segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Traz-me uma história!


José Tolentino de Mendonça escreve no livro "O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas":
Quando um amigo vai viajar e me pergunta o que eu quero que me traga de recordação, respondo: traz-me uma história!
 Com leitoras do Clube de Leitura a viajar, no passado mês de Novembro, inspirei-me em Tolentino de Mendonça e pedi: tragam-nos uma história! 
E, assim, fomos à Índia, ao Brasil e  a Londres. Mas os que não fizeram viagens recentes não ficaram dispensados. E fomos também a Katmandu, aos Açores, ouvimos uma extraordinária antropologia da viagem  e até viajámos  autour d'une chambre!

Uma excelente preparação interior para a próxima leitura: Viagens de Olga Tokarczuc 




                                  A Índia
                                                           


                                  Uma viagem à Índia

                                                                   por Maria João Leite de Castro


Em qualquer viagem que faço, mais do que os monumentos, templos, construções humanas em geral ou, até, mais do que as paisagens naturais, interessam-me sobretudo as paisagens humanas, os modos diversificados de viver, de pensar e de ser dos países que visito.
Claro que em quinze dias não posso apreender profundamente essas vivências e, naturalmente, as considerações que faço podem estar erradas e são sobretudo interpretações pessoais, construídas, também elas, a partir de um olhar culturalmente formatado e, portanto, nunca isento.
De qualquer forma, e tendo em conta estes pressupostos, partilho aqui as minhas impressões pessoais.
Depois de aterrar em Chennai, no Sul da India, e depois de ter estado 2 noites no Dubai (onde o luxo, a ostentação e o consumo imperam), a primeira impressão chocante foi a miséria e a sujidade. Do autocarro que nos transportava do aeroporto ao hotel, já noite, observei alguns corpos de adultos e crianças deitados no chão, por vezes, num passeio praticamente inexistente, no meio de cães famintos e de lixo espalhado sem qualquer pudor. Embora já estivesse estado na India e de ter ainda presente algumas imagens que na altura também me marcaram (lembro por exemplo, a imagem de uma jovem mãe a dar de mamar sentada em cima de uma lixeira enorme...), a verdade é que, acabada de aterrar e de vir de um país escandalosamente rico, tive de uma forma intensa a noção da desigualdade e da injustiça do mundo.
Depois, nos dias que se seguiram, o confronto com uma religiosidade que, para os nossos olhos é inexplicável, primária, muito ligada a rituais que não compreendemos, mas que são, simultaneamente, belos, pelas cores, pelos templos onde se realizam,  pela sonoridade, pela comunhão e esperança que proporcionam. Segundo o guia, esta religiosidade é sobretudo intensa nas cidades, onde as pessoas acorrem na esperança de uma vida melhor (só em Chennai há 8 milhões de habitantes), mas onde vivem pior. O hinduísmo, com cerca de 3500 anos de existência tem, só na Índia e no Nepal, 905 milhões de fiéis e os hindus veneram cerca de 330 mil divindades diferentes. Mais do que uma religião é um conjunto de crenças, de rituais, de códigos, de idiossincrasias de um povo…um fenómeno e um sentimento que se transmite de geração em geração e que é também justificação religiosa para a afirmação da identidade e da unidade da Índia. Ser Hindu é, de alguma forma, ser Indiano.
A este propósito, o nosso guia (um jovem formado em Direito e com uma cultura que lhe permite ter alguma visão crítica sobre a realidade) contou-nos a seguinte história que ilustra bem esta mentalidade:
Há uns anos, uma Indiana ganhou o concurso de Miss Universo. Tinha um namorado, queria casar e por isso, resolveu consultar uma astróloga. Esta disse que o primeiro casamento resultaria em divórcio, só o segundo seria bem-sucedido. Então, ela desposou primeiro uma árvore, divorciou-se e casou depois com o seu namorado, com quem vive há 11 anos, cumprindo a profecia…
Depois, a constatação de que, na verdade, a Índia não é um país no sentido de um bloco homogéneo, monolingue e monocultural, mas um Continente com diferentes estados, com diferenças significativas entre eles (23 idiomas diferentes ilustram essas diferenças). Depois de estarmos uns dias no estado de Tamil Nadu, pobre, árido, populoso, atravessámos os montes Nilgiri e entrámos no estado de Kerala e a paisagem natural transformou-se completamente, com as suas plantações de arroz, de chá, de árvore da borracha e de coqueiros, as suas lagoas labirínticas e florestas tropicais luxuriantes. A paisagem humana é também diferente, as casas mais arranjadas, as ruas mais limpas e por todo o lado se veem crianças de uniforme a irem para a escola. Kerala orgulha-se de ter a maior taxa de alfabetização da Índia, segundo o guia tem 100% de alfabetização.
Para além das diferenças, geográficas, culturais, históricas e até religiosas, a Índia afirma a sua unidade na beleza das cores, nos cheiros e sabores, na simpatia do seu povo e na forma como acolhe todas essas diferenças.







O Sul da India no meu coração

A  história de um “ coup de foudre” de 
amizade

por Ana Teixeira



Foi em Madurai que esta minha história simples, de amizade relâmpago, aconteceu!
Madurai é uma cidade situada no interior sul, do Estado da Tamil Nadu e uma das mais antigas cidades da Índia com 2.500 anos de história.
Apesar de Chennai ser a capital do estado de Tamil Nadu, Madurai é conhecida como sua capital cultural e, segundo o nosso guia acompanhante, é visitada anualmente, por milhares de peregrinos e turistas atraídos principalmente pelas grandes festas religiosas realizadas em torno do Grande Templo Meenakshi ( Mīnachchi) dedicado à deusa Parvati, esposa de Shiva, um dos deuses supremos do hinduísmo.  

Foi a visita a este templo a razão principal da nossa paragem em Madurai e onde a experiência mais emocional da viagem me aconteceu!




O plano de viagem incluiu uma visita ao templo de manhã e outra ao final da tarde para presenciar uma cerimónia, denominada Aarti, que decorre num período de tempo inferior a 10 minutos : todas as noites, antes de o templo fechar, é levado a cabo um ritual de cortejo com tambores durante o qual é transportado num tamborete de bronze a imagem de Shiva para o quarto de Meenakshi ( avatar da deusa Parvati) a fim de se consumar a união do casal; no alvorecer da manhã, a imagem é levada de volta para o santuário do Shiva.

Este templo, dos mais lindos que vi na Índia, ocupa uma enorme área e é cercado por 14 torres de entrada, altas, coloridas e minuciosamente decoradas. Cada torre consiste numa estrutura de vários andares, coberta por milhares de figuras de pedra que retratam animais, deuses e demónios pintados com cores vivas.







Passear por lá foi sentir de perto a cultura hindu, com histórias e lendas de muitos séculos e de diferentes dinastias.  Julga-se que o templo começou a ser construído no século VI ac, mas grande parte do que vemos agora, é resultado de renovações e expansões feitas nos séculos XIV e XVI. A nós turistas, é vedada a visita ao principal santuário dedicado a Shiva e Meenakshi, podendo-se, todavia, circular por todo o restante complexo dividido numa série de recintos quadrangulares concêntricos contidos por altos muros.   



Foi no Hall dos Mil Pilares, na realidade com 985 pilastras, ao observar as incríveis pinturas no chão e teto dos corredores que me confrontei mais uma vez com o afeto e carinho do povo indiano, mas agora de uma forma mais intimista e intrigante. Uma mulher de beleza calma acompanhada pelo marido dirigiu-se a mim e com um carinho extremo interpelou-me querendo saber de onde era e como estava a sentir a Índia. Foi uma empatia instantânea e reciproca. As mãos tocaram-se os olhos falaram, trocamos sorrisos e ambas nos sentimos irmanadas no mundo sem fronteiras, dos afetos. Respondi às perguntas feitas em inglês e desajeitadamente acabei por me despedir juntando-me ao guia e continuando essa manha de visita ao templo. Ficou em mim uma forte e agradável impressão!






