José Tolentino de Mendonça escreve no livro "O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas":
Quando um amigo vai viajar e me pergunta o que eu quero que me traga de recordação, respondo: traz-me uma história!
Com leitoras do Clube de Leitura a viajar, no passado mês de Novembro, inspirei-me em Tolentino de Mendonça e pedi: tragam-nos uma história!
E, assim, fomos à Índia, ao Brasil e a Londres. Mas os que não fizeram viagens recentes não ficaram dispensados. E fomos também a Katmandu, aos Açores, ouvimos uma extraordinária antropologia da viagem e até viajámos autour d'une chambre!
Uma excelente preparação interior para a próxima leitura: Viagens de Olga Tokarczuc
A Índia
Uma viagem à Índia
por Maria João Leite de Castro
Em qualquer viagem que faço, mais do que os monumentos, templos, construções humanas em geral ou, até, mais do que as paisagens naturais, interessam-me sobretudo as paisagens humanas, os modos diversificados de viver, de pensar e de ser dos países que visito.
Claro que em quinze dias não posso apreender profundamente essas vivências e, naturalmente, as considerações que faço podem estar erradas e são sobretudo interpretações pessoais, construídas, também elas, a partir de um olhar culturalmente formatado e, portanto, nunca isento.
De qualquer forma, e tendo em conta estes pressupostos, partilho aqui as minhas impressões pessoais.
Depois de aterrar em Chennai, no Sul da India, e depois de ter estado 2 noites no Dubai (onde o luxo, a ostentação e o consumo imperam), a primeira impressão chocante foi a miséria e a sujidade. Do autocarro que nos transportava do aeroporto ao hotel, já noite, observei alguns corpos de adultos e crianças deitados no chão, por vezes, num passeio praticamente inexistente, no meio de cães famintos e de lixo espalhado sem qualquer pudor. Embora já estivesse estado na India e de ter ainda presente algumas imagens que na altura também me marcaram (lembro por exemplo, a imagem de uma jovem mãe a dar de mamar sentada em cima de uma lixeira enorme...), a verdade é que, acabada de aterrar e de vir de um país escandalosamente rico, tive de uma forma intensa a noção da desigualdade e da injustiça do mundo.
Depois, nos dias que se seguiram, o confronto com uma religiosidade que, para os nossos olhos é inexplicável, primária, muito ligada a rituais que não compreendemos, mas que são, simultaneamente, belos, pelas cores, pelos templos onde se realizam, pela sonoridade, pela comunhão e esperança que proporcionam. Segundo o guia, esta religiosidade é sobretudo intensa nas cidades, onde as pessoas acorrem na esperança de uma vida melhor (só em Chennai há 8 milhões de habitantes), mas onde vivem pior. O hinduísmo, com cerca de 3500 anos de existência tem, só na Índia e no Nepal, 905 milhões de fiéis e os hindus veneram cerca de 330 mil divindades diferentes. Mais do que uma religião é um conjunto de crenças, de rituais, de códigos, de idiossincrasias de um povo…um fenómeno e um sentimento que se transmite de geração em geração e que é também justificação religiosa para a afirmação da identidade e da unidade da Índia. Ser Hindu é, de alguma forma, ser Indiano.
A este propósito, o nosso guia (um jovem formado em Direito e com uma cultura que lhe permite ter alguma visão crítica sobre a realidade) contou-nos a seguinte história que ilustra bem esta mentalidade:
Há uns anos, uma Indiana ganhou o concurso de Miss Universo. Tinha um namorado, queria casar e por isso, resolveu consultar uma astróloga. Esta disse que o primeiro casamento resultaria em divórcio, só o segundo seria bem-sucedido. Então, ela desposou primeiro uma árvore, divorciou-se e casou depois com o seu namorado, com quem vive há 11 anos, cumprindo a profecia…
Depois, a constatação de que, na verdade, a Índia não é um país no sentido de um bloco homogéneo, monolingue e monocultural, mas um Continente com diferentes estados, com diferenças significativas entre eles (23 idiomas diferentes ilustram essas diferenças). Depois de estarmos uns dias no estado de Tamil Nadu, pobre, árido, populoso, atravessámos os montes Nilgiri e entrámos no estado de Kerala e a paisagem natural transformou-se completamente, com as suas plantações de arroz, de chá, de árvore da borracha e de coqueiros, as suas lagoas labirínticas e florestas tropicais luxuriantes. A paisagem humana é também diferente, as casas mais arranjadas, as ruas mais limpas e por todo o lado se veem crianças de uniforme a irem para a escola. Kerala orgulha-se de ter a maior taxa de alfabetização da Índia, segundo o guia tem 100% de alfabetização.
Para além das diferenças, geográficas, culturais, históricas e até religiosas, a Índia afirma a sua unidade na beleza das cores, nos cheiros e sabores, na simpatia do seu povo e na forma como acolhe todas essas diferenças.
O
Sul da India no meu coração
A história de um “ coup de foudre” de
amizade
por Ana Teixeira
Foi em
Madurai que esta minha história simples, de amizade relâmpago, aconteceu!
Madurai
é uma cidade situada no interior sul, do Estado da Tamil Nadu e uma das mais
antigas cidades da Índia com 2.500 anos de história.
Apesar
de Chennai ser a capital do estado de Tamil Nadu, Madurai é conhecida como sua
capital cultural e, segundo o nosso guia acompanhante, é visitada anualmente,
por milhares de peregrinos e turistas atraídos principalmente pelas grandes
festas religiosas realizadas em torno do Grande Templo Meenakshi ( Mīnachchi) dedicado à deusa Parvati, esposa de Shiva,
um dos deuses supremos do hinduísmo.
Foi a
visita a este templo a razão principal da nossa paragem em Madurai e onde a
experiência mais emocional da viagem me aconteceu!
O plano
de viagem incluiu uma visita ao templo de manhã e outra ao final da tarde para
presenciar uma cerimónia, denominada Aarti, que decorre num período de tempo
inferior a 10 minutos : todas as noites, antes de o templo fechar, é levado a
cabo um ritual de cortejo com tambores durante o qual é transportado num
tamborete de bronze a imagem de Shiva para o quarto de Meenakshi ( avatar da
deusa Parvati) a fim de se consumar a união do casal; no alvorecer da manhã, a
imagem é levada de volta para o santuário do Shiva.
Este templo,
dos mais lindos que vi na Índia, ocupa uma enorme área e é cercado por 14
torres de entrada, altas, coloridas e minuciosamente decoradas. Cada torre
consiste numa estrutura de vários andares, coberta por milhares de figuras de
pedra que retratam animais, deuses e demónios pintados com cores vivas.
Passear
por lá foi sentir de perto a cultura hindu, com histórias e lendas de muitos
séculos e de diferentes dinastias. Julga-se
que o templo começou a ser construído no século VI ac, mas grande parte do que
vemos agora, é resultado de renovações e expansões feitas nos séculos XIV e
XVI. A nós turistas, é vedada a visita ao principal santuário dedicado a Shiva
e Meenakshi, podendo-se, todavia, circular por todo o restante complexo
dividido numa série de recintos quadrangulares concêntricos contidos por altos
muros.
Foi no
Hall dos Mil Pilares, na realidade com 985 pilastras, ao observar as incríveis
pinturas no chão e teto dos corredores que me confrontei mais uma vez com o afeto
e carinho do povo indiano, mas agora de uma forma mais intimista e intrigante.
Uma mulher de beleza calma acompanhada pelo marido dirigiu-se a mim e com um
carinho extremo interpelou-me querendo saber de onde era e como estava a sentir
a Índia. Foi uma empatia instantânea e reciproca. As mãos tocaram-se os olhos
falaram, trocamos sorrisos e ambas nos sentimos irmanadas no mundo sem
fronteiras, dos afetos. Respondi às perguntas feitas em inglês e
desajeitadamente acabei por me despedir juntando-me ao guia e continuando essa
manha de visita ao templo. Ficou em mim uma forte e agradável impressão!
