A “prosa espontânea” de Kerouac
O movimento literário da Beat Generation
ou
a Beat
Generation em Big Sur- uma leitura “distópica”
por Delfina Rodrigues
Nota
prévia: Pura coincidência, sem leituras outras, apesar de hipotéticas
influências que a atmosfera conspirativa bebida em algumas páginas de “Big Sur”
possa ter inscrito em mim, tinha iniciado este texto no dia em que é notícia a
morte de Laurence Ferlinghetti, lendária figura da Geração Beat, como referido
no obituário, editor de Kerouac e de vários autores e obras da Geração Beat e
dono da livraria e editora “City Sights”, alter ego, acrescento, de Lorenzo
Monsanto, referido logo na 1ª página de Big Sur.
A Beat Generation
O
que é?
Disparam, em livre associação, as
palavras artistas, poetas, escritores, pós-guerra, S. Francisco, Califórnia, álcool,
drogas, mochilas, nomadismo, iconoclastia, boémia, hedonismo, contra-cultura,
irreverência… associadas ao movimento literário em causa. Fazem parte (provêm?)
do nosso subconsciente individual ou colectivo, actualizados pelas primeiras
leituras ensaísticas feitas.
Estas coordenadas, ou estes pré-conceitos,
espácio-temporais, filosóficos, sociais, estéticos, éticos, não negados pela
leitura de Big Sur, podem transformar-se, contudo, numa redutora simplificação
de um movimento literário necessariamente mais complexo, que exigiria uma
leitura extensiva das obras emblemáticas do movimento. Não o tendo feito, procuro
escapar à dificuldade, cingindo-me à obra em análise, aí procurando sinais de
uma filiação e, simultaneamente, detectando indícios de ocaso/fuga.
Em Big Sur, a imersão na
atmosfera sugerida não se faz esperar. Em registo de 1ª pessoa, singular ou
plural, num texto de pendor autobiográfico, logo nas primeiríssimas linhas o eu
narrativo acorda de “mais uma carraspana” que a leitura integral revela não ser
ocasional, em pleno ”bairro de espeluncas”, cenário também recorrente, para ir
encontrar-se com “toda a gente”, “os compinchas”. Com a malta, diríamos.
Estes 1ºs “ingredientes” desaguam depressa na referência explícita ao “Rei dos Beatnicks”, Jack Duluoz (alter ego de Kerouac), como sabe que é reconhecido, acabado de chegar a S. Francisco, etapa intermédia de uma viagem mais longa que, partindo da Costa Leste, tinha como meta uma cabanaem Big Sur, oferecida por Lorenzo Monsanto, na demanda de um exílio despojado, próximo da Natureza,que lhe restituísse a paz que o ruído da fama lhe tinha usurpado.
Uma vez mais, um tema caro à Geração
Beat como tema/cenário central desta obra.: a viagem, fuga de “um desespero
físico e espiritual e metafísico”, neste caso. Viagem física, viagem
espiritual, acompanhada de um descida aos Infernos em que pontuam o desespero
existencial, o “mal de vivre”, a autoconsciência acusatória, as alucinações, as
viagens oníricas…, assim se desenhando um perfil existencial - e literário? -
comum a outros membros da Geração Beat.
Por outro lado são recorrentes, a
atestar a filiação literária, filosófica, estética, referência a autores
inspiradores desta geração do pós-guerra americano: é o “Estranho”, de William
Leonard Burroughs, a referência aos estertores de uma geração gemebunda ao
jeito de Blake, Rimbaud, “As Moscas“ de Emily Dickinson, associada à poesia
metafísica e a um certo misticismo, Orson Wells, Proust, James Joyce, Stern,
Round, Wallace Stevens…
Preenchem este tempo da viagem velhos
circuitos, externos e internos, em movimento perpétuo, com referência explícita
a “Pela Estrada Fora”, ícone literário do movimento. Habitam a obra a livraria,
os espaços comunitários, as mulheres partilhadas, a casa colectiva, a barafunda
das mochilas, colchões de campismo, livros, bugigangas, organização colectiva
do trabalho, as festas delirantes, o maravilhoso e o demencial, ou o hedonismo
demencial.
São igualmente evidentes, por afirmação directa, dedução ou inferência, o gosto pelo efémero/instável, uma filosofia do desapego, tangencial ao espírito/gosto zen, a recusa dos valores estáveis do sistema, i.e., dos valores burgueses, a nostalgia do regresso à infância: “Regressa à infância, limita-te a comer maçãs e a ler o teu catecismo… e ao diabo com os projectores de Hollywood.” (p. 33) [i]
“A inutilidade
das coisas caras que comprei e não cheguei a usar” (p.44)[ii]
“São as pequenas
coisas que importam”
“Big
Sur” oferece-nos, também, um discurso e uma visão distópicos da Geração Beat e
uma representação social da mesma.