Ao final da tarde, realizamos nova visita a este Templo para viver a cerimónia de acasalamento do deus Shiva com a sua consorte Meenakshi.



Quando se estava a iniciar a cerimónia e no meio de uma agitação enorme em que os tambores e cornetas se faziam ouvir de forma estridente e ritmada acompanhando as longas passadas de um elefante soberbamente decorado e de um touro ornamentado como oferenda, avisto a minha amiga indiana que corre feliz para mim, me abraça fortemente e me chama de amiga.  

Foi um momento de forte emoção. Era uma amiga que ali estava e que comigo partilhava aquele momento fugaz e atordoado de encanto lendário.
Este momento foi o suficiente para no meio da multidão e do frenesim do cortejo me perder do restante grupo.  Com custo tento despedir-me da minha amiga indiana, que me retém com a pressão da sua mão e o afeto dos seus olhos.  Deixo ao marido o meu telefone, nem nome deixei!
Corri ao longo do alucinante cortejo, encontro a Melucha, sozinha, também. Ambas seguimos o cortejo até ao fim e somos encontradas pelo guia que nos procurava no meio da multidão. 
Voltei para o meu grupo e seguimos viagem por mais oito maravilhosos dias.
De Madurai partimos para Periyar, no Estado de Kerala, deixando para trás o extraordinário Estado de Tamil Nadu.
Na memória ficou-me aquele momento mágico de afeto e reconhecimento humano.


                                                 Uma Viagem à India

                                                                     
                                                                    por Mª Amélia de Lencastre V. Correia  


Bilhete de Identidade
O sexto país maior do mundo, habitado por mais de um bilião de pessoas, o subcontinente indiano estende-se dos picos dos Himalaias ao norte, até ao oceano Indico a sul, atravessando uma variedade imensa de  ecossistemas,  desde   cadeias de montanhosas,  densas florestas , desertos, planícies e planaltos. A sua história é milenar e atravessada por uma variedade incrível de povos com diferentes civilizações. Foi berço de quatro religiões: hinduísmo, budismo, jainismo e sikhismo na sua maioria pré-cristãs. Para além destas, grande parte da população, sobretudo no norte, aderiu ao islão e ainda se encontram, embora sub-representadas, comunidades cristãs, judias e parsis. Possui 22 línguas oficiais, 164 línguas menores,  e cerca de 4000 dialectos  não reconhecidos. O inglês compreendido por uma grande parte da população foi substituído pelo hindi como língua oficial da República da Índia, que é considerada a maior democracia do mundo.

Impressões de uma jornada indiana
 Uma profusão imensa e penetrante de cheiros nauseabundos, dos excrementos, do lixo, dos esgotos a céu aberto, das frutas e flores putrefactas. De vez em quando uma aragem fresquíssima e inebriante, com um odor floral intenso, onde predomina o jasmim e a gardénia. Tudo isto entrelaçado por especiarias várias, onde o caril está sempre presente, além de muitas outras dificilmente distinguíveis.
O colorido opulento, das especiarias das frutas dos legumes das sedas,  dos saris das mulheres, pontuado de quando em vez por notas de uma dos brancura inacreditável dos trajos dos homens, tudo isto disseminado em corredores ruas poeirentas de terra  batida.  Nos mercados tudo isto se cruza. As bancas e os compartimentos esconsos que rodeiam os corredores estreitos de terra batida são castanhos acinzentados, da terra do pó da falta de luz (são mercados cobertos, possivelmente por causa das chuvas) onde se acotovelam compradores, vendedores, mirones carregadores com cargas enormes. Há sectores que convém evitar como a zona do peixe -  o fedor sente-se longe, e  a zona da carne também. Num  cubículo apinhado de gaiolas com galináceos, mal se distingue o vendedor, tem o aspecto dum gandi.  Está sentado no meio da sua mercadoria, não parece muito ralado com as vendas, já adquiriu a cor das galinhas. Do outro lado da rua à saída do mercado um homem mata e depena os frangos com uma rapidez e uma perícia inimagináveis.

A zona das flores é um regalo para o olhar: pirâmides de pétalas de todas as cores, colares de flores e ramos. As flores variadíssimas, são oferendas para os templos.   
Uma família inteira de visita ao museu sorri, todos desejosos de comunicarem. Apresentam-se: são pais, mães, avós, filhos, genros, noras, netos,  toda a família alargada, desejam  saber o que achamos da India  De onde somos e lá vem o Cristiano Ronaldo (apesar do futebol não ser muito popular na  India) o genro conhece.   Quando chegamos, quando regressamos, é a primeira vez que visitamos à India? Agora o momento das fotografias os telemóveis circulam, só mais uma, encantados com a maneira como os abraçamos para cabermos na fotografia.
Pai e mãe muito jovens, com dois meninos todos bem escurinhos e muito bonitos, com seus trajes domingueiros vão subindo as 450 escadas do forte  de Trychy. Os meninos vestidos de brocado são dois marajás em miniatura. Eis que sentam os meninos nas escadas para tirar uma fotografia. Paro na descida encantada e exclamo: que belezas de meninos, os pais devolvem-me um sorriso de orelha a orelha.
Em Bombaim no bairro dos pescadores, uma mulher sorri e faz sinal para seguirmos para o outro lado. Percebeu que seria um espectáculo muito miserável para olhos ocidentais. Mas quando o turista teima em conhecer a India profunda, que fazer?
O templo de Madurai está literalmente apenhado de gente, hoje é um dia propício, segundo o Arun (nosso guia). As famílias abancam no chão para os picnics junto ao enorme lago ritual. As meninas são verdadeiramente impressionantes nos seus vestidos de nylon e de brocado colorido cheios de laços e lacinhos, folhos e folhinhos, saias e saiotes num barroco a roçar o kitsch - encantador. Os sapatos ou sandálias condizem, com saltinho e muitos pormenores dourados e prateados. Desfilam vaidosas orgulhosíssimas dos seus “trajes de luces”. As raparigas mais velhas nos seus saris possuem caras lindíssimas e sempre sorridentes. Os rapazes e homens não vestem tão garridamente. Encontram-se sobretudo entre os mais velhos aquela espécie de lençol que eles enrolam de variadíssimas maneiras, fazendo inveja às nossas mulheres elegantes que tão sabiamente enrolam suas écharpes. Tão depressa o enroscam em torno dos ombros e das costas passando depois entre as coxas e por fim em volta das pernas, deixando-o pender das virilhas sobre a barriga das pernas. Quando é preciso também cobrem as cabeças, mas de repente já está transformado numa simples fralda, arejada e prática.
   Encanta, ver o cuidado e a ternura dos homens com as crianças. Enternece, observar a atenção das famílias com os velhos, sobretudo quando já têm algumas incapacidades.
 Os templos hindus são de forma geral enormes e fantásticos. Alguns são quase cidades dentro de cidades. Possuem torres imensas  e sublimes (gopurans) que se elevam acima dos  portais e dos tectos literalmente cheios estátuas das divindades por vezes de todas as cores.  A profusão de deuses com os seus respectivos avatares e veículos é tão grande que seria necessário um especialista e muitas horas para nos explicar minimamente esta mitologia complicadíssima. Há uma grande devoção ao Shiva (deus construtor e destruidor ao mesmo tempo). O santo dos santos está reservado aos crentes. Mas vamos penetrando nos inúmeros átrios, pátios, salas nos corredores muitas vezes ladeados de lingams (representações do pénis de Shiva), devidamente oleados com ghee (espécie de manteiga derretida). As salas hipostilas algumas com centenas de colunas, em que nenhuma é igual a outra  e todas são um primor escultórico. Nos altares os sacerdotes, praticam o culto banhando estátuas e estatuetas com mistelas várias. As certas horas do dia começam a rufar tambores e instrumentos, vários, sinal que é hora da bênção e lá vamos nós na procissão para sermos abençoados. Ficamos cheios de cinza e com a testa pintada à maneira indiana.
Todos os fins de tarde, a horas variáveis, no templo de Madurai, dedicado a Shiva, há um cerimonial que envolve uma procissão onde entra um touro (veiculo de Shiva) e um elefante (seu filho Ganesh) para além de vários andores, um deles transportando a estátua de Shiva. Todos os dias vão levar Shiva a passar a noite com a sua esposa Parvati. De manhã na alvorada fazem o contrário. O touro é pachorrento, mas o elefante investe como um carro blindado por aqueles corredores imensos com uma fúria incontida. É preciso muito cuidado para não ficar esfacelado. Pobres elefantes parecem tão tristes, todos pintados e cheios de flores te  aguentando pacientemente aqueles rituais infindáveis.
Voltamos ao hotel primeiro a pé entre carros, carroças, riquexós, tuc tucs, camionetes, motorizadas bicicletas, vacas (muito menos hoje em dia) num barulho ensurdecedor de buzinas, até ao autocarro. Os motoristas são de uma perícia extrema para conseguirem romper entre esta avalanche, devem ter a bênção de muitos deuses.
Chegados ao hotel deparamos com o glamour de Bolywood! Um casamento cheio de convidados que desfilam pela alamedas devidamente iluminadas, atrás de um automóvel vintage descapotável todo branco com estofos vermelhos, ao som da música.
Somos transportados para um filme indiano, mas com um happy end.  Os apaixonados venceram finalmente todos os obstáculos que as famílias levantaram, casaram e serão felizes para sempre. 


