segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Sibila





  Breve apontamento biográfico de Agostina 

Bessa-Luís

por Conceição Rocha












               
Maria Agustina Ferreira teixeira de Bessa
Vila Me
ã, Amarante, 115/10/1922, Porto, 3/6/2019



 O rapazinho à direita é o meu pai, Arthur Teixeira de Bessa, que foi para o Brasil aos 12 anos.
Meu avô Teixeira era perdulário, valente, amava mulheres, o que é mais do que as desejar. (…) Elas adoravam-no e faziam bem. Que há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las.









Meu pai, quando regressou de vez a Portugal, andou pelas termas de Vizela e Entre os Rios a mostrar-se num Mercedes descapotável que tinha pertencido ao Infante D. Afonso.












O meu pai abordou a jovem Laura, que                                                                                            estava vestida de preto, não por luto mas por                                                                                          promessa,  [com um prato de figos].                                                                           
Casaram e não tiveram muitos meninos. 
Fui só eu e meu  irmão José Artur. 

Como Byron, [meu pai] não gostava de meninas em flor; 
provavelmente porque são cheias de surpresas, nem sempre boas surpresas. 
[Laura] era orgulhosa e de mau génio, levava a sério o casamento.



                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Nasci na região de Amarante e sou um produto da região como o vinho verde. Meu pai […]quando se casou pensou arrumar-se na província. Aborrecia-se de morte  e a casa […]onde eu nasci vendeu-a logo a seguir. Fomos viver para Gaia.

[Depois Águas Santas, depois a Póvoa], onde frequentei o colégio velho das doroteias.
                                                                                                                                                                                                                        













Eu pensava que a minha Mãe não era uma pessoa justa: faltava-lhe a independência que faz a alma imortal. Achou sempre , e meu Pai também, que o meu talento era devido a meu irmão e que eu o usurpara,  como Jacob a Isaú.
Contudo, o meu Pai mandou dactilografar o meu primeiro romance…
O cinema, os livros e a d. Inês deram comigo em escritora.



                                                                                           A boneca grande tinha sido a aspiração da                                                                            minha vida. […] Eu devia ter-lhe chamado Betsabé, se                                                                           lhe soubesse a origem.







A Póvoa foi a grande terra da minha idade de prata. Meu Pai tinha obtido a concessão do casino [que] começou a sua história com um baile monumental para o qual a minha Mãe fez um vestido precioso e comprou sapatos de cetim.



[Na Póvoa ] de repente, passei a coisas mais substanciais, Madame Bovary, para começar.





Em 1932 vai para o Porto estudar, onde passa parte da adolescência, muda-se para 
 Coimbra em 1945




Ali estava eu, a fazer regime tão brutal que me precipitou na anorexia. Bebia vinagre e quase não sentava para comer. Continuava a ler tudo o que podia e, de repente, pus-me a escrever um livro. Escrevia numa letra tão intricada que parecia destinar-se a não ser decifrada por mim nem por ninguém. Era uma espécie de arrogância arrependida.
Hoje vejo que escrevi dois livros e não um como pensava.










Casei no espaço de um ano, [em Coimbra], depois de conhecer o meu futuro marido, um estudante de Direito [Alberto Luís].
[Os meus pais] deram-me uma quantia generosa para o enxoval; tinha assegurada uma mesada que não me fazia perder a cabeça, mas não me condenava a uma vida mesquinha.
Coimbra pareceu-me pacata, arrastada, sem imaginação. […] Nós vivemos numa pequena casa da rua dos Combatentes que ficava dentro de um jardim. Herdámos com a casa um gato doutros licenciados que tinham partido.



Meu marido ficava rico na Queima, a fazer as caricaturas para os livros dos quartanistas. Bebia-se champanhe e comia-se grão-de-bico. Eu ganhava um prémio dos jogos florais, comprava um vestido caro e mirava-me no espelho de 3 faces do bonito psiché que era do tempo da minha Mãe, quando ela tinha no quarto um tapete de pele de leão.





.








