade na literatura, esse planeta alegadamente povoado de gente que despejava o coração directamente no papel, sem intermediação do cérebro. A sinceridade será possível, a espontaneidade, não. 

Mas como se exprime literariamente a espontaneidade, de que modo se exprime uma impressão de espontaneidade? Na realidade, dir-se-ia que a espontaneidade é contrária à linguagem por ser esta um acto racional. O espontâneo exprime-se através do grito, da interjeição, do silêncio. A palavra, seja ela qual for, já o resultado de uma escolha, não uma reacção ou um espasmo. Em Big Sur, a expressão da espontaneidade é um valor importante, tendo em conta, desde logo, a natureza autobiográfica de uma personagem que quer viver a vida no momento, o seu desejo de se ligar à natureza e de afastar da humanidade, a presença da poesia como expressão mais tradicionalmente associada à espontaneidade, a busca de uma verdade essencial que é um desejo de fuga (patente, também, no recurso ao álcool, que, como se sabe, é onde está a verdade). A onomatopeia é um dos recursos de que se socorre, como se pode verificar na sétimo capítulo, quando tenta reproduzir os sons do mar (pp. 36-37), que serão inscritos em “todo o poema demencial «O Mar». Também neste excerto, e, muitas vezes, ao longo do livro, podemos ver o uso do travessão que parece corresponder a pausas que separam frases como que aparentemente desligadas. Simbolicamente, este desejo de espontaneidade está também patente na crítica ao uso da roupa como algo que deve ser apenas confortável e simples. Tendo em conta que a repetição é uma figura que pode configurar uma ausência de reflexão sobre a linguagem e se pudermos associar isso à espontaneidade, a anáfora que atravessa quase todo o oitavo capítulo será mais um sintoma de uma prosa espontânea. A repetição está, muitas vezes, associada a uma linguagem infantil, ou seja, mais próxima do não-pensamento. No nono capítulo, a demência exprime-se através de uma mesma impressão de espontaneidade, de palavras que fluem como se não fossem pensadas. A repetição da palavra “gelatina”, no último parágrafo (p. 49) é mais uma aparência de espontaneidade. No décimo primeiro capítulo, na p. 59, o uso do presente serve também para transmitir uma ideia de espontaneidade. Não me parece exactamente um presente histórico, mas antes uma maneira de tornar presente a narrativa, obrigar o leitor a acompanhar cada momento do diálogo com Monsanto. A última frase da narrativa (não do livro, que termina com o poema) parece ser uma desvalorização da palavra, ou seja, um louvor da espontaneidade: “Não é necessário dizer nem mais uma palavra.” O poema está todo ele cheio de expressões de espontaneidade, incluindo frases desconexas e onomatopeias. Aliás, o subtítulo do poema constitui uma valorização dos sons, não das palavras. Vale a pena, ainda, lembrar o simbolismo do mar:









O movimento literário da Beat Generation

               ou

 a Beat Generation em Big Sur- uma leitura “distópica”

por Delfina Rodrigues

 

Nota prévia: Pura coincidência, sem leituras outras, apesar de hipotéticas influências que a atmosfera conspirativa bebida em algumas páginas de “Big Sur” possa ter inscrito em mim, tinha iniciado este texto no dia em que é notícia a morte de Laurence Ferlinghetti, lendária figura da Geração Beat, como referido no obituário, editor de Kerouac e de vários autores e obras da Geração Beat e dono da livraria e editora “City Sights”, alter ego, acrescento, de Lorenzo Monsanto, referido logo na 1ª página de Big Sur.




 

A Beat Generation

        O que é?

 

        Disparam, em livre associação, as palavras artistas, poetas, escritores, pós-guerra, S. Francisco, Califórnia, álcool, drogas, mochilas, nomadismo, iconoclastia, boémia, hedonismo, contra-cultura, irreverência… associadas ao movimento literário em causa. Fazem parte (provêm?) do nosso subconsciente individual ou colectivo, actualizados pelas primeiras leituras ensaísticas feitas.