                                                   O Brasil





                     50´´ segundos em São Paulo

                                                           por Manuela Pereira

Quarta-feira em São Paulo. Dia de comer feijoada no boteco.
No Itaim Bibi, novo bairro financeiro de classe alta _ zona de valor A, grandes e modernos edifícios de vidro erguem-se tocando o céu e espelham-se uns aos outros criando jogos de luzes  e cores.
Abrigam centros de negócios de importantes empresas: Google, Facebook, Louis Vuitton… O térreo dos prédios é ajardinado e tem espelhos de água e chafarizes.
Nos jardins esculturas de onças pintadas por artistas plásticos apelam para a sua protecção. A onça é um animal em via de extinção.
Seguranças olham continuamente em redor e vigiam todas as pessoas que passam na rua.
Grupos de jovens homens e mulheres deslocam-se em grupos. Os homens vestem calças cinzentas ou pretas, camisas brancas ou azul claro metidas dentro das calças, cintos e sapatos pretos. Todos têm o primeiro botão da camisa desabotoado. Deixaram a gravata e o casaco no escritório quando saíram para almoçar. Robôs!
Percorrem as Avenidas Brig. Faria Lima e Pres. Juscelino Kubitscheck em diferentes direcções, à procura do seu restaurante preferido _ indiano, asiático, francês, italiano, árabe.
Caminhávamos para o interior do bairro. O trânsito estava cortado. Cinco carros da polícia e uma fita vermelha e branca marcavam o perímetro de uma zona junto aos prédios.

Ao passarmos pelos bares e restaurantes, ouvíamos grupos de pessoas comentar o que acabara de acontecer dez minutos antes.
Um motoboy tinha tentado tirar a carteira a uma mulher. O segurança do prédio tinha puxado da arma. Tinha atingido o motoboy com um tiro.
No passeio oposto jazia um jovem, casaco de motoboy aberto deixando ver o tronco nu, celular ainda na mão.
Morto.
Ao fim da tarde, o vídeo de vigilância do prédio começava a circular no WhatsApp.
Mostra um carro preto de vidros escuros. Um segurança segura a porta do condutor. Sai uma mulher loira. Tira alguma coisa do banco da frente. Tira a carteira do banco de trás. Tira um saco pela porta do outro lado. O segurança vigia atentamente em redor. Em sentido proibido aparece um motoboy. Pára atrás do carro. O segurança posiciona-se entre ele e a mulher. A mulher dirige-se à entrada do prédio. O motoboy tenta passar o segurança, com a caixa às costas. O segurança barra-lhe a passagem. O motoboy insiste. O segurança saca da arma. Dispara. O motoboy foge a correr. O segurança dispara mais vezes. Quatro tiros.
O motoboy cai morto no passeio.
Não saiu nas notícias.
                                                                                                     CL_Manuela Pereira_Nov.2019






                          O Paraíso 

                                                                       por Manuela pereira

Para chegar ao Paraíso é preciso atravessar o Mar Grande, percorrer ilhas inóspitas, navegar no Rio Inferno.

Atravessar o Mar Grande
No Porto de S.Joaquim, em Salvador da Bahía, apanhámos o ‘ferryboat’ que nos levou a Bom Despacho. O ferry leva uma hora a atravessar a baía __ Bahía de Todos os Santos, porque quando os espanhóis avançaram baía adentro com os seus galeões, para derrotar os portugueses, todos os santos se uniram. Não só os dos portugueses mas também os santos nativos, todos os orixás, e foi assim, com a ajuda de Todos os Santos, que os espanhóis foram derrotados.