Bem, voltando ao Porto: era o Porto das Belas-artes e do Cine-club, aquele sentimento de seita e o caloroso passo dos iniciados, como eu, que escrevia A Sibila. A Sibila abriu-me as portas das letras, com a sua família sacerdotal, com os seus provincianos de carreira, os amigos da fraternidade e os amigos da onça. A vida correu sem sobressaltos; meu marido tinha escritório de advogado e comprou o primeiro automóvel, um WW, que ia servir às viagens que iam ser uma constante na minha carreira








Vivíamos então em Esposende, numa pequena casa de praia que comprámos à senhoria, uma senhora não sei se dinamarquesa. Minha filha estava interna no colégio, meu marido advogava no Porto […] ficando eu e os gatos numa espécie de encantamento, a ouvir o suspiro do mar. Foi em Esposende que li Freud. Um dia a Vieira da Silva e o Arpad vieram visitar-me. O Arpad era um homem polido, não gosto de homens polidos, têm uns arrepios de sinceridade, às vezes, que nos gelam.



Fomos à Grécia no tempo em que Sartre chamaria a isso um escotismo. […] Um voto para Sócrates que, sendo feio, merece ser multiplicado ao infinito e amado em todas as suas cópias.







Voltámos ao Porto. O que me impede de mudar mais de casa são os gatos. Ficam profundamente deprimidos, acusam-nos, fogem de casa. Agora é um andar sobre Miragaia […]. Parece um túmulo romano para patrícios. Saio muitas vezes ao dia com o meu cão, que se adapta bem mas ganha um feitio velhaco


A casa é vendida, vamos para outra, minha filha está em Lisboa, nas Belas-Artes.
Escrevo, escrevo, escrevo.

Deu-se o 25 de Abril estando eu na cama de manhã e tudo me pareceu o resultado dos fenómenos ocultos que são as pessoas.




Devo acrescentar aqui alguma coisa que sempre me pesou: acima dos amigos eu tive o pensamento; além da gratidão eu pus o amor forte e generoso pela vida.
[…] A verdadeira fase do que é humano nunca ninguém a viu; toma muitos traços, muitas parecenças, muitas fantasias.

Se andarmos sempre a direito na Via Appia, voltamos sempre ao ponto de partida. Os meus livros são como a Via Appia, procuro neles o local da partida.



                            1ª edição de A Sibila, 1954
 Fontes: “O livro de Agostina Bessa-Luis”, 2002, Torres Vedras, Três Sinais Editores





O desenho narrativo do romance

por Manuela Pereira
                                        
                                            O meu pensamento estende-se de uma maneira caótica e para o deter recorro aos aforismos (…)                                               que são como uma fuga ao pensamento.” Agustina Bessa-Luís



Em A Sibila, a narrativa_ exposição de factos e situações passadas ou a ocorrer, reais ou imaginadas_ é um impulso orgânico que como um ser vivo cresce e se desenvolve em todas as direcções, ocupando todo o tempo e espaço do romance.
A narrativa começa com Germa, quando visita com seu primo Bernardo Sanches a Casa da Vessada, quase abandonada. As suas memórias fazem-na relembrar as origens da família e a vida de Quina, a sibila, de quem herdou a casa.
 Germa vai ser a narradora, ao desfiar uma a uma as lembranças de Quina, em diferentes momentos da narrativa. Noutros momentos há uma narradora que a completa. Essa narradora é omnisciente, indicia o seu ponto de vista e dá mais atenção às suas próprias reflexões.
A narrativa termina também com Germa, que continua a conversa com Bernardo, enquanto questiona a personalidade de Quina.
Narrativa que se desenvolve descrevendo uma linha cronológica em espiral_ símbolo de evolução e movimento, associado à própria progressão da existência_ que se desloca no espaço-tempo ao longo de três gerações da família Teixeira.
Essa linha cronológica, entre o final do séc. XIX e meados do séc. XX, avança focando-se na progressão da vida de Quina, descrevendo o seu nascimento, retornando às origens da sua família, quando seu pai Francisco Teixeira e sua mãe Maria da Encarnação se conheceram, para logo continuar até à morte de Quina e aos seus herdeiros, a Germa. Ao mesmo tempo descreve o percurso da transformação do papel da mulher na sociedade da época.
Contrariando a orientação cronológica há avanços e retrocessos constantes, porque a estrutura orgânica se ramifica, proporcionando encontros com personagens e histórias, e ao divergir inverte o tempo e o espaço da narrativa, como que contrariando o seu avanço linear.
Neste “processo de lançar fios entre recordações e imagens, a narrativa solidifica personagens e a realidade vai ganhando espessura.” Os comentários vão sendo articulados de forma dispersiva e fragmentada mas todas as digressões têm começo, meio e fim.