      Estas coordenadas, ou estes pré-conceitos, espácio-temporais, filosóficos, sociais, estéticos, éticos, não negados pela leitura de Big Sur, podem transformar-se, contudo, numa redutora simplificação de um movimento literário necessariamente mais complexo, que exigiria uma leitura extensiva das obras emblemáticas do movimento. Não o tendo feito, procuro escapar à dificuldade, cingindo-me à obra em análise, aí procurando sinais de uma filiação e, simultaneamente, detectando indícios de ocaso/fuga.


       Em Big Sur, a imersão na atmosfera sugerida não se faz esperar. Em registo de 1ª pessoa, singular ou plural, num texto de pendor autobiográfico, logo nas primeiríssimas linhas o eu narrativo acorda de “mais uma carraspana” que a leitura integral revela não ser ocasional, em pleno ”bairro de espeluncas”, cenário também recorrente, para ir encontrar-se com “toda a gente”, “os compinchas”. Com a malta, diríamos.

       Estes 1ºs “ingredientes” desaguam depressa na referência explícita ao “Rei dos Beatnicks”, Jack Duluoz (alter ego de Kerouac), como sabe que é reconhecido, acabado de chegar a S. Francisco, etapa intermédia de uma viagem mais longa que, partindo da Costa Leste, tinha como meta uma cabanaem Big Sur, oferecida por Lorenzo Monsanto, na demanda de um exílio despojado, próximo da Natureza,que lhe restituísse a paz que o ruído da fama lhe tinha usurpado.

       Uma vez mais, um tema caro à Geração Beat como tema/cenário central desta obra.: a viagem, fuga de “um desespero físico e espiritual e metafísico”, neste caso. Viagem física, viagem espiritual, acompanhada de um descida aos Infernos em que pontuam o desespero existencial, o “mal de vivre”, a autoconsciência acusatória, as alucinações, as viagens oníricas…, assim se desenhando um perfil existencial - e literário? - comum a outros membros da Geração Beat.

 

       Por outro lado são recorrentes, a atestar a filiação literária, filosófica, estética, referência a autores inspiradores desta geração do pós-guerra americano: é o “Estranho”, de William Leonard Burroughs, a referência aos estertores de uma geração gemebunda ao jeito de Blake, Rimbaud, “As Moscas“ de Emily Dickinson, associada à poesia metafísica e a um certo misticismo, Orson Wells, Proust, James Joyce, Stern, Round, Wallace Stevens…

 

       Preenchem este tempo da viagem velhos circuitos, externos e internos, em movimento perpétuo, com referência explícita a “Pela Estrada Fora”, ícone literário do movimento. Habitam a obra a livraria, os espaços comunitários, as mulheres partilhadas, a casa colectiva, a barafunda das mochilas, colchões de campismo, livros, bugigangas, organização colectiva do trabalho, as festas delirantes, o maravilhoso e o demencial, ou o hedonismo demencial.

       São igualmente evidentes, por afirmação directa, dedução ou inferência, o gosto pelo efémero/instável, uma filosofia do desapego, tangencial ao espírito/gosto zen, a recusa dos valores estáveis do sistema, i.e., dos valores burgueses, a nostalgia do regresso à infância: “Regressa à infância, limita-te a comer maçãs e a ler o teu catecismo… e ao diabo com os projectores de Hollywood.” (p. 33) [i]

       “A inutilidade das coisas caras que comprei e não cheguei a usar” (p.44)[ii]

       “São as pequenas coisas que importam”

 

“Big Sur” oferece-nos, também, um discurso e uma visão distópicos da Geração Beat e uma representação social da mesma.