Ao
final da tarde, realizamos nova visita a este Templo para viver a cerimónia de
acasalamento do deus Shiva com a sua consorte Meenakshi.
Quando
se estava a iniciar a cerimónia e no meio de uma agitação enorme em que os
tambores e cornetas se faziam ouvir de forma estridente e ritmada acompanhando
as longas passadas de um elefante soberbamente decorado e de um touro
ornamentado como oferenda, avisto a minha amiga indiana que corre feliz para
mim, me abraça fortemente e me chama de amiga.
Foi um
momento de forte emoção. Era uma amiga que ali estava e que comigo partilhava
aquele momento fugaz e atordoado de encanto lendário.
Este
momento foi o suficiente para no meio da multidão e do frenesim do cortejo me
perder do restante grupo. Com custo
tento despedir-me da minha amiga indiana, que me retém com a pressão da sua mão
e o afeto dos seus olhos. Deixo ao
marido o meu telefone, nem nome deixei!
Corri
ao longo do alucinante cortejo, encontro a Melucha, sozinha, também. Ambas seguimos
o cortejo até ao fim e somos encontradas pelo guia que nos procurava no meio da
multidão.
Voltei
para o meu grupo e seguimos viagem por mais oito maravilhosos dias.
De
Madurai partimos para Periyar, no Estado de Kerala, deixando para trás o
extraordinário Estado de Tamil Nadu.
Na
memória ficou-me aquele momento mágico de afeto e reconhecimento humano.
Uma Viagem à India
por Mª Amélia de Lencastre V. Correia
Bilhete
de Identidade
O sexto país
maior do mundo, habitado por mais de um bilião de pessoas, o subcontinente
indiano estende-se dos picos dos Himalaias ao norte, até ao oceano Indico a sul,
atravessando uma variedade imensa de ecossistemas, desde cadeias de montanhosas, densas florestas , desertos, planícies e
planaltos. A sua história é milenar e atravessada por uma variedade incrível de
povos com diferentes civilizações. Foi berço de quatro religiões: hinduísmo,
budismo, jainismo e sikhismo na sua maioria pré-cristãs. Para além destas,
grande parte da população, sobretudo no norte, aderiu ao islão e ainda se
encontram, embora sub-representadas, comunidades cristãs, judias e parsis.
Possui 22 línguas oficiais, 164 línguas menores, e cerca de 4000 dialectos não reconhecidos. O inglês compreendido por
uma grande parte da população foi substituído pelo hindi como língua oficial da
República da Índia, que é considerada a maior democracia do mundo.
Impressões
de uma jornada indiana
Uma profusão imensa e penetrante de cheiros nauseabundos,
dos excrementos, do lixo, dos esgotos a céu aberto, das frutas e flores
putrefactas. De vez em quando uma aragem fresquíssima e inebriante, com um odor
floral intenso, onde predomina o jasmim e a gardénia. Tudo isto entrelaçado por
especiarias várias, onde o caril está sempre presente, além de muitas outras
dificilmente distinguíveis.
O colorido
opulento, das especiarias das frutas dos legumes das sedas, dos saris das mulheres, pontuado de quando em
vez por notas de uma dos brancura inacreditável dos trajos dos homens, tudo
isto disseminado em corredores ruas poeirentas de terra batida. Nos mercados tudo isto se cruza. As bancas e
os compartimentos esconsos que rodeiam os corredores estreitos de terra batida
são castanhos acinzentados, da terra do pó da falta de luz (são mercados cobertos,
possivelmente por causa das chuvas) onde se acotovelam compradores, vendedores,
mirones carregadores com cargas enormes. Há sectores que convém evitar como a zona
do peixe - o fedor sente-se longe, e a zona da carne também. Num cubículo apinhado de gaiolas com galináceos,
mal se distingue o vendedor, tem o aspecto dum gandi. Está sentado no meio da sua mercadoria, não
parece muito ralado com as vendas, já adquiriu a cor das galinhas. Do outro
lado da rua à saída do mercado um homem mata e depena os frangos com uma
rapidez e uma perícia inimagináveis.
A zona das
flores é um regalo para o olhar: pirâmides de pétalas de todas as cores, colares
de flores e ramos. As flores variadíssimas, são oferendas para os templos.
Uma família
inteira de visita ao museu sorri, todos desejosos de comunicarem. Apresentam-se:
são pais, mães, avós, filhos, genros, noras, netos, toda a família alargada, desejam saber o que achamos da India De onde somos e lá vem o Cristiano Ronaldo
(apesar do futebol não ser muito popular na
India) o genro conhece. Quando
chegamos, quando regressamos, é a primeira vez que visitamos à India? Agora o
momento das fotografias os telemóveis circulam, só mais uma, encantados com a
maneira como os abraçamos para cabermos na fotografia.
Pai e mãe muito jovens, com dois meninos todos bem escurinhos
e muito bonitos, com seus trajes domingueiros vão subindo as 450 escadas do
forte de Trychy. Os meninos vestidos de
brocado são dois marajás em miniatura. Eis que sentam os meninos nas escadas
para tirar uma fotografia. Paro na descida encantada e exclamo: que belezas de
meninos, os pais devolvem-me um sorriso de orelha a orelha.
Em Bombaim no bairro dos pescadores, uma mulher sorri e faz
sinal para seguirmos para o outro lado. Percebeu que seria um espectáculo muito
miserável para olhos ocidentais. Mas quando o turista teima em conhecer a India
profunda, que fazer?
O templo de Madurai está literalmente apenhado de gente, hoje
é um dia propício, segundo o Arun (nosso guia). As famílias abancam no chão para
os picnics junto ao enorme lago ritual. As meninas são verdadeiramente
impressionantes nos seus vestidos de nylon e de brocado colorido cheios de
laços e lacinhos, folhos e folhinhos, saias e saiotes num barroco a roçar o kitsch
- encantador. Os sapatos ou sandálias condizem, com saltinho e muitos
pormenores dourados e prateados. Desfilam vaidosas orgulhosíssimas dos seus
“trajes de luces”. As raparigas mais velhas nos seus saris possuem caras
lindíssimas e sempre sorridentes. Os rapazes e homens não vestem tão
garridamente. Encontram-se sobretudo entre os mais velhos aquela espécie de
lençol que eles enrolam de variadíssimas maneiras, fazendo inveja às nossas
mulheres elegantes que tão sabiamente enrolam suas écharpes. Tão depressa o
enroscam em torno dos ombros e das costas passando depois entre as coxas e por
fim em volta das pernas, deixando-o pender das virilhas sobre a barriga das
pernas. Quando é preciso também cobrem as cabeças, mas de repente já está
transformado numa simples fralda, arejada e prática.
Encanta, ver o
cuidado e a ternura dos homens com as crianças. Enternece, observar a atenção das
famílias com os velhos, sobretudo quando já têm algumas incapacidades.
Os templos hindus são
de forma geral enormes e fantásticos. Alguns são quase cidades dentro de cidades.
Possuem torres imensas e sublimes (gopurans)
que se elevam acima dos portais e dos
tectos literalmente cheios estátuas das divindades por vezes de todas as
cores. A profusão de deuses com os seus
respectivos avatares e veículos é tão grande que seria necessário um
especialista e muitas horas para nos explicar minimamente esta mitologia
complicadíssima. Há uma grande devoção ao Shiva (deus construtor e destruidor
ao mesmo tempo). O santo dos santos está reservado aos crentes. Mas vamos
penetrando nos inúmeros átrios, pátios, salas nos corredores muitas vezes
ladeados de lingams (representações do pénis de Shiva), devidamente oleados com
ghee (espécie de manteiga derretida). As salas hipostilas algumas com centenas
de colunas, em que nenhuma é igual a outra
e todas são um primor escultórico. Nos altares os sacerdotes, praticam o
culto banhando estátuas e estatuetas com mistelas várias. As certas horas do
dia começam a rufar tambores e instrumentos, vários, sinal que é hora da bênção
e lá vamos nós na procissão para sermos abençoados. Ficamos cheios de cinza e
com a testa pintada à maneira indiana.