Novas camadas, outros planos espaço-temporais, vão sendo sucessivamente acrescentados ao plano da linha cronológica, criando uma trama de ligações ente passado e futuro, acrescentando uma nova densidade à textura da narrativa. Este cíclico avançar retroceder, que nos leva a fazer inúmeras digressões, imprime um ritmo lento ao discurso ao mesmo tempo que nos permite apreciar pormenorizadamente cada fio da malha tecida.
Quando termina, no mesmo ponto onde começou, mas depois de nos ter feito percorrer quase um século, essa trama é um universo de personagens, ligações e histórias que formam todo um mundo que se acaba e se completa.
Poderá recomeçar com Germa  numa nova realidade de espaço-tempo…









A  Velha Rocking Chair

por Maria José Marques

Uma rocking chair  é uma cadeira cujas pernas estão apoiadas lateralmente em duas longarinas abauladas que tocam no chão apenas numa pequena extensão daí resultando um movimento de baloiço ampliado quando um ligeiro movimento do ocupante da cadeira desloca o centro de gravidade para a frente e para trás. Ainda que tal cadeira possa ser despida de enfeites, a sua construção tem alguma complexidade pois o efeito abaulado é obtido usando calor e humidade para forçar a vime ou a madeira criteriosamente escolhida com alguma forma natural. Os berços de baloiço precederam naturalmente as cadeiras e o movimento de embalo que proporcionam uns e outras é muito confortável, ajuda a descontrair e daí à meditar, reflectir.  Uma rocking chair não é um objecto comum nem barato, mas é muito apetecível.

      JF Kennedy, que sofria das costas, tinha uma cadeira de baloiço especialmente desenhada onde quer que estivesse. Mas não se livrou do comentário mordaz de uma opositora da sua política de integração dos negros . “How  you can bounce from your rocking chair in Hyannis , Palm Beach and Virginia, and still know what is going on in the country is beyond me “.


O legado

Na casa da Vessada,  “ um ambiente um tanto árido de encantos “ a existência de móveis é mais funcional do que decorativa: “uma pena cómoda com puxadores de osso embutido “ , “o preguiceiro” ao lado da lareira “ o velho relógio da sala” .” Uma mesa de abas, legítima preciosidade proveniente, assim como a cama ( uma antiguidade D. José) dalgum velho espólio de fidalgo “ eram ,oh ironia , mobiliário do quarto dos criados que servia igualmente de arrecadação das batatas. Contudo, aí está uma rocking chair na sala, qual trono de Quina, a restauradora do património e status da  família. É aí que Quina se senta e se baloiça no rescaldo da sua intervenção de mediadora de conflitos , “ juiz de paz “ reconhecida pelos vizinhos, na sua cadeira de poder, rejubila no seu solitário mundo.

 (p.177 ,)“ Acontecia-lhe ( a Quina) sentar-se na sala ( na rocking chair ) no meio da casa deserta, e pensar que o seu triunfo, a sua riqueza, o nome pronunciado com reverência naqueles conciliábulos do adro, entre lavradores, a deixavam exactamente no ponto de partida---a mais inacessível das individualidades e o mais triste do isolamento.
Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoram e se deram vida. Vaidade e magnífico conteúdo espiritual foram os seus pólos;

Quina tem uma herdeira dos seus bens, das suas conquistas bem como dos seus anseios, inquietudes e contradições.