 

       De forma mais ou menos explícita, mais ou menos disfórica, acusa o nosso herói uma pertença cansada ao universo que perfilha, algum agastamento que favorece a assunção de posições críticas, irónicas ou sarcásticas, ao longo da obra, designadamente quando afirma:

       “Fiquei subitamente sozinho com este puto beatnick marado” (p.125)[iii]

       “Porque, afinal de contas, o pobre rapaz acredita sinceramente que há algo de nobre e elevado e generoso em toda esta treta beat, e segundo dizem os jornais é suposto eu ser o rei dos Beatnicks, mas ao mesmo tempo já me mete nojo tanto entusiasmo da parte das hordas de adolescentes histéricos que tentam conhecer-me e verter toda a sua existência na minha para que eu dê saltinhos e diga sim, sim é isso mesmo, coisa que já não consigo mesmo fazer” Leia-se, o cansaço dos epígonos. (p.125)[iv]

       “Estou muito longe da Geração Beat, aqui nesta floresta húmida” (p.35)[v]

       “Chega de devassidão, está na hora de eu contemplar o mundo serenamente e gozá-lo”… “nada de bebida, nada de drogas, nada de pielas com beatnicks e bêbados e drogados e toda essa malta…”

       “beatnicks idiotas” (p.66) [vi]

       “E embora os frenesis demenciais dos velhos tempos que passamos juntos na estrada tenham serenado…” (p.80)[vii]

       “Agora há demasiadas pessoas que querem falar connosco para nos contarem as suas histórias, estamos encurralados, cercados e esmagados pelo número” (p.81)[viii]

“Um verdadeiro manicómio e que corresponde precisamente à imagem que os jornalistas querem dar da Geração Beat, mas apesar de tudo, não deixa de ser um modo de vida inofensivo e agradável para jovens solteiros” (p.71)[ix]

 “O círculo fechou-se em torno dos velhos heróis da noite” (p.5)[x]

 “… a nossa demencial residência comunitária” (p.83)[xi]

 “Lex é o tipo de gajo que não devia viver nesta residência comunitária cheia de beatnicks marados… (p.85)[xii]

“Apareceu agora um novo grupo clandestino de estranhos beatnicks ou coisa parecida que se vestem de uma maneira elegante muito peculiar” (p.86)[xiii]

 “Além disso … porque os outros doentes, veteranos do exército, vão certamente reparar que ele recebeu a visita de um bando de beatnicks maltrapilhos…”(p.95)[xiv]

 

“Sabes, muitos desses artigos e críticas achincalhantes que escreveram a atirarem-se a nós, poetas e escritores da onda beat de São Francisco, só apareceram porque muitos membros do nosso grupo não têm ASPECTO de escritores ou de intelectuais ou coisa parecida, tu e o Pomeray, aliás, têm um mau aspecto terrível, e eu próprio de certeza que também não me encaixo nos padrões respeitáveis” (p. 139)[xv]

       E repete o adjectivo demencial para caracterizar a cozinha, para caracterizar o dia, para caracterizar o poema “O Mar”…

 

       Se, de “Pela Estrada Fora” se diz tratar-se da “Bíblia” da Geração Beat, poderemos associar “Big Sur” a prenúncio de um ocaso? A um “prenúncio de morte”?

       “Todos concordamos que não conseguimos acompanhar esta pedalada, que estamos cercados pela vida, que nunca a compreenderemos, de maneira que optamos por concentrá-la nos nossos copos bebendo goles de whisky pelo gargalo da garrafa e quando esta fica vazia eu saio a correr do carro e vou comprar outra, ponto parágrafo” (p.78)[xvi]

 

       Mutatis mutandis, associo este bloqueio ao “tropeçar contra um muro” de que fala Octávio Paz em “Los Hijos del Limo”:

“A vanguarda é uma exasperação e um exagero das tendências que a precederam. A violência e o extremismo enfrentam rapidamente o artista com os limites da sua arte ou do seu talento… Embora a vanguarda abra novos caminhos, os artistas e poetas percorrem-nos com tal pressa, que não tardam em chegar ao fim e tropeçar contra um muro”.

 

Eis o meu desafio para o debate.

Porto, 22.02.2021


Delfina Rodrigues

 




Sem comentários:

Enviar um comentário