Todos os fins de tarde, a horas variáveis, no templo de Madurai,
dedicado a Shiva, há um cerimonial que envolve uma procissão onde entra um
touro (veiculo de Shiva) e um elefante (seu filho Ganesh) para além de vários
andores, um deles transportando a estátua de Shiva. Todos os dias vão levar
Shiva a passar a noite com a sua esposa Parvati. De manhã na alvorada fazem o
contrário. O touro é pachorrento, mas o elefante investe como um carro blindado
por aqueles corredores imensos com uma fúria incontida. É preciso muito cuidado
para não ficar esfacelado. Pobres elefantes parecem tão tristes, todos pintados
e cheios de flores te aguentando
pacientemente aqueles rituais infindáveis.
Voltamos ao hotel primeiro a pé entre carros, carroças, riquexós,
tuc tucs, camionetes, motorizadas bicicletas, vacas (muito menos hoje em dia)
num barulho ensurdecedor de buzinas, até ao autocarro. Os motoristas são de uma
perícia extrema para conseguirem romper entre esta avalanche, devem ter a
bênção de muitos deuses.
Chegados ao hotel deparamos com o glamour de Bolywood! Um
casamento cheio de convidados que desfilam pela alamedas devidamente iluminadas,
atrás de um automóvel vintage descapotável todo branco com estofos vermelhos,
ao som da música.
Somos transportados para um filme indiano, mas com um happy
end. Os apaixonados venceram finalmente
todos os obstáculos que as famílias levantaram, casaram e serão felizes para
sempre.
O Brasil
50´´
segundos em São Paulo
por Manuela Pereira
Quarta-feira em São Paulo. Dia
de comer feijoada no boteco.
No Itaim Bibi, novo bairro
financeiro de classe alta _ zona de valor A, grandes e modernos edifícios de
vidro erguem-se tocando o céu e espelham-se uns aos outros criando jogos de
luzes e cores.
Abrigam centros de negócios de
importantes empresas: Google, Facebook, Louis Vuitton… O térreo dos prédios é
ajardinado e tem espelhos de água e chafarizes.
Nos jardins esculturas de onças
pintadas por artistas plásticos apelam para a sua protecção. A onça é um animal
em via de extinção.
Seguranças olham continuamente
em redor e vigiam todas as pessoas que passam na rua.
Grupos de jovens homens e
mulheres deslocam-se em grupos. Os homens vestem calças cinzentas ou pretas,
camisas brancas ou azul claro metidas dentro das calças, cintos e sapatos
pretos. Todos têm o primeiro botão da camisa desabotoado. Deixaram a gravata e
o casaco no escritório quando saíram para almoçar. Robôs!
Percorrem as Avenidas Brig.
Faria Lima e Pres. Juscelino Kubitscheck em diferentes direcções, à procura do
seu restaurante preferido _ indiano, asiático, francês, italiano, árabe.
Caminhávamos para o interior do
bairro. O trânsito estava cortado. Cinco carros da polícia e uma fita vermelha
e branca marcavam o perímetro de uma zona junto aos prédios.
Ao passarmos pelos bares e
restaurantes, ouvíamos grupos de pessoas comentar o que acabara de acontecer
dez minutos antes.
Um motoboy tinha tentado tirar
a carteira a uma mulher. O segurança do prédio tinha puxado da arma. Tinha
atingido o motoboy com um tiro.
No passeio oposto jazia um
jovem, casaco de motoboy aberto deixando ver o tronco nu, celular ainda na mão.
Morto.
Ao fim da tarde, o vídeo de
vigilância do prédio começava a circular no WhatsApp.
Mostra um carro preto de vidros
escuros. Um segurança segura a porta do condutor. Sai uma mulher loira. Tira
alguma coisa do banco da frente. Tira a carteira do banco de trás. Tira um saco
pela porta do outro lado. O segurança vigia atentamente em redor. Em sentido
proibido aparece um motoboy. Pára atrás do carro. O segurança posiciona-se
entre ele e a mulher. A mulher dirige-se à entrada do prédio. O motoboy tenta
passar o segurança, com a caixa às costas. O segurança barra-lhe a passagem. O
motoboy insiste. O segurança saca da arma. Dispara. O motoboy foge a correr. O
segurança dispara mais vezes. Quatro tiros.
O motoboy cai morto no passeio.
Não saiu nas notícias.
CL_Manuela
Pereira_Nov.2019
O Paraíso
por Manuela pereira
Para
chegar ao Paraíso é preciso atravessar o Mar Grande, percorrer ilhas inóspitas,
navegar no Rio Inferno.
Atravessar o Mar Grande
No
Porto de S.Joaquim, em Salvador da Bahía, apanhámos o ‘ferryboat’ que nos levou
a Bom Despacho. O ferry leva uma hora a atravessar a baía __ Bahía de Todos os
Santos, porque quando os espanhóis avançaram baía adentro com os seus galeões,
para derrotar os portugueses, todos os santos se uniram. Não só os dos
portugueses mas também os santos nativos, todos os orixás, e foi assim, com a
ajuda de Todos os Santos, que os espanhóis foram derrotados.
O
tempo da travessia passou rápido. É muita a animação no ferry. Vendedores
ambulantes vendem água, sumos, gelados e petiscos.
Logo
à entrada um ‘Sean Connery’ brasileiro, cinquentão, veio falar-nos para saber
se iríamos para Valença. Propôs conduzir-nos no seu carro por trinta reais cada
um, se arranjasse mais dois passageiros. Se não arranjasse não haveria
problema, levar-nos-ia também.
A
meio da viagem, veio dizer-nos que tinha arranjado mais três pessoas, um casal
e uma criança, e como não poderia transportar cinco, não nos iria levar. Já
tinha falado a outro colega da máxima confiança, que nos levaria nas mesmas
condições. Logo ali nos fez guardar o seu número de telefone e o do outro
condutor. Quis que falássemos com ele, o Gildo, para ele ouvir e confirmar que
tudo estava certo.
A
partir daí começaram as mensagens do Gildo: “Estou num carro preto logo à saída
do ferry, à direita.”; “Estou com calças azuis e blusa amarela.”. Por fim
chegou a fotografia de um Gildo sorridente e simpático.
E
atracámos em Bom Despacho. Antes, o ‘Sean Connery’ tinha vindo dizer-nos para
sairmos atrás dele, pela zona dos carros. Se saíssemos pelo lado dos
passageiros, a polícia não nos deixaria passar para onde o Gildo nos esperava.
Quando saímos atrás dele e do casal com criança, percebemos que muitos
passageiros saíam por ali.
O
Gildo estava à nossa espera. Mas não só o Gildo. Havia cerca de dez carros à
espera de passageiros. Alguns condutores pegavam-se à pancada na disputa de
clientes. Com o Gildo nada disso. Ele fazia um trabalho sério e nós éramos
amigos de um grande amigo seu, nunca nos iria deixar ficar mal.
No
carro, partimos com mais uma rapariga – que já tinha estado em Portugal, em
Évora, a fazer o mestrado do curso de desporto – e uma mulher com um bebé de um
ano ao colo, que desdenhava de tudo.
Percorrer ilhas inóspitas
Foram duas horas para
atravessar a Ilha de Itaparica, de Bom Despacho a Valença, passando por Nazaré
das Farinhas, terra de Vampeta. (ex-futebolista – 1990 a 2005 – da selecção brasileira, que actuava como
volante.)
Mas a viagem também não foi
monótona. Enquanto nos conduzia por estradas em mau estado, num carro onde o ar
condicionado não funcionava, pelo meio de vegetação luxuriante, e bois brancos
e magros, o Gildo ia conversando. Muita gente de Valença tinha ido para São
Paulo tentar a sorte. Ele não. Estava bem com aquele negócio da condução. O
ónibus era mais barato mas muito demorado, parava em todo o lado. Ele fazia a
condução directa a Valença, com toda a comodidade.