“ Eis Germa, que embalando-se na velha rocking chair, pensa e pressente sabendo-se actual relicário desse terrível, extenuante legado da aspiração humana.(…) Ela move-se ritmicamente, baloiçando-se naquela sala onde se recolhem em pilhas as maçãs(…)
Germa balança-se com “sacões violentos” sentada no trono que herdou talvez adivinhando que não será suave e cómodo o caminho a percorrer como não  foi para Quina. « sim, Quina foi apenas mais um punhado obscuro de aspirações que só despontaram ou mal floriram.»
“Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila. Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique de facto silenciosa, porque- quem é ela para ser um pouco mais do que Quina e esperar que os tempos novos sejam  mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio ? Talvez ela fique de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir…








Quina  e os homens

por Mercês Coelho

a génese

Maria Encarnação e o marido Francisco Teixeira desejando um filho varão, olharam sem entusiasmo, mas sem ressentimento ou sobressalto, o nascimento duma segunda filha, que recebeu o nome de Joaquina Augusta. Pela vida fora, seria conhecida por todos como Quina, um nome um tanto equívoco convocando adjectivos sinónimos como, aresta, ângulo falho de ductilidade, em vez da maciez requerida para um hipocorístico.
Após o insucesso de três nados mortos anteriores, uma maternidade triunfante, orientou Maria para depositar todas as expectativas na primogénita Justina, a quem se dedicou de corpo e alma, com manifesta preferência em detrimento dos filhos que se seguiram. A ruralidade abastada onde a família se integrava, indicava para a menina o investimento com vista à aquisição dos atributos necessários para se tornar uma atraente dama ao jeito tradicional, educada, meiga e submissa, de forma a conquistar um marido que a tutelasse e lhe desse conforto e visibilidade social.
Uma quimera que se esfumou para Estina. E reservaria a Quina um protagonismo surpreendente.


o culto do progenitor

A mãe relegou Quina desde cedo, sujeitando-a a rígidas tarefas e a responsabilidades de desempenho, porventura humilhantes para a sua condição. Idênticas às exigidas a uma serva na vida doméstica.
Sem expectativas dum futuro relevante, cresceu despretensiosamente na quinta da Vessada, cuidando dos irmãos e doutras serventias a que se dedicava com denodo, e prestimosa dedicação. Procurando arrimo em afectos.
Se teve a predilecção do pai, foi porque o conquistou através de cumplicidades partilhadas e o alteou como ídolo e herói a quem reconhecia defeitos julgados compatíveis com a integridade masculina.
Aquela filha enternecia-o. Distinguia nela a argúcia e inteligência e um espírito de combatividade exemplar.
Na Vessada a obediência foi a melhor defesa contra a autoridade e veio a ser para Quina a força e uma importante ferramenta para a eficácia de uma criteriosa gestão capaz de reerguer a actividade da quinta, já que com a continuada ausência do lar e das responsabilidades patronímicas, à custa da vida perdulária que sempre levou, Francisco Teixeira, ter deixado avultados encargos após a sua morte.
Impunha-se vencer as dificuldades, sustentar e engrandecer o património e travar uma luta sem tréguas contra o imobilismo feminino.
A filha dilecta evitou culpas. O sacrifício amadureceu-a e fê-la sair da obscuridade que lhe cabia.

os poderes

Carente de afectos sublimou-os na conquista da respeitabilidade, através de um génio pitoresco que a fez conselheira e socialmente útil, sendo recebida com deferência pelas mulheres da sociedade, a quem por princípio desprezava, guardando nessa pública participação a mais inacessível das individualidades e o mais triste isolamento.
Concomitantemente libertando dívidas e penhoras judiciais, Quina adquiriu por partilha o quinhão dos irmãos, ficando assim dela, por direito próprio, a administração do património e da quinta, onde encontrava uma atenuante, um encanto, mesmo feito de fraquezas.
Tomou destemidas atitudes de modo a emancipar-se dos juízos alheios, voltada simultaneamente para o interior de si mesma mas sem se desprender do que a circundava e bem assim da notoriedade e honorabilidade essenciais para o domínio que necessitava afirmar.
Ganhou fama de vidente. E proveito. Assumiu a aura duma certa excentricidade essencial na convivialidade. Por via desse prestígio iniludível, era requisitada para conselhos e prestava-os.
Fez-se poderosa.
E apercebeu-se da importância de se expressar sibilina e delicada, que deixava suspensos os ouvintes, as almas estremecendo numa volúpia de inquietação, curiosidade e esperança.