O tempo da travessia passou rápido. É muita a animação no ferry. Vendedores ambulantes vendem água, sumos, gelados e petiscos.
Logo à entrada um ‘Sean Connery’ brasileiro, cinquentão, veio falar-nos para saber se iríamos para Valença. Propôs conduzir-nos no seu carro por trinta reais cada um, se arranjasse mais dois passageiros. Se não arranjasse não haveria problema, levar-nos-ia também.
A meio da viagem, veio dizer-nos que tinha arranjado mais três pessoas, um casal e uma criança, e como não poderia transportar cinco, não nos iria levar. Já tinha falado a outro colega da máxima confiança, que nos levaria nas mesmas condições. Logo ali nos fez guardar o seu número de telefone e o do outro condutor. Quis que falássemos com ele, o Gildo, para ele ouvir e confirmar que tudo estava certo.
A partir daí começaram as mensagens do Gildo: “Estou num carro preto logo à saída do ferry, à direita.”; “Estou com calças azuis e blusa amarela.”. Por fim chegou a fotografia de um Gildo sorridente e simpático. 
E atracámos em Bom Despacho. Antes, o ‘Sean Connery’ tinha vindo dizer-nos para sairmos atrás dele, pela zona dos carros. Se saíssemos pelo lado dos passageiros, a polícia não nos deixaria passar para onde o Gildo nos esperava. Quando saímos atrás dele e do casal com criança, percebemos que muitos passageiros saíam por ali.
O Gildo estava à nossa espera. Mas não só o Gildo. Havia cerca de dez carros à espera de passageiros. Alguns condutores pegavam-se à pancada na disputa de clientes. Com o Gildo nada disso. Ele fazia um trabalho sério e nós éramos amigos de um grande amigo seu, nunca nos iria deixar ficar mal.
No carro, partimos com mais uma rapariga – que já tinha estado em Portugal, em Évora, a fazer o mestrado do curso de desporto – e uma mulher com um bebé de um ano ao colo, que desdenhava de tudo.
Percorrer ilhas inóspitas
Foram duas horas para atravessar a Ilha de Itaparica, de Bom Despacho a Valença, passando por Nazaré das Farinhas, terra de Vampeta. (ex-futebolista – 1990 a 2005  – da selecção brasileira, que actuava como volante.)
Mas a viagem também não foi monótona. Enquanto nos conduzia por estradas em mau estado, num carro onde o ar condicionado não funcionava, pelo meio de vegetação luxuriante, e bois brancos e magros, o Gildo ia conversando. Muita gente de Valença tinha ido para São Paulo tentar a sorte. Ele não. Estava bem com aquele negócio da condução. O ónibus era mais barato mas muito demorado, parava em todo o lado. Ele fazia a condução directa a Valença, com toda a comodidade.
Mas muitos tinham-se metido por maus caminhos, roubavam, e as famílias expulsaram-nos de Valença. Foram para São Paulo. Mas a maior parte não se deu bem. Acabaram presos pela polícia ou agarrados ao ‘crack’.
Na viagem de volta, vindos de Valença para o ferry, o Gildo chegou um pouco atrasado, mas apareceu como nos tinha prometido. Já os taxistas nos rodeavam e de cada vez nos propunham um preço mais baixo, mas sempre mais do dobro do preço do Gildo. Não podiam trazer ninguém na viagem de volta, por causa da polícia.
O Gildo também estava com problemas. Disse que não ia poder levar-nos porque a polícia estava na estrada. Já na semana anterior tinha pago uma multa de quatrocentos reais. Eram eles os culpados de muita gente se perder por maus caminhos. Um homem queria trabalhar honestamente e a polícia não deixava, dizia.
Tudo porque o Perfeito era também o dono da Empresa de Camionagem. Por isso queria implementar o uso dos transportes públicos e punha a polícia na estrada para os apanhar. Mas nós não iríamos ficar mal. Levou-nos até uma paragem de ónibus, onde captavam os clientes. Lá estavam o ‘Sean Connery’ e mais meia dúzia de condutores, todos parados, sem poderem trabalhar.
Mas nós iríamos passar. Não perderíamos o avião. Estava a chegar um colega que poderia passar pela polícia. Ao perceber que estranhávamos, explicou que esse colega tinha pago o sindicato e deixavam-no passar. E lá acabou por aparecer um jovem, que só iria se levasse quatro. Uma mulher e nós éramos três. Passou a buscar a quarta passageira na cidade. Entrou com um cãozito, enquanto a mulher resmungava que iria espirrar toda a viagem.
Ao passar pela polícia o jovem condutor acenava e apitava repetidamente, como a dizer “Sou eu! Sou eu! Sou eu que vou aqui!”.
Como tínhamos sabido que poderíamos atravessar no ferry a partir de Vera Cruz, falámos disso ao jovem condutor. Pena não poder levar-nos lá! A mulher do cão tinha mesmo que ir para Valença. Mas algum tempo depois, parou numa rotunda, disse-nos que saíssemos, que alguém nos levaria a Vera Cruz. Na paragem de ónibus mais alguns condutores parados, sem trabalhar. Na estrada surgiu um carro. O nosso condutor acenou e perguntou “Vais para Vera Cruz?”. “Leva este casal que vai apanhar o ferry.”,  ordenou.
E lá fomos num carro ainda pior. Levava ao meu lado, no banco de trás, um cesto com pães de queijo, que “Estava a levar para vender em Vera Cruz”.              E chegámos ao ferry a tempo e horas.
Desta vez nem paguei bilhete. Pessoas com mais de cinquenta anos não andam na rua. Muito menos de cabelos brancos e com rugas. Por isso, os maiores de sessenta anos já têm tratamento preferencial : ) Não pagam bilhete no metro, no trem e também não pagam no ferry.
Navegar no Rio Inferno
De Valença para a Ilha de Boipeba apanhámos a lancha rápida, para mais uma hora de viagem. Os urubús volteavam junto aos barcos atracados no cais, abrindo as largas asas pretas. Junto à costa, flamingos pernaltas passeavam lentamente na água parada.
A lancha ia directa à Ilha de Boipeba, mas a meio da viagem fomos divididos por três lanchas mais pequenas, mas ainda mais rápidas. Na esteira umas das outras, avançavam no mar plano, a toda a velocidade.
Passámos terras com igrejas no cimo dos morros. Mas logo se fez mar grande. As lanchas continuavam determinadas, rasgando as águas. Como navegavam com tanta certeza? Os jovens condutores das lanchas levavam o acelerador no fundo e uma determinação total de prosseguir em frente.
Ao fim de algum tempo começámos a ver as margens das primeiras ilhas. Os manguezais estendiam-se até ao mar. Só abrandámos numa zona com bancos de areia. Estávamos já no Rio Inferno. Numa volta da lancha vimos areia branca, coqueiros na praia e muitas embarcações junto ao cais.
O Paraíso
Chegados à ilha o tempo pára. Junto ao cais pequenas casas. Logo seguimos, já na areia, sobre tábuas, por entre bares e restaurantes de madeira, cobertos com folhas de palmeira. As tábuas no chão terminaram e o resto do caminho até à pousada foi feito já com pé na areia.

A pousada, era um conjunto de pequenas casinhas no meio de muita vegetação, todas com rede para descansar, num pequeno pátio. O dono da pousada, um francês que vivia em Nova Iorque, tinha ido para a ilha há quarenta anos e nunca mais de lá saíra. A companheira, holandesa, estava lá há vinte e também não sairia de lá.
Pé na areia, mar manso, sol quente e uma brisa morna que nos acaricia. É fácil não usar roupa. Pescam-se peixes no mar e ostras no rio. Plantações de coqueiros estendem-se até ao mar. Se há sede, bebe-se água de côco. Frutos caem das árvores, maduros. Das próprias ervas fazem-se petiscos. Maravilhoso o açaí, o mingau, a coxinha de jaca e todos os sucos de fruta. Os nativos são calmos e afáveis. Tentam ‘tirar vantagem’, mas sorriem se não conseguem.
Caminhámos duas horas pelas praias__Tassimirim, Cueira__fizemos uma trilha na mata, atravessámos o rio Oritibe e chegámos a Moreré, sítio de pescadores. Meia dúzia de casas.
Voltámos para a pousada de tractor. Um tractor que puxava a parte de trás de uma camionete de carga, onde tinham instalado bancos corridos de madeira. Atravessámos a floresta atlântica protegida, já quase noite. Percorremos as ruas da Velha Boipeba. Há uma igreja, uma loja de bikinis e uma loja de bom artesanato. Fomos recebidos por uma argentina que vivia há muito na ilha.
Jantámos no melhor restaurante de Boipeba, o da nossa pousada.         Dormimos como anjos.
O Paraíso existe…em Boipeba.



PARIS

por Maria José Marques

Fim de Julho, 2002, toda a família a trabalhar e eu de férias.
O meu filho, que trabalhava em Antibes, Côte d’Azur, um tanto ou quanto a sul de PARIS, convidou-me a passar com ele uma semana, ou terei sido eu a fazer-me convidada…A ideia era ele trabalhar de segunda a sexta-feira, eu passear durante o dia e teríamos o jantar e o serão para estarmos juntos. Nessa época Antibes era onde ele passava o fim-de- semana, o trabalho, esse, levava-o para outros lugares durante a semana.
Nessa semana, como em muitas outras, o trabalho levá-lo-ia para um lugar a uns 344 km a norte de PARIS  “ as the crow flies “. O local era muito do meu agrado, diz-se até que quem se cansa dele é porque já se cansou da vida. Aproveitando um voo acessível cheguei ao ponto de encontro no sábado, cedo, sem qualquer plano para os dois dias antes de encontrar o querido filho. Estava um belo dia de sol, convidava a um passeio à beira rio. Royal Festival Hall  do outro lado da rua  do apartamento gentilmente emprestado por um amigo, Tate Modern  uma milha adiante (a visita fica para outro dia) e logo The Globe Theatre. Aí, sem a menor esperança de ver um espectáculo, fui lendo as paredes. Não me lembro do tamanho ou da cor do cartaz que dizia :
                                                READ NOT DEAD