Mas muitos tinham-se metido por
maus caminhos, roubavam, e as famílias expulsaram-nos de Valença. Foram para São
Paulo. Mas a maior parte não se deu bem. Acabaram presos pela polícia ou
agarrados ao ‘crack’.
Na viagem de volta, vindos de
Valença para o ferry, o Gildo chegou um pouco atrasado, mas apareceu como nos
tinha prometido. Já os taxistas nos rodeavam e de cada vez nos propunham um
preço mais baixo, mas sempre mais do dobro do preço do Gildo. Não podiam trazer
ninguém na viagem de volta, por causa da polícia.
O Gildo também estava com
problemas. Disse que não ia poder levar-nos porque a polícia estava na estrada.
Já na semana anterior tinha pago uma multa de quatrocentos reais. Eram eles os
culpados de muita gente se perder por maus caminhos. Um homem queria trabalhar
honestamente e a polícia não deixava, dizia.
Tudo porque o Perfeito era
também o dono da Empresa de Camionagem. Por isso queria implementar o uso dos
transportes públicos e punha a polícia na estrada para os apanhar. Mas nós não
iríamos ficar mal. Levou-nos até uma paragem de ónibus, onde captavam os
clientes. Lá estavam o ‘Sean Connery’ e mais meia dúzia de condutores, todos
parados, sem poderem trabalhar.
Mas nós iríamos passar. Não
perderíamos o avião. Estava a chegar um colega que poderia passar pela polícia.
Ao perceber que estranhávamos, explicou que esse colega tinha pago o sindicato
e deixavam-no passar. E lá acabou por aparecer um jovem, que só iria se levasse
quatro. Uma mulher e nós éramos três. Passou a buscar a quarta passageira na
cidade. Entrou com um cãozito, enquanto a mulher resmungava que iria espirrar
toda a viagem.
Ao passar pela polícia o jovem
condutor acenava e apitava repetidamente, como a dizer “Sou eu! Sou eu! Sou eu
que vou aqui!”.
Como tínhamos sabido que
poderíamos atravessar no ferry a partir de Vera Cruz, falámos disso ao jovem
condutor. Pena não poder levar-nos lá! A mulher do cão tinha mesmo que ir para
Valença. Mas algum tempo depois, parou numa rotunda, disse-nos que saíssemos,
que alguém nos levaria a Vera Cruz. Na paragem de ónibus mais alguns condutores
parados, sem trabalhar. Na estrada surgiu um carro. O nosso condutor acenou e
perguntou “Vais para Vera Cruz?”. “Leva este casal que vai apanhar o ferry.”, ordenou.
E lá fomos num carro ainda
pior. Levava ao meu lado, no banco de trás, um cesto com pães de queijo, que
“Estava a levar para vender em Vera Cruz”. E chegámos ao ferry a tempo e
horas.
Desta vez nem paguei bilhete. Pessoas
com mais de cinquenta anos não andam na rua. Muito menos de cabelos brancos e
com rugas. Por isso, os maiores de sessenta anos já têm tratamento preferencial
: ) Não pagam bilhete no metro, no trem e também não pagam no ferry.
Navegar no Rio Inferno
De Valença para a Ilha de
Boipeba apanhámos a lancha rápida, para mais uma hora de viagem. Os urubús volteavam
junto aos barcos atracados no cais, abrindo as largas asas pretas. Junto à
costa, flamingos pernaltas passeavam lentamente na água parada.
A lancha ia directa à Ilha de
Boipeba, mas a meio da viagem fomos divididos por três lanchas mais pequenas,
mas ainda mais rápidas. Na esteira umas das outras, avançavam no mar plano, a
toda a velocidade.
Passámos terras com igrejas no
cimo dos morros. Mas logo se fez mar grande. As lanchas continuavam
determinadas, rasgando as águas. Como navegavam com tanta certeza? Os jovens
condutores das lanchas levavam o acelerador no fundo e uma determinação total
de prosseguir em frente.
Ao fim de algum tempo começámos
a ver as margens das primeiras ilhas. Os manguezais estendiam-se até ao mar. Só
abrandámos numa zona com bancos de areia. Estávamos já no Rio Inferno. Numa
volta da lancha vimos areia branca, coqueiros na praia e muitas embarcações
junto ao cais.
O Paraíso
Chegados à ilha o tempo pára.
Junto ao cais pequenas casas. Logo seguimos, já na areia, sobre tábuas, por
entre bares e restaurantes de madeira, cobertos com folhas de palmeira. As
tábuas no chão terminaram e o resto do caminho até à pousada foi feito já com
pé na areia.
A pousada, era um conjunto de pequenas
casinhas no meio de muita vegetação, todas com rede para descansar, num pequeno
pátio. O dono da pousada, um francês que vivia em Nova Iorque, tinha ido para a
ilha há quarenta anos e nunca mais de lá saíra. A companheira, holandesa,
estava lá há vinte e também não sairia de lá.
Pé na areia, mar manso, sol
quente e uma brisa morna que nos acaricia. É fácil não usar roupa. Pescam-se
peixes no mar e ostras no rio. Plantações de coqueiros estendem-se até ao mar. Se
há sede, bebe-se água de côco. Frutos caem das árvores, maduros. Das próprias
ervas fazem-se petiscos. Maravilhoso o açaí, o mingau, a coxinha de jaca e
todos os sucos de fruta. Os nativos são calmos e afáveis. Tentam ‘tirar
vantagem’, mas sorriem se não conseguem.
Caminhámos duas horas pelas
praias__Tassimirim, Cueira__fizemos uma trilha na mata, atravessámos o rio Oritibe
e chegámos a Moreré, sítio de pescadores. Meia dúzia de casas.
Voltámos para a pousada de
tractor. Um tractor que puxava a parte de trás de uma camionete de carga, onde
tinham instalado bancos corridos de madeira. Atravessámos a floresta atlântica
protegida, já quase noite. Percorremos as ruas da Velha Boipeba. Há uma igreja,
uma loja de bikinis e uma loja de bom artesanato. Fomos recebidos por uma
argentina que vivia há muito na ilha.
Jantámos no melhor restaurante
de Boipeba, o da nossa pousada. Dormimos
como anjos.
O Paraíso existe…em Boipeba.
PARIS
por Maria José Marques
Fim de Julho, 2002,
toda a família a trabalhar e eu de férias.
O
meu filho, que trabalhava em Antibes, Côte d’Azur, um tanto ou quanto a sul de PARIS,
convidou-me a passar com ele uma semana, ou terei sido eu a fazer-me
convidada…A ideia era ele trabalhar de segunda a sexta-feira, eu passear
durante o dia e teríamos o jantar e o serão para estarmos juntos. Nessa época
Antibes era onde ele passava o fim-de- semana, o trabalho, esse, levava-o para
outros lugares durante a semana.
Nessa
semana, como em muitas outras, o trabalho levá-lo-ia para um lugar a uns 344 km
a norte de PARIS “ as the crow flies “.
O local era muito do meu agrado, diz-se até que quem se cansa dele é porque já
se cansou da vida. Aproveitando um voo acessível cheguei ao ponto de encontro
no sábado, cedo, sem qualquer plano para os dois dias antes de encontrar o
querido filho. Estava um belo dia de sol, convidava a um passeio à beira rio.