das fraquezas, força

A ruína económica teve sequelas para as mulheres da família, sem acesso a dote que prestigiasse um casamento de conveniência. Quina aceitando a sedução de Adão percebeu nele um pretendente interesseiro.
À vista de um casamento de aflição, fez sua a rejeição. A grandiosidade da atitude seria selada durante toda a vida, não pela indiferença, mas pelo ascendente dela, concretizado através de confidências e conselhos nos negócios com que sempre o favoreceu.
Apreendeu o domínio sem ser dominada.
Conhecia os homens sem o aprender jamais”.
Tanto provocava no marido de Estina amenidades que quebravam impetuosidades coléricas exercidas contra a própria mulher, como se deixou vencer por uma maternal ternura por Emílio, a criança que acolheu aos 58 anos. Custódio, como era conhecido por estranhos era a vingança dos juízos que Quina fizera dos homens. Amava-o não o observava.
Dentro das suas limitações ou misérias intelectuais, Custódio nunca abandonou a protectora. Pediu, implorou, que a quinta lhe fosse transmitida, mas a sibila, determinada e lúcida até ao final, sem menosprezar o conforto económico que lhe garantiu com outros legados, consciencializou uma atitude conservadora para a propriedade que considerava matricial.
Por entre as malhas de um tecido social hierarquizado e impositivo, fragilizada, mas nunca vencida com “a morte roendo e iluminando tudo, a vencedora vencida do indomável”, citando Eduardo Lourenço, Quina faleceu na Vessada, que quis transmitir à família como um troféu inexorável da força feminina, contrariando o ancestral domínio patriarcal.

Graciosa, 2 Dezembro de 2019






 AGUSTINA - VIDA E OBRA

por Delfina Rodrigues 


A VIDA - A autora e as suas circunstâncias

Maria Agustina Teixeira de Bessa nasce em Vila Meã, Amarante, em 15 de outubro de 1992 e morre no Porto, em 3 de junho de 2019, com quase 97 anos de idade, embora retirada do espaço público desde 2006, na sequência de um acidente vascular cerebral.
Descende de uma família economicamente folgada, do ambiente rural de Entre-Douro-e-Minho, pelo lado paterno, e com ascendência espanhola pelo materno. Essa matriz geográfica e social marcou-a significativamente, como a própria reconhece ao afirmar “Sou um produto da região, como o vinho verde, que não embriaga mas alegra”, em “ O livro de Agustina Bessa Luís”, Três Sinais Editores, 2002. A sua existência não foi, porém, sedentária, já que, até 1950, data em que se fixou definitivamente no Porto, na rua do Gólgota, viveu em vários lugares e percorreu vários espaços do Norte. Gaia, Águas Santas, Póvoa do Varzim, Esposende, Coimbra, são alguns dos referidos nas suas biografias, com paragens no Douro, na casa da família materna, em Godim, e férias na casa do Paço, das tias paternas, em Amarante. 
Aos 4 anos, diz se, tem já contacto estreito com os livros, sendo a biblioteca do avô paterno facilitadora (potenciadora?) do seu interesse.
Estudou na Povoa do Varzim, no colégio das Doroteias, entre os 6 e os 13 anos. É ainda referido um outro colégio e, mais tarde, aulas de Latim e de Francês, no Douro. Em 39, vem estudar para o Porto e faz o liceu correspondente ao que seria hoje o 9.º ano. Diz-se.
            Casa em 1945, com Alberto Luís, e daí o apelido Bessa-Luís, com que ficou conhecida. Registo, como curiosidade, a forma como o conhece. Porque a “a solteiria”, segundo escreve na obra referida, a “distraía de maiores realidades”, decidiu pôr um anúncio no jornal “Primeiro de Janeiro”, manifestando interesse em conhecer “pessoa culta com quem se corresponder”. Viveu então em Coimbra e no Porto, com passagem por Esposende, durante cinco anos (ou três?), que, dado o isolamento que a escrita impunha, lhe mereceu o epíteto de “eremita de Esposende”.
            É frequentemente sublinhada a relação de cumplicidade entre ela e o marido, discreto apoiante/colaborador da sua intensa vida literária, apoiando-a na parte menos criativa do trabalho, designadamente na pesquisa, leitura e dactilografia dos textos da autora. Têm uma filha, Mónica Baldaque, e três netos – Alberto, Leonor e Lourença.
Teve um irmão, mais velho, que morreu na década de 70. Na obra que acima referi, deixa transparecer a preferência da mãe pelo irmão e, generalizando, afirma: “Com uma expectativa que as mães têm ainda hoje pelos filhos varões.”. Ela seria a preferida de Lourença, ama da primeira filha da avó Agustina. Da relação com a mãe, fica o registo de ter sido “mimoseada” com os epítetos de “desnaturada, fria, ingrata e coisas assim”.
            O seu interesse pela literatura, também como leitora, é uma constante ao longo da sua vida. Desde muito cedo, como já referido. Como primeiras leituras marcantes, destacam se o Antigo Testamento, uma coleção de clássicos e uma enciclopédia ilustrada, trazidos do Brasil pelo pai. Não revela interesse pelos habituais interesses da infância. Aliás, afirma na mesma obra: “tudo o que podia desfrutar do tempo infantil me parecia vulgar e estranhamente impróprio para mim. Eu amava a vida dos adultos, os seus perigos, mistérios, paixões e desgraças.”
            Em fases diferentes da vida, lê o Antigo Testamento, Júlio Verne, Emílio Salgari, Freud, literatura americana (sendo referido que, já no fim da sua carreira, viveu profundo interesse pela obra “Coração das Trevas” de Conrad), os escritores russos, Flaubert… Escreve em “ O Chapéu das Fitas a Voar”[1] : ”não tenho entre os escritores russos gente que não convidasse para minha casa, para ouvir e contar histórias, para confiar sentimentos que se balançam no coração ….”
             Foi ainda uma viajante, a partir de 50, data em que o marido comprou um Volkswagen, contando-se, entre os países visitados, Itália, Brasil, Grécia (com Sophia).
            A “reclusão” a que a escrita a obrigava não inibiu a sua participação no espaço público. Entre 90 e 93, dirigiu o Teatro D. Maria II, foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, membro da Académie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres (Paris), da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa; mandatária nacional de Freitas do Amaral nas eleições presidenciais de 86; integrou a Comissão de Honra de Jorge Sampaio e de Cavaco Silva, quando candidatos a Presidência da República.