 Este é, ainda hoje, o título de uma fantástica iniciativa do serviço educativo do teatro The Globe e consiste na leitura em palco de peças escritas entre a subida ao trono de Isabel I e fecho dos teatros por ordem de Jaime II, 1558-1642, uma época extremamente fértil de produção teatral da qual sobreviveram impressas cerca de 400 peças , nesta terra a norte de PARIS. A regra do jogo é esta: actores voluntários recebem o texto de uma dessas peças no domingo de manhã às 10 horas, trabalham-no entre si, normalmente com a colaboração de um encenador, e às 4 horas da tarde sobem ao palco do Sam Wanamaker Playhouse , Ao lado do  Globe e, de papel na mão, representam a peça  sem ou com adereços, ou mesmo música.
Tão fascinante me pareceu a ideia que fui logo comprar um bilhete para ver a peça desse domingo e fui informada de que haveria uma leitura comentada/ conferência/ debate nessa mesma tarde de sábado a que podia assistir se estivesse interessada. Foi como perguntar ao esfomeado se queria comer alguma coisa. Daí a pouco lá estava eu sentada numa pequena sala-anfiteatro, no meio de pessoas que pareciam conhecer-se pelo modo como se cumprimentavam, e olhavam para mim como quem pergunta “e esta quem é ?” Uma senhora apresentada como docente de Oxford resumiu para o pequeno grupo, para quem não estivesse familiarizado com o seu trabalho, a tese de que não sendo Shakespeare grande inventor de enredos se ”inspirava”, para não dizer pior, em peças alheias. Seria o caso da peça que estaria em cena no dia seguinte.  Houve um curto debate e organizaram-se grupos de proximidade para examinar um texto entretanto distribuído. Eu escusei-me  com a justificação de ser estrangeira, de passagem, mas o grupo perto de mim insistiu em que eu ficasse nem que fosse só a observar. “De onde é? Quanto tempo vai ficar ? Nós somos um grupo de leitura .Consegue ler este inglês antigo ? Estudou teatro isabelino? Onde? Oh, Coimbra ? “. Acabei participando.
No domingo às 4 da tarde lá estava eu no pequeno teatro, que, não sendo uma réplica, é ao estilo dos teatros do século XVI. Os meus “amigos “ da véspera chamaram-me para junto deles e ofereceram-se para me ajudar a perceber o que se ia passar em palco. Os actores, muitos famosos conhecidos do pequeno e do grande écran,  pareciam apreciar o desafio e divertir-se enquanto representavam como se tivessem ensaiado durante semanas. O público, muito extrovertido, ria à gargalhada, aplaudia as atrapalhações na movimentação, dobrava o aplauso quando um actor repetia a sua fala com entoação mais expressiva. No intervalo os meus amigos quiseram saber que tal eu estava a perceber e alguém disse “You laugh in cue”. Não deixei mal a Alma Mater portanto.
 Glorioso fim de semana, graças também a um Clube do Livro.

Em  PARIS  nasceu Yasmina Reza a autora da peça ART, que o querido filho e eu vimos  nessa mesma semana no Whitehall Theatre near Trafalgar Square .

Semana memorável esta! Desde a entrada no apartamento errado à chegada, até ao dia extra  de estadia devido a overbooking no regresso. Mas isto não conto porque não tem mesmo nada, nada, nada a ver com PARIS.






 Katmandu

                                                                                     por Jorge Paradinha


Preciso de viajar como de pão para a boca!
Sempre que levanto os pés das pedras rubras, voo para outros fusos, outras gentes, aspiro outros ares, deslumbro-me com outras culturas, mesmo trocando os sonos e o trânsito intestinal, penso para mim, isto é que é vida!
Os imprevistos espreitam o viajante, para o bem e para o mal, mas depois dão aquelas histórias que compartilhamos com os amigos.
A que vos vou contar passou-se em Katmandu em 2011, na capital mais labiríntica e caótica, mas curiosamente mais organizada e funcional que conheci, como viajante, na Ásia meridional (não sei como a encontraria agora, depois do terramoto de 2015…).
Estava alojado nos arredores a convite da minha filha mais nova, médica voluntária no Mosteiro budista de Benchen, e deslocavamos até ao centro da cidade nuns táxis muito pequenos e básicos, pouco mais que mata-velhos. Eram quinze minutos de buzinadelas para arredar todos os seres vivos e outros veículos, mais ou menos lentos, naquele caos urbanístico (acreditem que é mais fácil circular aqui sem uma roda, que sem buzina…).
Contudo, ao fim de dois ou três dias, já vemos estes simpáticos veículos com mais benevolência, de tão baratos e seguros que são!
Nestas paragens tudo é negociado antecipadamente, e os táxis não fogem à regra, mesmo para uma corrida que não excedia, para nós, um euro.
Certo dia, debaixo de uma súbita chuva diluviana, a minha filha que me acompanhava, negociava com o taxista um desconto que equivalia a…dez cêntimos. No meu papel de progenitor encharcado até aos ossos, e num português irritado que só nós entendíamos, com algumas cotoveladas na ânsia de me abrigar, confrontei-a com o ridículo da situação. De nada me valeu o esforço…Oh pai, mais dez cêntimos…é muito acima do que tenho pago! Não podemos aumentar a inflação! Daqui a dias o pai vai-se embora e quem cá fica passa a pagar as viagens mais caras!
Abençoada juventude! Percebi então que as preocupações económicas da minha jovem filha, faziam parte da estratégia budista do seu voluntariado.



Açores

O lado B da viagem

por Maria das Mercês Coelho




Viajamos porque queremos. Ou podemos. Uma quase banalidade na contemporaneidade.
E para que servem as viagens? O que guardamos das paisagens que vemos ou de vertiginosas vivências?
Mia Couto anota que “viajar é sairmos de nós e procurarmos um espaço que nos acolha para nos expulsar do mundo. Porque em rigor não existem lugares. Existe sim a invenção que deles vamos fazendo. Porque os lugares aconteceram no rio do tempo. Por isso são fugazes e irrepetíveis”.
Analiticamente prevê a busca dum desconhecido território que receba o visitante e se ajuste à medida dele, e subliminarmente, o concreto, a volta, o regresso ao quotidiano e às rotinas individuais.

Se viajar é o preferido lazer da nossa civilização, seguro é que o nascer ilhéu tem a errância como pressuposto de vida, potenciado no imaginário desejado para lá da linha do horizonte.
Peregrinos por necessidade, os açorianos carregam as lágrimas e o fardo da saudade nas suas deambulações pelas quatro partidas do mundo.
Desta mistura simbiótica de sonhos e maresias encontrar a viagem eleita é tarefa difícil, tantas são aquelas que nos despertam emoções!

A proposta é a viagem. Uma viagem e uma narrativa.
Poderia falar de uma sonhada, que me levou ao Brasil, onde me encantei nas varandas de Santa Teresa a respirar a beleza inebriante do Rio de Janeiro, ou na Cidade de S. Salvador da Baía, na vã tentativa de procurar as rotas do meu avó materno, que em 1938, numa ida sem regresso, procurou outro destino fugindo da ilha, onde deixou amores incompreendidos.
Deixo essa, ou outras, e entro na memória da meninice, onde trago comigo uma viagem perdida e sempre achada.

Decorria a década de 60, sem aeroporto nem cais acostável e chegar à minha Ilha só se fazia pelo mar, uma vez por semana, quando o tempo era de feição.
(Os condicionalismos da época levaram a uma precoce saída de casa para procurar estudos noutra ilha, quando o tecto académico começava e acabava na escola primária.)
Aos onze anos, regressava do colégio interno a férias de Natal, depois de ter desfiado ao milímetro o peso dos dias do calendário. A viagem desde o Faial durava no mínimo, um dia. Outras vezes, acrescia uma noite.