Royal Festival Hall do outro lado da
rua do apartamento gentilmente
emprestado por um amigo, Tate Modern uma
milha adiante (a visita fica para outro dia) e logo The Globe Theatre. Aí, sem
a menor esperança de ver um espectáculo, fui lendo as paredes. Não me lembro do
tamanho ou da cor do cartaz que dizia :
READ NOT DEAD
Este é, ainda hoje, o título de uma fantástica
iniciativa do serviço educativo do teatro The Globe e consiste na leitura em
palco de peças escritas entre a subida ao trono de Isabel I e fecho dos teatros
por ordem de Jaime II, 1558-1642, uma época extremamente fértil de produção
teatral da qual sobreviveram impressas cerca de 400 peças , nesta terra a norte
de PARIS. A regra do jogo é esta: actores voluntários recebem o texto de uma
dessas peças no domingo de manhã às 10 horas, trabalham-no entre si,
normalmente com a colaboração de um encenador, e às 4 horas da tarde sobem ao
palco do Sam Wanamaker Playhouse , Ao lado do
Globe e, de papel na mão, representam a peça sem ou com adereços, ou mesmo música.
Tão
fascinante me pareceu a ideia que fui logo comprar um bilhete para ver a peça
desse domingo e fui informada de que haveria uma leitura comentada/
conferência/ debate nessa mesma tarde de sábado a que podia assistir se
estivesse interessada. Foi como perguntar ao esfomeado se queria comer alguma
coisa. Daí a pouco lá estava eu sentada numa pequena sala-anfiteatro, no meio
de pessoas que pareciam conhecer-se pelo modo como se cumprimentavam, e olhavam
para mim como quem pergunta “e esta quem é ?” Uma senhora apresentada como docente de Oxford resumiu para o pequeno grupo, para quem não estivesse familiarizado
com o seu trabalho, a tese de que não sendo Shakespeare grande inventor de
enredos se ”inspirava”, para não dizer pior, em peças alheias. Seria o caso da
peça que estaria em cena no dia seguinte. Houve um curto debate e organizaram-se grupos
de proximidade para examinar um texto entretanto distribuído. Eu escusei-me com a justificação de ser estrangeira, de
passagem, mas o grupo perto de mim insistiu em que eu ficasse nem que fosse só
a observar. “De onde é? Quanto tempo vai ficar ? Nós somos um grupo de leitura .Consegue
ler este inglês antigo ? Estudou teatro isabelino? Onde? Oh, Coimbra ? “.
Acabei participando.
No
domingo às 4 da tarde lá estava eu no pequeno teatro, que, não sendo uma
réplica, é ao estilo dos teatros do século XVI. Os meus “amigos “ da véspera
chamaram-me para junto deles e ofereceram-se para me ajudar a perceber o que se
ia passar em palco. Os actores, muitos famosos conhecidos do pequeno e do
grande écran, pareciam apreciar o
desafio e divertir-se enquanto representavam como se tivessem ensaiado durante
semanas. O público, muito extrovertido, ria à gargalhada, aplaudia as
atrapalhações na movimentação, dobrava o aplauso quando um actor repetia a sua
fala com entoação mais expressiva. No intervalo os meus amigos quiseram saber
que tal eu estava a perceber e alguém disse “You laugh in cue”. Não deixei mal
a Alma Mater portanto.
Glorioso fim de semana, graças também a um
Clube do Livro.
Em
PARIS
nasceu Yasmina Reza a autora da peça ART, que o querido filho e eu vimos
nessa mesma semana no Whitehall Theatre
near Trafalgar Square .
Semana
memorável esta! Desde a entrada no apartamento errado à chegada, até ao dia
extra de estadia devido a overbooking no
regresso. Mas isto não conto porque não tem mesmo nada, nada, nada a ver com
PARIS.
Katmandu
por Jorge Paradinha
Preciso de viajar como de
pão para a boca!
Sempre que levanto os pés
das pedras rubras, voo para outros
fusos, outras gentes, aspiro outros ares, deslumbro-me com outras culturas,
mesmo trocando os sonos e o trânsito intestinal, penso para mim, isto é que é
vida!
Os imprevistos espreitam o
viajante, para o bem e para o mal, mas depois dão aquelas histórias que
compartilhamos com os amigos.
A que vos vou contar
passou-se em Katmandu em 2011, na capital mais labiríntica e caótica, mas
curiosamente mais organizada e funcional que conheci, como viajante, na Ásia
meridional (não sei como a encontraria agora, depois do terramoto de 2015…).
Estava alojado nos arredores
a convite da minha filha mais nova, médica voluntária no Mosteiro budista de
Benchen, e deslocavamos até ao centro da cidade nuns táxis muito pequenos e
básicos, pouco mais que mata-velhos.
Eram quinze minutos de buzinadelas para arredar todos os seres vivos e outros
veículos, mais ou menos lentos, naquele caos urbanístico (acreditem que é mais
fácil circular aqui sem uma roda, que sem buzina…).
Contudo, ao fim de dois ou
três dias, já vemos estes simpáticos veículos com mais benevolência, de tão
baratos e seguros que são!
Nestas paragens tudo é
negociado antecipadamente, e os táxis não fogem à regra, mesmo para uma corrida
que não excedia, para nós, um euro.
Certo dia, debaixo de uma
súbita chuva diluviana, a minha filha que me acompanhava, negociava com o
taxista um desconto que equivalia a…dez cêntimos. No meu papel de progenitor
encharcado até aos ossos, e num português irritado que só nós entendíamos, com
algumas cotoveladas na ânsia de me abrigar, confrontei-a com o ridículo da
situação. De nada me valeu o esforço…Oh pai, mais dez cêntimos…é muito acima do
que tenho pago! Não podemos aumentar a inflação! Daqui a dias o pai vai-se
embora e quem cá fica passa a pagar as viagens mais caras!
Abençoada juventude! Percebi
então que as preocupações económicas da minha jovem filha, faziam parte da
estratégia budista do seu voluntariado.
Açores
O
lado B da viagem
por Maria das Mercês Coelho
Viajamos porque
queremos. Ou podemos. Uma quase banalidade na contemporaneidade.
E para que
servem as viagens? O que guardamos das paisagens que vemos ou de vertiginosas
vivências?
Mia Couto anota
que “viajar é sairmos de nós e procurarmos
um espaço que nos acolha para nos expulsar do mundo. Porque em rigor não
existem lugares. Existe sim a invenção que deles vamos fazendo. Porque os
lugares aconteceram no rio do tempo. Por isso são fugazes e irrepetíveis”.
Analiticamente prevê
a busca dum desconhecido território que receba o visitante e se ajuste à medida
dele, e subliminarmente, o concreto, a volta, o regresso ao quotidiano e às
rotinas individuais.
Se viajar é o
preferido lazer da nossa civilização, seguro é que o nascer ilhéu tem a errância
como pressuposto de vida, potenciado no imaginário desejado para lá da linha do
horizonte.
Peregrinos por
necessidade, os açorianos carregam as lágrimas e o fardo da saudade nas suas
deambulações pelas quatro partidas do mundo.
Desta mistura
simbiótica de sonhos e maresias encontrar a viagem eleita é tarefa difícil,
tantas são aquelas que nos despertam emoções!
A proposta é a
viagem. Uma viagem e uma narrativa.
Poderia falar
de uma sonhada, que me levou ao Brasil, onde me encantei nas varandas de Santa Teresa a respirar a beleza
inebriante do Rio de Janeiro, ou na Cidade de S. Salvador da Baía, na vã
tentativa de procurar as rotas do meu avó materno, que em 1938, numa ida sem
regresso, procurou outro destino fugindo da ilha, onde deixou amores
incompreendidos.
Deixo essa, ou
outras, e entro na memória da meninice, onde trago comigo uma viagem perdida e
sempre achada.
Decorria a
década de 60, sem aeroporto nem cais acostável e chegar à minha Ilha só se
fazia pelo mar, uma vez por semana, quando o tempo era de feição.
(Os
condicionalismos da época levaram a uma precoce saída de casa para procurar
estudos noutra ilha, quando o tecto académico começava e acabava na escola
primária.)
Aos onze anos,
regressava do colégio interno a férias de Natal, depois de ter desfiado ao
milímetro o peso dos dias do calendário. A viagem desde o Faial durava no
mínimo, um dia. Outras vezes, acrescia uma noite.