… E A OBRA

            Precoce e torrencial. Dois adjetivos que acompanham bem a caracterização da sua obra. Com efeito, se a primeira obra publicada data de 1949, (“O Mundo Fechado”, pela Guimarães Editores), foi, em 2017, publicado o seu primeiro livro, “Deuses de Barro”, escrito aos 19 anos, abandonado na Casa do Douro e redescoberto pela filha já depois de ter adoecido. E, entre este e a última obra publicada, em 2006, “A Ronda da Noite”, data a partir da qual se “retira por razões de saúde”, desenvolve-se uma obra intensa e torrencial. Escreveu crónicas, memórias, biografias, livros infanto-juvenis. Foi romancista, dramaturga e ensaísta. Li, sem poder precisar a fonte, que escreveu 60 obras e milhares de páginas.
            A consagração veio com “A Sibila”, que ganhou, em 54, o prémio Delfim Guimarães e que marcou um tempo novo no panorama literário português, rompendo com o cânone neorrealista e assim referida por Laura Fernanda Bulger, na publicação “Vozes e Olhares no Feminino”, trabalho realizado no âmbito da PORTO 2001: “ Quem diria que a história da tia Amélia, como refere a Autora, se iria transformar nessa obra-prima da nossa literatura que é “A Sibila”, obra inovadora não só pela temática, pela linguagem ou pelas estratégias narrativas utilizadas, como também pelo tratamento dado à personagem central Quina, evocada pela memória de Germa”.
            Embora não filiada em escola ou corrente literária, reconhecem-se-lhe e adivinham se "influências" ou inspirações diversas, de autores russos, de Camilo Castelo Branco, bíblicas, entre outras.
            A receção entusiasta da sua obra conheceu-a em vida. Recebeu vários prémios literários: o Prémio Delfim Guimarães, em 54 e o prémio Eça de Queirós no ano seguinte; o prémio Camões em 2004; duas vezes o Grande Prémio de Romance e Novela da APE, com "Os Meninos de Ouro", em 1983 e "Jóia de Família", em 2001.
            Revela na sua obra interesse e dialogo com outras artes, especialmente com o cinema, sendo conhecida a sua relação com Manuel Oliveira. Fanny Owen, de 81, Vale Abrão, de 93, As terras do Risco (O Convento), de 95, A Mão de um Rio (Inquietude), de 98,são disso exemplos.
             Remataria com referência a alguns epítetos reveladores da complexidade e riqueza da sua personalidade com que alguns contemporâneos se lhe referiram: a indomável, na voz de Eduardo Lourenço; genial e vulcânica, na de Manoel de Oliveira; um espírito muito independente, no juízo de Freitas do Amaral; melhor escritor vivo para Paulo Teixeira Pinto (Presidente, em 2009, da Guimarães Editores); maga, para Lídia Jorge; enigmática, segundo Isabel Rio Novo, autora da biografia de Agustina, ”O Poço e a Estrada”.