Uma eternidade para os verdes anos.
Assim, no embalo de intermináveis horas, embrulhada no desconforto do enjoo, quando esperava avistar a minha Graciosa, azul e pequenina, ao dobrar da Ponta dos Rosais, o Carvalho Araújo, enfeitiçou-se num vaguear e não parou a dança estonteante e cada vez mais arriscada que atormentava os estômagos e nos enchia de sustos. Penosamente resistindo à fúria da maresia, dolorosamente, o navio rangia entre a complicada engrenagem da madeira, ferro, parafusos e do cordame que o compunha, enquanto lá fora, céu e mar, estavam irmanados na mesma cor de chumbo. Assombrosa.
A tripulação, experiente de outras intempéries e de sofrimentos vencidos a pulso, era incansável em confortar os nossos medos.
Faltava pouco. Poucochinho. Havia um quase sorriso na palidez dos nossos rostos.
Tudo parecia acalmar-se e o navio navegava com alguma serenidade à sombra tutelar ou protectora da Ilha; quando eu pressentia o rumorejar e o perfume das araucárias da minha Vila, antevendo o aconchego da chegada a casa, um tripulante, fidalgo no seu traje branco, veio dizer-nos que o barco passaria de “largo”, seguindo para a Terceira por estarem impraticáveis todos os portos da Ilha. (Em consequência, seriam mais quatro horas de viagem, uma paragem em território alheio e uma data imprevisível de retorno).
A decepção não teve tamanho. Rompemos num choro, irreprimível, não de protesto, antes da mais pungente dor de alma e dum vencido desalento.
A autenticidade do desgosto não deixou insensível a tripulação do navio.
Então o Comandante usando da soberania que lhe assistia, desafiou a adversidade e as normas de segurança, tendo a coragem de rever a anunciada decisão. Ordenou, um improvisado desembarque em mar alto, sem ancorar o navio, mantendo-o sobre máquinas, dividindo a arriscada responsabilidade com a lancha da alfândega, que sabia governada pela marinhagem de terra, composta por destemidos lobos-do-mar.
Todos comungaram no generoso propósito de levar ao ninho, as sete crianças/adolescentes estudantes, que a bordo do navio não resistiam à dor da saudade e aos ausentes mimos da casa.

A história teve um final feliz.
Fomos recebidas na cais como heroínas por familiares e amigos, num sufoco de abraços, e esta tocante lembrança de muitos anos, é afinal uma reconhecida homenagem aos marinheiros anónimos, e muitos houve, que de peito aberto, arriscando as próprias vidas, alimentaram sonhos alheios, fazendo da nossa geração, e de outras anteriores, a gente que hoje é.


Graciosa, Dezembro de 2019






                                        1975- A Viagem

                                   por Alexandra Azevedo



1975. Julho. Aeroporto de Lisboa. Ia andar de avião pela segunda vez, mas era a primeira que entrava na Portela. Estava apinhada de gente. Literalmente. Era preciso avançar com cuidado para não pisar ninguém. Famílias inteiras acampavam no chão com as malas a delimitar o seu território. Na altura apenas pensei: este aeroporto é muito mais movimentado do que Pedras Rubras! E fiquei um pouco invejosa, um pouco despeitada. O eterno e injusto segundo lugar. Por um momento, reflecti ainda: nem em Gatwick vi tanta gente! Mas  era a idade de achar tudo natural sem grandes questionamentos e não dei um segundo pensamento ao assunto.  Só uma  semana mais tarde fiquei a saber que uma ponte aérea entre as colónias e Lisboa tinha começado três dias antes.   Era o PREC e ninguém me avisou.

A chegada à Ilha Terceira pensava eu, seria, em princípio e na minha completa ignorância do que eram os Açores, uma pequena escala de algumas horas até apanhar um barco para S. Jorge, o destino final. Santa Ignorância, a santa de que sou indefectível devota! Não, nada disso! Um barco?! À nossa espera?! Logo ali?! Aliás, ninguém dizia “um barco”. Falava-se dos barcos como quem fala de pessoas amigas, de íntimos que se trata pelo nome próprio: o Terra Alta, o Ponta Delgada, o saudoso Carvalho Araújo …
 Mas, quem é esta, afinal?! Quem é que ela pensa que é? Foi aí que eu descobri que era … continental! Continental?! Eu?! Eu?! Continental?! E dito assim, com uma indisfarçável censura na voz?!   Nada a fazer. Era mesmo continental e não havia como negá-lo.
Mas, e então quando é que há barco? Perdão, quando chega o Ponta Delgada? Outra impertinência! Isso não se pergunta. Vai-se ao cais e logo se vê. Todos os dias? Esta pergunta não chegou a sair  da garganta. Engoli-a a tempo. Muito bem, pensei conformada, mas ainda um pouco incrédula. Vai-se, amanhã ao cais, talvez mais um dia e tudo se há-de resolver. Para esta crença ingénua  contribuía decisivamente a calma e a naturalidade com que todos encaravam a situação. Ir ao cais passou, então, a ser qualquer coisa como ir para o trabalho. Uma tarefa diária que se cumpria com zelo. O segundo dia passou, passou o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto.. e ao sétimo dia, como no Génesis…apareceu um barco no horizonte! A excitação foi grande: O Ponta Delgada! O Ponta Delgada! Risos, abraços. Suspiros de alívio. Mas, à medida que o navio se aproximava, alguns rostos iam ficando apreensivos. O Ponta Delgada? Daquele tamanho? Daquela cor? A inquietação alastrou, os rostos começaram a fechar-se. E aquilo em que ninguém queria acreditar confirmou-se:  não era o Ponta Delgada! Era uma corveta da Marinha! O desalento tomou conta de todos e, aos poucos, cabisbaixos os grupos foram dispersando, abandonando o cais.
Navio Ponta Delgada


Sobrámos nós. Em silêncio continuávamos a  olhar o navio imponente que se aproximava.
De súbito: da Marinha? Se é da Marinha, é do povo! Se é do povo, é nosso! Se é nosso, o comandante tem de nos levar!
Estas constatações pareciam tão inegavelmente óbvias que, imediatamente, começámos a festejar. O navio atracou. Intrépidos abordámos o marinheiro que fazia a guarda da entrada e dissemos que queríamos falar com o comandante. A surpresa passou rápida pelos seus olhos recentemente habituados ao ar dos tempos novos que subvertiam hierarquias e protocolos. Levou-nos ao comandante. Este pareceu encantado com a ideia de fazer um desvio da rota prevista e levar os inopinados passageiros ao seu destino. Aliás, o comandante e os restantes oficiais, fazendo jus à fama das belles manières dos marinheiros, a elite das forças armadas, receberam-nos como quem recebe visitas de cerimónia que se quer honrar com o que de melhor houver.