Uma eternidade
para os verdes anos.
Assim, no
embalo de intermináveis horas, embrulhada no desconforto do enjoo, quando
esperava avistar a minha Graciosa, azul e pequenina, ao dobrar da Ponta dos
Rosais, o Carvalho Araújo,
enfeitiçou-se num vaguear e não parou a dança estonteante e cada vez mais
arriscada que atormentava os estômagos e nos enchia de sustos. Penosamente
resistindo à fúria da maresia, dolorosamente, o navio rangia entre a complicada
engrenagem da madeira, ferro, parafusos e do cordame que o compunha, enquanto
lá fora, céu e mar, estavam irmanados na mesma cor de chumbo. Assombrosa.
A tripulação, experiente
de outras intempéries e de sofrimentos vencidos a pulso, era incansável em
confortar os nossos medos.
Faltava pouco. Poucochinho.
Havia um quase sorriso na palidez dos nossos rostos.
Tudo parecia
acalmar-se e o navio navegava com alguma serenidade à sombra tutelar ou
protectora da Ilha; quando eu pressentia o rumorejar e o perfume das araucárias
da minha Vila, antevendo o aconchego da chegada a casa, um tripulante, fidalgo
no seu traje branco, veio dizer-nos que o barco passaria de “largo”, seguindo
para a Terceira por estarem impraticáveis todos os portos da Ilha. (Em
consequência, seriam mais quatro horas de viagem, uma paragem em território
alheio e uma data imprevisível de retorno).
A decepção não
teve tamanho. Rompemos num choro, irreprimível, não de protesto, antes da mais pungente
dor de alma e dum vencido desalento.
A autenticidade
do desgosto não deixou insensível a tripulação do navio.
Então o Comandante
usando da soberania que lhe assistia, desafiou a adversidade e as normas de
segurança, tendo a coragem de rever a anunciada decisão. Ordenou, um
improvisado desembarque em mar alto, sem ancorar o navio, mantendo-o sobre
máquinas, dividindo a arriscada responsabilidade com a lancha da alfândega, que
sabia governada pela marinhagem de terra, composta por destemidos lobos-do-mar.
Todos comungaram
no generoso propósito de levar ao ninho, as sete crianças/adolescentes
estudantes, que a bordo do navio não resistiam à dor da saudade e aos ausentes
mimos da casa.
A história teve
um final feliz.
Fomos recebidas
na cais como heroínas por familiares e amigos, num sufoco de abraços, e esta tocante
lembrança de muitos anos, é afinal uma reconhecida homenagem aos marinheiros
anónimos, e muitos houve, que de peito aberto, arriscando as próprias vidas, alimentaram
sonhos alheios, fazendo da nossa geração, e de outras anteriores, a gente que
hoje é.
Graciosa, Dezembro
de 2019
1975- A Viagem
por Alexandra Azevedo
1975. Julho. Aeroporto de Lisboa. Ia andar de avião pela
segunda vez, mas era a primeira que entrava na Portela. Estava apinhada de
gente. Literalmente. Era preciso avançar com cuidado para não pisar ninguém.
Famílias inteiras acampavam no chão com as malas a delimitar o seu território. Na
altura apenas pensei: este aeroporto é muito mais movimentado do que Pedras
Rubras! E fiquei um pouco invejosa, um pouco despeitada. O eterno e injusto
segundo lugar. Por um momento, reflecti ainda: nem em Gatwick vi tanta gente! Mas era a idade de achar tudo natural sem grandes
questionamentos e não dei um segundo pensamento ao assunto. Só uma semana mais tarde fiquei a saber que uma ponte
aérea entre as colónias e Lisboa tinha começado três dias antes. Era o PREC e ninguém me avisou.
A chegada à Ilha Terceira pensava eu, seria, em princípio e
na minha completa ignorância do que eram os Açores, uma pequena escala de
algumas horas até apanhar um barco para S. Jorge, o destino final. Santa
Ignorância, a santa de que sou indefectível devota! Não, nada disso! Um barco?!
À nossa espera?! Logo ali?! Aliás, ninguém dizia “um barco”. Falava-se dos barcos
como quem fala de pessoas amigas, de íntimos que se trata pelo nome próprio: o
Terra Alta, o Ponta Delgada, o saudoso Carvalho Araújo …
Mas, quem é esta,
afinal?! Quem é que ela pensa que é? Foi aí que eu descobri que era … continental!
Continental?! Eu?! Eu?! Continental?! E dito assim, com uma indisfarçável
censura na voz?! Nada a fazer. Era
mesmo continental e não havia como negá-lo.
Mas, e então quando é que há barco? Perdão, quando chega o
Ponta Delgada? Outra impertinência! Isso não se pergunta. Vai-se ao cais e logo
se vê. Todos os dias? Esta pergunta não chegou a sair da garganta. Engoli-a a tempo. Muito bem, pensei
conformada, mas ainda um pouco incrédula. Vai-se, amanhã ao cais, talvez mais
um dia e tudo se há-de resolver. Para esta crença ingénua contribuía decisivamente a calma e a
naturalidade com que todos encaravam a situação. Ir ao cais passou, então, a
ser qualquer coisa como ir para o trabalho. Uma tarefa diária que se cumpria
com zelo. O segundo dia passou, passou o terceiro, o quarto, o quinto, o
sexto.. e ao sétimo dia, como no Génesis…apareceu um barco no horizonte! A
excitação foi grande: O Ponta Delgada! O Ponta Delgada! Risos, abraços. Suspiros
de alívio. Mas, à medida que o navio se aproximava, alguns rostos iam ficando
apreensivos. O Ponta Delgada? Daquele tamanho? Daquela cor? A inquietação
alastrou, os rostos começaram a fechar-se. E aquilo em que ninguém queria
acreditar confirmou-se: não era o Ponta
Delgada! Era uma corveta da Marinha! O desalento tomou conta de todos e, aos
poucos, cabisbaixos os grupos foram dispersando, abandonando o cais.
Navio Ponta Delgada |
Sobrámos nós. Em silêncio continuávamos a olhar o navio imponente que se aproximava.
De súbito: da Marinha? Se é da Marinha, é do povo! Se é do
povo, é nosso! Se é nosso, o comandante tem de nos levar!
Estas constatações pareciam tão inegavelmente óbvias que,
imediatamente, começámos a festejar. O navio atracou. Intrépidos abordámos o
marinheiro que fazia a guarda da entrada e dissemos que queríamos falar com o
comandante. A surpresa passou rápida pelos seus olhos recentemente habituados
ao ar dos tempos novos que subvertiam hierarquias e protocolos. Levou-nos ao
comandante. Este pareceu encantado com a ideia de fazer um desvio da rota
prevista e levar os inopinados passageiros ao seu destino. Aliás, o comandante
e os restantes oficiais, fazendo jus à fama das belles manières dos
marinheiros, a elite das forças armadas, receberam-nos como quem recebe visitas
de cerimónia que se quer honrar com o que de melhor houver.
Cumprimentadas as senhoras (?!) de beija-mão, fomos
convidados para uma bebida de boas-
vindas na sala dos oficiais. A conversa decorria amena, as vozes baixas, as
graças de salão, as gentilezas…Começámos a navegar. Eu já tinha olhado com alguma
apreensão para os carneirinhos brancos do mar. Não. Está tudo bem. Come-se uma
bolacha e pronto. Mas a linha do
horizonte começava a mover-se de maneira
atroz. O jovem marinheiro que servia as bebidas tirou disfarçadamente do bolso
uma bolacha e meteu-a à boca, num gesto rápido, para não ser visto. Não estou
sozinha, pensei. Vou aguentar-me, eu vou
conseg…oh, não! O vómito soltou-se, ignominioso! E agora? Que
vergonha! Que horror! O que fazer? Mas o comandante, com a mesma delicadeza com
que se interessara pela minha opinião sobre a paisagem da ilha Terceira, alheio
ao miserável aspecto do meu vestido, surdo aos arrepiantes sons dos arrancos
que eu já não conseguia reprimir, disse com um sorriso onde não era visível
ponta de ironia: _Minha senhora, ficaremos honrados se aceitar descer às nossas
camaratas onde poderá deitar-se e descansar com mais conforto. Atordoada,
aceitei, mas quando alguns passos cambaleantes depois, percebi que era preciso
descer uma escada que fazia um ângulo recto com o chão, encostei-me à parede e
… e é tudo o que recordo. Quando acordei, estava na sala de
jantar do navio, estendida num sofá, perto de uma longa mesa onde cerca de 15
pessoas almoçavam animadamente bacalhau cozido com batatas, tinha uma almofada
debaixo da cabeça e …um balde, ao lado, para vomitar!