            E afinal, quando lhe perguntaram, em 2003, na revista Ler “qual o instante, o fragmento, o pontinho de luz que mais vezes lhe ocorre para dizer que viver vale a pena”, ela responde:
“Ter a capacidade de amar alguém ou algo na vida. Ser capaz de pôr nisso todas as forças, toda a capacidade que, no fim de contas é a capacidade para viver”.

1.      Fontes: “O Livro de Agustina”, Três Sinais Editores, 2002
2.      Revista LER, n.º 76, janeiro de 2009
3.      Websites diversos



[1] “O Chapéu das Fitas a Voar” – Escritos Autobiográficos
Agustina Bessa-Luís, Guimarães Editores, 2008





Germa: um alter ego de Agustina?

por Alexandra Azevedo

Germa é Agustina.

A identificação entre ambas surge logo nas primeiras linhas do romance: Germana (…) era (…) um tipo fatídico das degenerescências, o artista, o produto mais gratuito da natureza e que se pode definir como uma inutilidade imediata.”
 Numa entrevista publicada na revista Os Meus Livros, em Novembro de 2002, questionada por que se pôs a desenhar pés de gesso quando era óbvio, desde o início, que iria escrever, Agustina responde: Eu sabia que queria fazer qualquer coisa, não sabia o quê. Tinha jeito para desenhar e moldar… E a mãe também não sabia o que fazer de mim. 
Na verdade, o que fazer de alguém que, conforme as suas palavras na mesma entrevista, “vivia em estado de criação” e  diz de si própria ter  “um feitio de pura ficção”? Um ser assim é uma fatalidade que atinge a família, uma degenerescência porque As meninas da casa não são para ter talento, são para serem decorativas e continuarem. Terem filhos. As mulheres são para ter filhos, é para o que nasceram, lembro-me de o meu pai ter dito isso ao meu marido quando nasceu a minha filha. (ibidem)
Talvez por isso, Agustina, coquette e gostando de vestir bem, tenha mantido sempre um perfil enquadrado nos cânones burgueses, não exibindo excentricidades nem rebeldias.  Ou talvez não. Talvez tenha sido pela razão oposta, para não ser banalmente excêntrica. Como Germa, aliás. Os artistas, que, em geral, se fazem notar pela sua excêntrica banalidade e que se distinguem dos burgueses porque vivem as extravagâncias que os burgueses reprimem em si próprios, não se pareciam nada com Germa. Ela tinha o espírito de parecer vulgar.”
Por outro lado, o tema das suas origens e a geografia das mesmas é objecto de reflexão para Agustina que, na mesma entrevista, discorrendo sobre a família do Douro, racional e positiva e a família de Amarante, uma gente aventureira que gostava de viver sem obrigações, não hesita em dizer A minha herança genética é de Amarante.
Este gosto de se ver a si própria como o resultado das gerações que a precederam, encontra-se igualmente  em Germa: Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora”  
Porque, afinal, o que interessa a Agustina é seguir com disciplina o trajecto do ser humano (ibidem). E é a ela, agora,  que cabe dar voz ao extenuante legado da aspiração humana. E teme ficar silenciosa_ Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique, de facto silenciosa”. É Agustina  que se balouça  na velha rocking-chair murmurando um lento monólogo para detalhar e cumprir a sua história. E teme ficar imóvel. “Talvez ela fique, de facto imóvel no seu constante, lento ou vertiginoso baloiçar, na casa que fortuitamente habita, e a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir,  porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado e isto é todo o destino, porque…porque…” 

Agustina é Germa. Agustina é a sibila.

E todo  o ar rescende a maçã.










Sem comentários:

Enviar um comentário