Cumprimentadas as senhoras (?!) de beija-mão, fomos convidados  para uma bebida de boas- vindas na sala dos oficiais. A conversa decorria amena, as vozes baixas, as graças de salão, as gentilezas…Começámos a navegar. Eu já tinha olhado com alguma apreensão para os carneirinhos brancos do mar. Não. Está tudo bem. Come-se uma bolacha e pronto.   Mas a linha do horizonte  começava a mover-se de maneira atroz. O jovem marinheiro que servia as bebidas tirou disfarçadamente do bolso uma bolacha e meteu-a à boca, num gesto rápido, para não ser visto. Não estou sozinha, pensei.  Vou aguentar-me, eu vou conseg…oh, não!   O vómito soltou-se, ignominioso! E agora? Que vergonha! Que horror! O que fazer? Mas o comandante, com a mesma delicadeza com que se interessara pela minha opinião sobre a paisagem da ilha Terceira, alheio ao miserável aspecto do meu vestido, surdo aos arrepiantes sons dos arrancos que eu já não conseguia reprimir, disse com um sorriso onde não era visível ponta de ironia: _Minha senhora, ficaremos honrados se aceitar descer às nossas camaratas onde poderá deitar-se e descansar com mais conforto. Atordoada, aceitei, mas quando alguns passos cambaleantes depois, percebi que era preciso descer uma escada que fazia um ângulo recto com o chão, encostei-me à parede e …  e é tudo o que  recordo. Quando acordei, estava na sala de jantar do navio, estendida num sofá, perto de uma longa mesa onde cerca de 15 pessoas almoçavam animadamente bacalhau cozido com batatas, tinha uma almofada debaixo da cabeça e …um balde, ao lado,  para vomitar!
   Oh! Não! A situação era insólita demais para ser verdadeira! Como podiam eles comer, beber, conversar com aquele ruído de fundo que eu produzia, com o execrável espectáculo de uma pessoa a vomitar ao seu lado?! Por que não me tinham levado para algum sítio onde o mar pudesse, à vontade, arrancar-me as entranhas, descabelar-me, matar-me, enfim?! Mas com o mesmo imperturbável e delicado sorriso, de tempos a tempos o comandante olhava-me e dizia compreensivo: Minha senhora, as ondas hoje estão quadradas!  
Aos poucos, os balanços ficaram diferentes. Em vez de uma subida vertiginosa a que se seguia uma descida aos infernos, o navio assemelhava-se agora a um berço que alguém empurrava furiosamente. O que se passa? A pergunta não a consegui articular porque o estado de agonia não o permitia, mas pelas vozes que me chegavam enovoadas pelo enjoo, percebi então que estávamos parados frente à Graciosa. Devia fazer um esforço e espreitar pela janela para ficar a conhecer a ilha, pensei. Vamos, é uma oportunidade única! Força! Nada. Aquele balanço infernal atirava-me para o fundo de mim. Não consigo! Uma vaga maior, no entanto, desceu de tal modo a janela que entrevi, no balanço, uma linha de terra e a imagem branca de uma igreja que me pareceu gigante. Até hoje, é tudo quanto conheço da Graciosa e ao nome da ilha associo sempre as palavras sábias da minha sogra que dizia, filosoficamente, pensando nos desvios que os navios sempre tinham de fazer para servir os graciosences: aquela ilha não devia existir!

Mas a viagem continuou e chegámos a S. Jorge. A S. Jorge, isto é, ao largo de  S. Jorge. O navio não acostava porque... não havia cais. Era preciso passar para um bote que veio buscar os passageiros. Dito assim, parecia uma coisa fácil e rápida, mas o destino ainda não tinha parado de brincar comigo. O bote lá estava, de facto, bem junto do navio, mas ora ficava a um degrau da escada de corda que fora estendida, ora descia tanto que a escada distava mais de um metro do barquinho! O que tem de ser... A descida foi melodramática! As socas altas que calçava, maldita moda da altura, eram um entrave que acrescia ao equilíbrio já de si periclitante. Em baixo, aguardavam-me as mãos de ferro dos marinheiros, num momento, a um palmo de distância, no momento seguinte, inalcançáveis. Um último esforço destes últimos e vi-me, finalmente, dentro do bote…sem um sapato!


Terra firme. Um pé em terra firme, mesmo descalço, e todo o mal-estar se desvaneceu como por encanto!  O deslumbramento da ilha tomou conta de tudo. O verde das pastagens, o negro das rochas, o azul do mar…o deslumbramento foi total. E, até hoje, não se desvaneceu.







 A antropologia da Viagem, 
com alguns exemplos para se perceber

por Conceição Rocha

A alguns milhares de quilómetros dessas terras por onde se viaja a sério fica Viana do Castelo, onde nasci. Aí vivi até que uns 10 anos pouco viajados me levaram para o Porto, onde a minha aventura no mundo quase nada melhorou na década mais próxima. Mas o que me faltou em cosmopolitismo abundou em vida, que isto de viagem nem sempre precisa de quilómetros para se cumprir, olhar os pertos também vale alguma coisa, como iremos ver.
Até aos 8 anos ou por aí, de viagens só me lembro de umas idas a Vigo, onde se compravam as fazendas para os casacos compridos e caramelos de colar aos dentes.  Três  excursões com as colegas e as  freiras foram o culminar dos  anos lectivos da infância e também tiveram significado: uma ao Bom Jesus de Braga, outra a Ponte de Lima e a  melhor, na 4ª classe,  a Vigo, onde comprei com os 20 escudos  que a família me enfiou no bolso duas bandarilhas de toureiro cruzadas por traz de uma pandeireta que tinha ao dependuro um par de castanholas. Esse exemplar étnico esteve espetado na parede do meu quarto até virmos para o Porto.

Mas acreditem que nessa década de iniciação à vida um dos acontecimentos de que me lembro com mais prazer é de uma não-viagem, uma não-epopeia marítima que provavelmente terminou na Terra Nova ou na Gronelândia, não sei bem nem interessa ao caso.
Eu conto: em 1954 os estaleiros navais de Viana do Castelo construíram um navio-hospital, o Gil Eanes, destinado a acompanhar os barcos de pesca do bacalhau e dar assistência aos pescadores.  Soube-se que no dia do “bota a baixo”, da doca seca para o mar, viria a sr.ª d.ª Berta Craveiro Lopes, primeira dama, amadrinhar o barco rebentando a garrafa de espumante contra o casco. A minha Mãe e a minha Tia ficaram de olho no assunto, não do bota a baixo, mas da dona Berta, que essa é que interessava. A senhora tinha fama de finíssima, de  muito bom gosto a vestir e grande simpatia social. Flama e Século Ilustrado assim asseguravam. No dia previsto, mãe e tia pegaram em mim e lá fomos para a doca seca, colocadas bem à frente dos presentes, para espreitar a toilette. À cautela, nós próprias fomos aperaltadas como devia ser. Passando a parte dos discursos, da bênção do prior, dos foguetes e de outras minudências, o aparecimento da D.ª Berta foi um acontecimento. Ainda hoje me lembro da toilette em todos os seus detalhes: saia-casaco azul de bolas brancas, plissada a saia, justo o casaquinho; sapatos, carteira e luvas em azul e branco a condizer, na cabeça aloirada um elegante canottier branco também com o seu apontamento de azul. As três apreciámos devidamente a elegância de d.ª Berta, a frágil representante do salazarismo então no seu auge, coisa que eu não sabia nem na altura me interessaria nada se soubesse. O barco foi-se aos solavancos pela rampa da doca abaixo, lá para onde foi ou se foi não sei, nem era para isso que eu lá estava. Sonhar era com a toilette da d.ª Berta, a Terra Nova já estava descoberta, a novidade era outra. Muita conversa sobre o tailleur, o chapéu, os tecidos e os complementos seguiram-se em casa, tinha valido a pena espreitar o modelo.  Está visto que a minha domesticação  feminina ocorria com êxito, a viagem dirigiu-se a um vestido, para os homens ficavam o mar e o esplêndido barco que, soube mais tarde, até sala de operações cirúrgicas tinha.   
Navio Gil Eanes