Oh! Não! A situação
era insólita demais para ser verdadeira! Como podiam eles comer, beber,
conversar com aquele ruído de fundo que eu produzia, com o execrável
espectáculo de uma pessoa a vomitar ao seu lado?! Por que não me tinham levado
para algum sítio onde o mar pudesse, à vontade, arrancar-me as entranhas,
descabelar-me, matar-me, enfim?! Mas com o mesmo imperturbável e delicado
sorriso, de tempos a tempos o comandante olhava-me e dizia compreensivo: Minha
senhora, as ondas hoje estão quadradas!
Aos poucos, os balanços ficaram diferentes. Em vez de uma
subida vertiginosa a que se seguia uma descida aos infernos, o navio assemelhava-se
agora a um berço que alguém empurrava furiosamente. O que se passa? A pergunta
não a consegui articular porque o estado de agonia não o permitia, mas pelas
vozes que me chegavam enovoadas pelo enjoo, percebi então que estávamos parados
frente à Graciosa. Devia fazer um esforço e espreitar pela janela para ficar a
conhecer a ilha, pensei. Vamos, é uma oportunidade única! Força! Nada. Aquele
balanço infernal atirava-me para o fundo de mim. Não consigo! Uma vaga maior,
no entanto, desceu de tal modo a janela que entrevi, no balanço, uma linha de
terra e a imagem branca de uma igreja que me pareceu gigante. Até hoje, é tudo
quanto conheço da Graciosa e ao nome da ilha associo sempre as palavras sábias
da minha sogra que dizia, filosoficamente, pensando nos desvios que os navios
sempre tinham de fazer para servir os graciosences: aquela ilha não devia
existir!
Mas a viagem continuou e chegámos a S. Jorge. A S. Jorge,
isto é, ao largo de S. Jorge. O navio
não acostava porque... não havia cais. Era preciso passar para um bote que veio
buscar os passageiros. Dito assim, parecia uma coisa fácil e rápida, mas o
destino ainda não tinha parado de brincar comigo. O bote lá estava, de facto,
bem junto do navio, mas ora ficava a um degrau da escada de corda que fora
estendida, ora descia tanto que a escada distava mais de um metro do barquinho!
O que tem de ser... A descida foi melodramática! As socas altas que calçava,
maldita moda da altura, eram um entrave que acrescia ao equilíbrio já de si
periclitante. Em baixo, aguardavam-me as mãos de ferro dos marinheiros, num
momento, a um palmo de distância, no momento seguinte, inalcançáveis. Um último
esforço destes últimos e vi-me, finalmente, dentro do bote…sem um sapato!
Terra firme. Um pé em terra firme, mesmo descalço, e todo o
mal-estar se desvaneceu como por encanto!
O deslumbramento da ilha tomou conta de tudo. O verde das pastagens, o
negro das rochas, o azul do mar…o deslumbramento foi total. E, até hoje, não se
desvaneceu.
A antropologia da Viagem,
com alguns
exemplos para se perceber
por Conceição Rocha
A alguns
milhares de quilómetros dessas terras por onde se viaja a sério fica Viana do
Castelo, onde nasci. Aí vivi até que uns 10 anos pouco viajados me levaram para
o Porto, onde a minha aventura no mundo quase nada melhorou na década mais
próxima. Mas o que me faltou em cosmopolitismo abundou em vida, que isto de
viagem nem sempre precisa de quilómetros para se cumprir, olhar os pertos
também vale alguma coisa, como iremos ver.
Até aos 8 anos
ou por aí, de viagens só me lembro de umas idas a Vigo, onde se compravam as
fazendas para os casacos compridos e caramelos de colar aos dentes. Três
excursões com as colegas e as
freiras foram o culminar dos anos
lectivos da infância e também tiveram significado: uma ao Bom Jesus de Braga,
outra a Ponte de Lima e a melhor, na 4ª
classe, a Vigo, onde comprei com os 20
escudos que a família me enfiou no bolso
duas bandarilhas de toureiro cruzadas por traz de uma pandeireta que tinha ao
dependuro um par de castanholas. Esse exemplar étnico esteve espetado na parede
do meu quarto até virmos para o Porto.
Mas acreditem
que nessa década de iniciação à vida um dos acontecimentos de que me lembro com
mais prazer é de uma não-viagem, uma não-epopeia marítima que provavelmente
terminou na Terra Nova ou na Gronelândia, não sei bem nem interessa ao caso.
Eu conto: em
1954 os estaleiros navais de Viana do Castelo construíram um navio-hospital, o
Gil Eanes, destinado a acompanhar os barcos de pesca do bacalhau e dar
assistência aos pescadores. Soube-se que
no dia do “bota a baixo”, da doca seca para o mar, viria a sr.ª d.ª Berta
Craveiro Lopes, primeira dama, amadrinhar o barco rebentando a garrafa de
espumante contra o casco. A minha Mãe e a minha Tia ficaram de olho no assunto,
não do bota a baixo, mas da dona Berta, que essa é que interessava. A senhora
tinha fama de finíssima, de muito bom
gosto a vestir e grande simpatia social. Flama e Século Ilustrado assim
asseguravam. No dia previsto, mãe e tia pegaram em mim e lá fomos para a doca
seca, colocadas bem à frente dos presentes, para espreitar a toilette. À
cautela, nós próprias fomos aperaltadas como devia ser. Passando a parte dos
discursos, da bênção do prior, dos foguetes e de outras minudências, o
aparecimento da D.ª Berta foi um acontecimento. Ainda hoje me lembro da
toilette em todos os seus detalhes: saia-casaco azul de bolas brancas, plissada
a saia, justo o casaquinho; sapatos, carteira e luvas em azul e branco a condizer,
na cabeça aloirada um elegante canottier branco também com o seu
apontamento de azul. As três apreciámos devidamente a elegância de d.ª Berta, a
frágil representante do salazarismo então no seu auge, coisa que eu não sabia
nem na altura me interessaria nada se soubesse. O barco foi-se aos solavancos
pela rampa da doca abaixo, lá para onde foi ou se foi não sei, nem era para
isso que eu lá estava. Sonhar era com a toilette da d.ª Berta, a Terra Nova já
estava descoberta, a novidade era outra. Muita conversa sobre o tailleur, o
chapéu, os tecidos e os complementos seguiram-se em casa, tinha valido a pena
espreitar o modelo. Está visto que a
minha domesticação feminina ocorria com
êxito, a viagem dirigiu-se a um vestido, para os homens ficavam o mar e o
esplêndido barco que, soube mais tarde, até sala de operações cirúrgicas tinha.
Navio Gil Eanes |
Adiante, agora
é mesmo viagem. No ano em que fiz a 4ª classe e a admissão, o meu Pai tirou a
carta de condução. Um amigo emprestou-lhe um carro, um Anglia e, com o pretexto
de me premiarem pelo êxito escolar, meus pais e eu embarcámos numa viagem pelo
país fora, a visitar aquilo que eles achavam dever completar uma educação esmerada:
mosteiro da Batalha, convento de Cristo em Tomar, Jerónimos, os três pilares do
gótico, do engenho nacional e da exaltação da pátria. Nada me comoveu tanto
como a toilette da d.ª Berta, passe a mesquinhez da comparação. Nem sequer a
história que meu pai comovidamente mencionou na Batalha, de um construtor que,
acusado pelas más línguas de que uma abóbada ia cair, sob ela passou a noite arriscando a própria vida, tão certo que
estava da sua razão.