De forma mais ou menos explícita, mais
ou menos disfórica, acusa o nosso herói uma pertença cansada ao universo que
perfilha, algum agastamento que favorece a assunção de posições críticas,
irónicas ou sarcásticas, ao longo da obra, designadamente quando afirma:
“Fiquei
subitamente sozinho com este puto beatnick marado” (p.125)[iii]
“Porque, afinal de contas, o pobre rapaz
acredita sinceramente que há algo de nobre e elevado e generoso em toda esta
treta beat, e segundo dizem os jornais é suposto eu ser o rei dos Beatnicks,
mas ao mesmo tempo já me mete nojo tanto entusiasmo da parte das hordas de
adolescentes histéricos que tentam conhecer-me e verter toda a sua existência
na minha para que eu dê saltinhos e diga sim, sim é isso mesmo, coisa que já
não consigo mesmo fazer” Leia-se, o cansaço dos epígonos. (p.125)[iv]
“Estou muito
longe da Geração Beat, aqui nesta floresta húmida” (p.35)[v]
“Chega de devassidão, está na hora de eu
contemplar o mundo serenamente e gozá-lo”… “nada de bebida, nada de drogas,
nada de pielas com beatnicks e bêbados e drogados e toda essa malta…”
“beatnicks
idiotas” (p.66) [vi]
“E embora os frenesis demenciais dos
velhos tempos que passamos juntos na estrada tenham serenado…” (p.80)[vii]
“Agora há demasiadas pessoas que querem
falar connosco para nos contarem as suas histórias, estamos encurralados,
cercados e esmagados pelo número” (p.81)[viii]
“Um
verdadeiro manicómio e que corresponde precisamente à imagem que os jornalistas
querem dar da Geração Beat, mas apesar de tudo, não deixa de ser um modo de
vida inofensivo e agradável para jovens solteiros” (p.71)[ix]
“O círculo fechou-se
em torno dos velhos heróis da noite” (p.5)[x]
“… a nossa demencial
residência comunitária” (p.83)[xi]
“Lex é o tipo de gajo
que não devia viver nesta residência comunitária cheia de beatnicks marados…
(p.85)[xii]
“Apareceu
agora um novo grupo clandestino de estranhos beatnicks ou coisa parecida que se
vestem de uma maneira elegante muito peculiar” (p.86)[xiii]
“Além disso … porque os outros doentes,
veteranos do exército, vão certamente reparar que ele recebeu a visita de um
bando de beatnicks maltrapilhos…”(p.95)[xiv]
“Sabes,
muitos desses artigos e críticas achincalhantes que escreveram a atirarem-se a
nós, poetas e escritores da onda beat de São Francisco, só apareceram porque
muitos membros do nosso grupo não têm ASPECTO de escritores ou de intelectuais
ou coisa parecida, tu e o Pomeray, aliás, têm um mau aspecto terrível, e eu
próprio de certeza que também não me encaixo nos padrões respeitáveis” (p. 139)[xv]
E repete o adjectivo demencial para caracterizar a cozinha, para caracterizar o dia, para caracterizar o poema “O Mar”…
Se, de “Pela Estrada Fora” se diz
tratar-se da “Bíblia” da Geração Beat, poderemos associar “Big Sur” a prenúncio
de um ocaso? A um “prenúncio de morte”?
“Todos concordamos que não conseguimos acompanhar esta pedalada, que estamos cercados pela vida, que nunca a compreenderemos, de maneira que optamos por concentrá-la nos nossos copos bebendo goles de whisky pelo gargalo da garrafa e quando esta fica vazia eu saio a correr do carro e vou comprar outra, ponto parágrafo” (p.78)[xvi]
Mutatis
mutandis, associo este bloqueio ao “tropeçar contra um muro” de que fala
Octávio Paz em “Los Hijos del Limo”:
“A vanguarda é uma exasperação e um exagero das tendências que a precederam. A violência e o extremismo enfrentam rapidamente o artista com os limites da sua arte ou do seu talento… Embora a vanguarda abra novos caminhos, os artistas e poetas percorrem-nos com tal pressa, que não tardam em chegar ao fim e tropeçar contra um muro”.
Eis o meu desafio para o debate.
Porto, 22.02.2021
Delfina Rodrigues
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