Adiante, agora é mesmo viagem. No ano em que fiz a 4ª classe e a admissão, o meu Pai tirou a carta de condução. Um amigo emprestou-lhe um carro, um Anglia e, com o pretexto de me premiarem pelo êxito escolar, meus pais e eu embarcámos numa viagem pelo país fora, a visitar aquilo que eles achavam dever completar uma educação esmerada: mosteiro da Batalha, convento de Cristo em Tomar, Jerónimos, os três pilares do gótico, do engenho nacional e da exaltação da pátria. Nada me comoveu tanto como a toilette da d.ª Berta, passe a mesquinhez da comparação. Nem sequer a história que meu pai comovidamente mencionou na Batalha, de um construtor que, acusado pelas más línguas de que uma abóbada ia cair, sob ela passou a noite  arriscando a própria vida, tão certo que estava da sua razão.
 O melhor, isso sim,  estava para vir e aí a toilette da d.ª Berta perdeu completamente o fulgor: o Portugal dos Pequeninos, em Coimbra, com as suas casinhas de brincar onde se podia entrar e sair, jogar às escondidas, até uma igrejinha lá havia com um jardinzinho a toda a volta, tudo muito perfeito, muito variado, nem uma  cubata africana faltava, que Portugal ia até Timor e nessa altura eu já sabia como era longe. Quase tive que sair sob ameaça de bofetão, senão ainda hoje lá estava.
Mas a hora grande, a maior, estava por chegar e aconteceu no Jardim Zoológico. Chegados a Lisboa e instalados em casa de tios maternos, visitado o mosteiro dos Jerónimos e talvez a Torre de Belém, presumo, porque era perto e tudo sumamente chato, eis o epicentro do maravilhoso, girafas, macacos, leão, hipopótamo, um sem fim de bichos para mim, que  de carne e osso só conhecia cães, gatos, bichos de rebanho, a passarada e as pedreses em cativeiro na capoeira. Nessa própria hora decidi que Portugal é Lisboa, ou melhor, Portugal é o jardim zoológico que fica em Lisboa, nada do resto vale muito a pena. Ainda hoje tenho dúvidas sobre a regionalização, por culpa do jardim zoológico de Lisboa e dos seus inesquecíveis moradores.
A lenta viagem dos meus anos  continuou-se no Porto, com algumas incursões por aqui e por alí, nada a declarar. A partir dos vinte, a pedalada alongou-se até à Europa e mesmo a África, o médio oriente por fim. Tudo do que vi gostei, mas o meu chão é o Porto.
O Porto que, volvidos sessenta anos da minha presença, é o destino de um mundo que vem, creio que muito mais do que dos tripeiros que vão. Coreanos e chineses pendurados nas letras azuis que dizem Porto, espanhóis e alemães, franceses e brasileiros de selfie em frente aos azulejos do Carmo, filas de todos eles à porta da Lello, nem a Disneylândia da Casa Oriental escapa à memória digital, que a dos miolos para turismo já não serve. Com esta Babel maravilhosa, que certamente encerra mil histórias, vou terminar a minha memória de viagens, que com gosto aqui partilho:  uma viagem à Quinta do Paço para comprar manteiga, que é donde gasto essa vitualha.  Porquê essa viagem? Já vão ver.

Leitaria da Quinta do Paço

Entre a minha casa e a Quinta do Paço, em todas as estações e até no Inverno, circula o mundo, como já disse e não vale a pena repetir. Um mundo de mapa nas mãos, cada vez mais de telemóvel, julgo que por causa do GPS neste caso. Uma grande afinidade entre todos, pararem nas esquinas a ver se se orientam. Como não se orientam, quase sempre as tecnologias cedem lugar ao pessoal da terra, sempre disponível para uma ajuda. Nesses me incluo. Um dia, na senda da manteiga, encontro na esquina da Restauração um loiro dos seus sessentas, destacado de um pequeno grupo, atrapalhado sem saber o que fazer com o mapa.
Queria o Palácio de Cristal, soube eu dolorosamente depois. Vi o homem atrapalhado, ele olhou para mim e eu, com o meu inglês de meter nojo, em vez de lhe dizer “may I help you”, deu-me para lhe dizer “do you want something?, no repente do desejo de ajudar. O homem olha-me com ar furioso de puritano ofendido e responde-me com um ríspido “no”, a que logo acrescenta: “my wife is there”, e apontou com o dedo a senhora. Percebi logo no que me tinha metido. Passei por p***.  P*** rejeitada, ainda por cima. Nem o preço me perguntou. Moral da história, na Disneylândia os cabelos brancos não vendem.  De rabo entre as pernas fui-me à manteiga, que era o destino da minha viagem e, no gosto de curar as minhas emoções  com chantilly, assim o fiz com um belo éclair e até iam dois se não fossem as consequências.

Conceição Pinto da Rocha, Porto, Dezembro de 2019, data em que fui obrigada a escrever sobre este tema.


VOYAGE AUTOUR DE MA CHAMBRE

por Delfina Rodrigues

“Voyage autour de ma chambre” ocorreu-me no exato momento em que recebi um e-mail que me instigava a inventar, caso não tivesse terminado viagem que inspirasse uma história, pois se não viajei, que tivesse viajado, dizia a emissora digital, se nada tinha para contar, que inventasse.
            E, pour cause, as primeiras palavras das “Viagens Na Minha Terra“ de Garrett: “Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal”
            Acorre, e acode, também, o Nobre das “Viagens Na Minha Terra” a provar que sim, que se viaja sem sair do lugar: “Às vezes, passo horas inteiras/Olhos fitos nestas braseiras, /Sonhando o tempo que lá vai;/E jornadeio em fantasia/Essas jornadas que eu fazia/Ao velho Douro, mais meu Pai”.
 E a viagem oferece-se-lhe, em memória.
            Sem viagem, com um Inverno próximo do de Turim, à beira dos Alpes, deambulo, pois, pelo meu quarto, num espaço muito circunscrito. Porém, com janela, ou janelas, se quisermos abandonar o sentido literal. Também eu me detenho nos objetos. São muito poucos. È um ambiente quase monacal. Na parede, um desenho emoldurado dá-me a exterioridade de que preciso para contar uma história. Aliás, um encontro.
            Definem-no muito poucas linhas, tendencialmente curvas. Um rosto feminino, suavemente inclinado. E já estou em 96, num almoço pitoresco, informal, literário, muito perto da Braga. Sentam-me junto a um “velho “de fartos cabelos brancos, um ar desligado do prosaísmo das coisas reais e do cheiro das sardinhas que se iam assando e que ia convocando a atenção dos convivas mais terrenos. Parecia um poeta. E era. Era o António Ramos Rosa. Em pessoa. Satisfeita por ter sido sentada por um poeta junto do Poeta, abateu-se sobre mim a pressão de ter dizer coisas inteligentes para estar à altura do meu interlocutor privilegiado.
De repente, a cabeça baralhada de intertextualidades, confundia a “vírgula maníaca” com o “olho lírico”; o “funcionário cansado” com “o modo funcionário de viver”; o “não podemos adiar o amor para outro século” com “é urgente o amor” e assim por diante. Queria impressionar? Falar necessariamente de literatura? Serenamente, do nada, como quem pousa de sonha acordado, o poeta começa a contar-me a história que lhe ocupava o pensamento: a história de um motociclista que circulava atrás de um camião que transportava lâminas de alumínio cortantes. E, em velocidade, uma solta-se, atinge o motociclista e corta-lhe a cabeça. Foi

 então possível assistir a algo inédito – um indivíduo sem cabeça a continuar a sua viagem por mais algum tempo.
            Não sei por que evoco esta história aqui. Sei que o desenho, que me foi oferecido pelo próprio poeta tempos mais tarde, todos os dias me enternece e faz sorrir. Todos os dias me transporta no tempo e no espaço, me lembra a primeira ansiedade daquele encontro e a sua desconstrução, me reembala nessa conversa que, prolongada, fez jus à dimensão do poeta sem anular a interlocutora.

            Cabe agora ao benévolo ouvinte distinguir aqui, neste relato, a realidade da efabulação ou, mais prosaicamente, a verdade da mentira.








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