O melhor, isso sim, estava para vir e aí a toilette da d.ª Berta
perdeu completamente o fulgor: o Portugal dos Pequeninos, em Coimbra, com as
suas casinhas de brincar onde se podia entrar e sair, jogar às escondidas, até
uma igrejinha lá havia com um jardinzinho a toda a volta, tudo muito perfeito,
muito variado, nem uma cubata africana
faltava, que Portugal ia até Timor e nessa altura eu já sabia como era longe.
Quase tive que sair sob ameaça de bofetão, senão ainda hoje lá estava.
Mas a hora
grande, a maior, estava por chegar e aconteceu no Jardim Zoológico. Chegados a
Lisboa e instalados em casa de tios maternos, visitado o mosteiro dos Jerónimos
e talvez a Torre de Belém, presumo, porque era perto e tudo sumamente chato,
eis o epicentro do maravilhoso, girafas, macacos, leão, hipopótamo, um sem fim
de bichos para mim, que de carne e osso
só conhecia cães, gatos, bichos de rebanho, a passarada e as pedreses em
cativeiro na capoeira. Nessa própria hora decidi que Portugal é Lisboa, ou
melhor, Portugal é o jardim zoológico que fica em Lisboa, nada do resto vale
muito a pena. Ainda hoje tenho dúvidas sobre a regionalização, por culpa do
jardim zoológico de Lisboa e dos seus inesquecíveis moradores.
A lenta viagem
dos meus anos continuou-se no Porto, com
algumas incursões por aqui e por alí, nada a declarar. A partir dos vinte, a
pedalada alongou-se até à Europa e mesmo a África, o médio oriente por fim.
Tudo do que vi gostei, mas o meu chão é o Porto.
O Porto que,
volvidos sessenta anos da minha presença, é o destino de um mundo que vem,
creio que muito mais do que dos tripeiros que vão. Coreanos e chineses
pendurados nas letras azuis que dizem Porto, espanhóis e alemães, franceses e
brasileiros de selfie em frente aos azulejos do Carmo, filas de todos eles à
porta da Lello, nem a Disneylândia da Casa Oriental escapa à memória digital,
que a dos miolos para turismo já não serve. Com esta Babel maravilhosa, que
certamente encerra mil histórias, vou terminar a minha memória de viagens, que
com gosto aqui partilho: uma viagem à
Quinta do Paço para comprar manteiga, que é donde gasto essa vitualha. Porquê essa viagem? Já vão ver.
Leitaria da Quinta do Paço |
Entre a minha
casa e a Quinta do Paço, em todas as estações e até no Inverno, circula o
mundo, como já disse e não vale a pena repetir. Um mundo de mapa nas mãos, cada
vez mais de telemóvel, julgo que por causa do GPS neste caso. Uma grande
afinidade entre todos, pararem nas esquinas a ver se se orientam. Como não se
orientam, quase sempre as tecnologias cedem lugar ao pessoal da terra, sempre
disponível para uma ajuda. Nesses me incluo. Um dia, na senda da manteiga,
encontro na esquina da Restauração um loiro dos seus sessentas, destacado de um
pequeno grupo, atrapalhado sem saber o que fazer com o mapa.
Queria o Palácio
de Cristal, soube eu dolorosamente depois. Vi o homem atrapalhado, ele olhou
para mim e eu, com o meu inglês de meter nojo, em vez de lhe dizer “may I help
you”, deu-me para lhe dizer “do you want something?, no repente do desejo de
ajudar. O homem olha-me com ar furioso de puritano ofendido e responde-me com
um ríspido “no”, a que logo acrescenta: “my wife is there”, e apontou com o
dedo a senhora. Percebi logo no que me tinha metido. Passei por p***. P*** rejeitada, ainda por cima. Nem o preço
me perguntou. Moral da história, na Disneylândia os cabelos brancos não vendem. De rabo entre as pernas fui-me à manteiga,
que era o destino da minha viagem e, no gosto de curar as minhas emoções com chantilly, assim o fiz com um belo éclair
e até iam dois se não fossem as consequências.
Conceição
Pinto da Rocha, Porto, Dezembro de 2019, data em que fui obrigada a escrever
sobre este tema.
VOYAGE AUTOUR DE MA
CHAMBRE
por Delfina Rodrigues
“Voyage autour de
ma chambre” ocorreu-me no exato momento em que recebi um e-mail que me
instigava a inventar, caso não tivesse terminado viagem que inspirasse uma
história, pois se não viajei, que tivesse viajado, dizia a emissora digital, se
nada tinha para contar, que inventasse.
E, pour cause, as primeiras palavras das “Viagens Na Minha Terra“ de
Garrett: “Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de
Inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas
com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta
e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos
ia até ao quintal”
Acorre, e acode, também, o Nobre das
“Viagens Na Minha Terra” a provar que sim, que se viaja sem sair do lugar: “Às
vezes, passo horas inteiras/Olhos fitos nestas braseiras, /Sonhando o tempo que
lá vai;/E jornadeio em fantasia/Essas jornadas que eu fazia/Ao velho Douro,
mais meu Pai”.
E a viagem oferece-se-lhe, em memória.
Sem viagem, com um Inverno próximo
do de Turim, à beira dos Alpes, deambulo, pois, pelo meu quarto, num espaço
muito circunscrito. Porém, com janela, ou janelas, se quisermos abandonar o
sentido literal. Também eu me detenho nos objetos. São muito poucos. È um
ambiente quase monacal. Na parede, um desenho emoldurado dá-me a exterioridade
de que preciso para contar uma história. Aliás, um encontro.
Definem-no muito poucas linhas,
tendencialmente curvas. Um rosto feminino, suavemente inclinado. E já estou em
96, num almoço pitoresco, informal, literário, muito perto da Braga. Sentam-me
junto a um “velho “de fartos cabelos brancos, um ar desligado do prosaísmo das
coisas reais e do cheiro das sardinhas que se iam assando e que ia convocando a
atenção dos convivas mais terrenos. Parecia um poeta. E era. Era o António
Ramos Rosa. Em pessoa. Satisfeita por ter sido sentada por um poeta junto do
Poeta, abateu-se sobre mim a pressão de ter dizer coisas inteligentes para
estar à altura do meu interlocutor privilegiado.
De repente, a cabeça baralhada
de intertextualidades, confundia a “vírgula maníaca” com o “olho lírico”; o
“funcionário cansado” com “o modo funcionário de viver”; o “não podemos adiar o
amor para outro século” com “é urgente o amor” e assim por diante. Queria
impressionar? Falar necessariamente de literatura? Serenamente, do nada, como
quem pousa de sonha acordado, o poeta começa a contar-me a história que lhe
ocupava o pensamento: a história de um motociclista que circulava atrás de um
camião que transportava lâminas de alumínio cortantes. E, em velocidade, uma
solta-se, atinge o motociclista e corta-lhe a cabeça. Foi
então possível assistir a algo inédito – um
indivíduo sem cabeça a continuar a sua viagem por mais algum tempo.
Não sei por que evoco esta história
aqui. Sei que o desenho, que me foi oferecido pelo próprio poeta tempos mais
tarde, todos os dias me enternece e faz sorrir. Todos os dias me transporta no
tempo e no espaço, me lembra a primeira ansiedade daquele encontro e a sua
desconstrução, me reembala nessa conversa que, prolongada, fez jus à dimensão
do poeta sem anular a interlocutora.
Cabe agora ao benévolo ouvinte
distinguir aqui, neste relato, a realidade da efabulação ou, mais
prosaicamente, a verdade da mentira.
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